DA ONG CTI À ALTA CÚPULA DA FUNAI
(Parte 3) A premissa da transparência do serviço público é colocada em dúvida quando se analisa a forma como a Fundação Nacional do Índio lida com entidades do terceiro setor. As relações entre o órgão e as organizações não governamentais são contestadas inclusive por servidores. É um emaranhado de associações e parentescos que se sobrepõe à isenção de estudos como o de Morro dos Cavalos Parte 1 Introdução Parte 2 Parte 3 Parte 4 Parte 5 Linha do tempo
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a Fundação Nacional do Índio (Funai) as relações se confundem. A ONG Centro de Trabalho Indigenista (CTI), peça-chave no caso Morro dos Cavalos, atua dos dois lados: o de quem solicita os estudos e o outro, que autoriza. É que o CTI cede seus antropólogos e integrantes para os cargos comissionados do órgão federal.
Em carta aberta aos povos indígenas, uma funcionária concursada e com quase 30 anos de trabalho na Funai fala em ocupação de “ongueiros” no alto escalão do órgão e cita o CTI como “a ONG do momento no quadro de comissionados”.
Explica-se: o atual chefe da Diretoria de Proteção Territorial (DPT) da fundação é Aluisio Ladeira Azanha, que trabalhou na ONG assessorando índios guaranis na regularização das terras ocupadas em todo o Brasil. Ele é sucessor de Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão na Funai. E ela foi presidente do CTI em 2001.
A apuração do Diário Catarinense revela ainda raízes bem mais antigas. Maria Inês Ladeira (que é irmã da mãe do atual diretor da Funai) teve acesso à história da família Moreira – a primeira a chegar na região de Morro dos Cavalos, que migrou do Paraguai no fim da década de 60 – e enviou carta ao órgão federal solicitando o início do processo de demarcação da área. O documento é de 1992 e já em 1993 a Funai autorizou a abertura dos estudos do caso.
Nesta mesma época, Gilberto Azanha – que é pai de Aluisio, cunhado da antropóloga, além de ser um dos fundadores do CTI – ocupava o cargo de coordenador-geral de Estudos e Pesquisas na Funai.
As informações da antropóloga Maria Inês Ladeira influenciaram o primeiro laudo sobre o processo da terra indígena Morro dos Cavalos, que foi publicado pela Funai em 1995 e propunha demarcar 121 hectares. Mais tarde, no início dos anos 2000, a mesma antropóloga foi contratada para coordenar o grupo técnico de um novo estudo. Foi quando ela propôs ampliar a área para 1.988 hectares – levando em conta não mais o início do processo, quando 14 índios de uma mesma família ocupavam o local, mas a nova realidade, que era a de um grupo de 200 indígenas sem nenhuma ligação com a família Moreira.
A proposta foi aceita e comprada pela Funai. Comprada porque a solicitação do pagamento de honorários foi feita pela Fundação Nacional do Índio em 13 de janeiro de 2003, depois que os serviços já haviam sido prestados. Segundo a Procuradoria Geral do Estado (PGE), a forma como se deu contraria as normas relativas aos contratos administrativos, “pois primeiro foram prestados os serviços e depois foi assinado o contrato”.
O relatório de identificação e delimitação do grupo técnico coordenado pela antropóloga foi aprovado pela Funai e publicado no Diário Oficial da União em 18 de dezembro de 2002. Depois que já estava pago, em 2003, foi encaminhado para o Ministério da Justiça, que só reconheceu a área como terra indígena em 2008 (e o processo ainda depende de homologação da Presidência da República para ser oficializado, o que até agora não foi feito).
Presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), o ministro Augusto Nardes diz que a validação dos estudos pela mesma ONG que os elaborou é “algo que não deveria acontecer”. Ele explica que o laudo deveria ter caráter pericial e, por isso, pode acabar perdendo a isenção. Em entrevista ao DC, o ministro também se posicionou sobre a forma como as demarcações de terras indígenas são conduzidas:
– Há um caminho a ser percorrido para minimizar as incertezas do sistema. E um fator que contribui para a instabilidade é a interveniência de organizações nacionais e internacionais, supostamente de caráter humanitário, mas que alimentam suspeitas cada vez mais fortes de tentativa de desnacionalização dos territórios – diz Nardes.
O jornalista mexicano radicado no Brasil Lorenzo Carrasco estuda o tema há mais de 30 anos e publicou três livros sobre o indigenismo e organizações ambientalistas. Ele associa o poder das ONGs ao patrimônio gerado a partir de convênios com instituições internacionais que, segundo ele, injetam bilhões em projetos brasileiros. O interesse de ONGs indigenistas em ocupar os cargos seria a garantia de execução dos projetos conveniados, o que os permite manter o lucro, diz.
– Existe uma parcela de antropólogos que age por ideologia, que é a maioria. Mas existe outra que negocia e usa o índio como massa de manobra. A questão indígena mexe com o emocional das pessoas: ‘Nós chegamos aqui e expulsamos’. Existe um sentimento de culpa. Só que é preciso dizer: a massa de demarcações já foi feita, 13% de todo o território brasileiro está demarcado como terra indígena. Não se pode voltar no tempo e distribuir terra para uma população que não é a mesma de 500 anos atrás, como se não existissem leis – conclui Carrasco.
SERVIDORA DA FUNAI REVELA ESQUEMA ESTADO DENUNCIA RELAÇÕES NO STF
FUNAI
Parentesco CTI FUNAI
CTI
MARIA AUXILIADORA
CRUZ DE SÁ LEÃO
ALUISIO LADEIRA AZANHA
MARIA INÊS
LADEIRA
GILBERTO AZANHA

Diário Catarinense - Por que o senhor começou a investigar processos de demarcação?

Edward Luz - Porque eu fui diretamente envolvido numa fraude, na demarcação do Baixo Rio Negro (Amazonas). O cenário indigenista era falso e estava todo armado, só faltava um antropólogo para o carimbo técnico. Isso aconteceu em 2007, quando eu fui aprovado num concurso de demarcação da terra indígena. Fui como antropólogo enviado pela Funai. De repente eu descobri que estava vivendo e agindo como um idiota útil. Eu achava que estava fazendo o certo, mas na verdade era um peão que fazia parte de uma articulação muito maior, mais ampla e que visava demarcar um território enorme dentro do Brasil. Os motivos com certeza não eram preservação cultural nem a proteção dos indígenas. Pelo contrário, descobri que os verdadeiros motivos atendiam aos interesses das ONGs "inter"nacionais.


DC - O que o senhor viu lá?

Luz - Eu me deparei com um esquema armado, onde havia uma associação indígena. Era ela quem tinha acionado originalmente a Funai. Eu descobri que essa associação estava comprada e era parceira de uma ONG nacional, que por sua vez estava comprada e era parceira de duas ONGs internacionais. Estas organizações internacionais tinham repassado R$ 2,3 milhões para que fosse feito um levantamento indígena. Foi feita uma catequese ao contrário, para que se convertesse não indígenas em indígenas.


DC - Qual era o objetivo?

Luz - A ONG nacional enviou índios – o mesmo que a CTI fez em Santa Catarina – do Alto Rio Negro, que já tinham as suas terras regularizadas, para o Baixo Rio Negro. Havia lugares em que toda a população era cabocla, ribeirinha. Eu vi isso, eram 120 não indígenas e só dois indígenas e por causa desses dois se reivindicava terra.


DC - Como o senhor tem certeza que não eram índios?

Luz - Eu cheguei numa comunidade onde tinha uma senhora chamada Jardelina, o nome já me chamou a atenção (Jardélina, no sotaque deles, é nome nordestino). Então eu perguntei pra ela: ‘A senhora que é a dona Jardelina?’. E ela respondeu: ‘Sou eu, sim sinhô’. Eu falei: ‘Então vocês que são os índios daqui, os índios baré?’. E ela disse: ‘Pois é, foi isso que disseram pra gente dizer pro senhor’. Eu seria muito estúpido se não percebesse os fatos.


DC - E o que o senhor fez?

Luz - No início eu não sabia para quem denunciar. Eu tentei primeiro na Funai, sem efeito, e de lá fui direto para Abin. Esse caso fez parte de um dossiê que foi entregue ao presidente Lula em 2009. Então comecei a desconfiar que não era um caso isolado, que os casos se repetiam. E esta hipótese se confirmou. Descobri pelo menos outros 17 casos (entre eles Morro dos Cavalos), estive em campo e constatei a fraude.


DC - O que aconteceu quando o senhor denunciou o caso à Funai?

Luz - O dia em que denunciei foi exatamente quando mudaram as pessoas que estavam na coordenação. Eu vi a pessoa com quem lidava diretamente arrumando a mesa e saindo e depois fui entender que todos estavam saindo (inclusive o presidente da época, Mércio Gomes). Dois dias depois eu fui chamado a prestar o relatório de campo (que geralmente se tem de uma semana a 15 dias para prestar). Quem me recebeu foi Aluisio Azanha e Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão, em abril de 2007. A resposta deles foi que eu precisava entender a importância de um processo de demarcação de terra indígena.


DC - E o que o senhor respondeu?

Luz - Consegui mais 15 dias de campo. Retornei para a região em julho de 2007. E foi aí que descobri tudo, descobri que existia uma grande tentativa de fraude. E foi por isso que comecei a me envolver com as investigações.


DC - O senhor está dizendo que a Funai era conivente com a fraude?

Luz - Absolutamente, do começo ao fim. E descobri depois que a Funai está cada vez mais conivente. As ONGs vieram aparelhando, a Funai foi aparelhada por ongueiros. A Funai está aparelhada.

EDWARD LUZ, antropólogo "A Funai está aparelhada"
Autor de um laudo técnico que contesta a maneira como foi feito o processo de demarcação de Morro dos Cavalos, o antropólogo graduado pela Universidade de Brasília (UnB) diz que existem pelo menos outros 17 casos semelhantes no país, que considera como fraude. Edward Luz conta que começou as investigações depois de ter se deparado com o que acredita ser um esquema de falsificação, que envolvia organizações indigenistas e Funai. Ele acredita que a história tenha sido incluída em um dossiê entregue pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) ao ex-presidente Lula, em 2009 – a Abin e ex-presidentes não podem comentar assuntos relacionados aos setores de inteligência. Em função da investigações, Edward Luz deixou de fazer parte da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e, desde então, é desafeto dos antropólogos ligados à Funai. O pesquisador respondeu às perguntas do Diário Catarinense por e-mail
O QUE DIZ O CTI
Os antropólogos do Centro de Trabalho Indigenista assumem a relação que têm com a Funai, mas negam que isto influencie a aprovação dos estudos realizados pela ONG. Coordenador-geral e um dos fundadores do Centro de Trabalho Indigenista, Gilberto Azanha diz que a Funai os procura porque são especialistas. Ele argumenta que não existem leis que proíbam antropólogos ligados a organizações de ocupar cargos no órgão federal e alega que “se for para avançar nas questões que tratam dos direitos dos indígenas, membros do CTI aceitarão fazer parte do quadro da Funai sempre que convidados”.
Sobre a mesma ONG elaborar e aprovar o próprio estudo, ele responde:
– Se fosse tão fácil assim já teríamos demarcado do Rio Grande do Sul até a Paraíba para os índios. O QUE DIZ A FUNAI
A presidente interina da Funai, Maria Augusta Assirati, afirma desconhecer o fato de alguém que pertence à ONG já ter trabalhado na fundação de forma concomitante. Sobre o diretor de Proteção Territorial, Aluisio Azanha, diz que ele optou por assumir carreira indigenista no âmbito interno do governo e, por isso, serve à Funai e não ao CTI. E, segundo ela, os estudos - mesmo que elaborados pelos antropólogos da organização não governamental - permanecem isentos, já que as demandas sobre as terras partiriam dos próprios índios. Os pesquisadores apenas corroboram.
_ Quem trabalha no poder público serve à instituição, quem trabalha na ONG tem outras formas de atuação. Não pode haver confusão entre gestão pública por pessoas nomeadas para os cargos e a política indigenista de ONGs.
Sobre as acusações de Edward Luz, Maria Augusta a se limitou a dizer que responde apenas pelo período da própria gestão (ela ocupa a presidência desde junho do ano passado). Ainda assim, disse se tratar de "criação de um estereótipo indevido do trabalho da Funai, que é pautada por leis e segue ordenamento jurídico e ético".
Mural
A série mostra o crescimento da população indígena no litoral de SC, associado à duplicação da BR-101. A história se inicia em Morro dos Cavalos. A Funai usa a demarcação da terra aos indígenas como moeda de troca para liberar a duplicação. Qual a sua opinião sobre essa polêmica?