O DESTINO INCERTO DAS
INDENIZAÇÕES (Parte 2) Levantamento do DC revela que mais de R$ 11 milhões foram recebidos pela Funai como compensação por obras de infraestrutura. A quantia deveria ser aplicada nas aldeias, mas o órgão não explica como isso foi feito. Parte 1 Introdução Parte 2 Parte 3 Parte 4 Parte 5 Linha do tempo
ocupação indígena no litoral de Santa Catarina – que aumentou de uma aldeia de 14 índios em Morro dos Cavalos para 19 outras áreas nas duas últimas décadas – motivou o repasse de mais de R$ 11 milhões à Fundação Nacional do Índio (Funai). O dinheiro é fruto de convênios gerados a partir de obras de infraestrutura e deveria ser gasto para minimizar impactos nas aldeias, o que é absolutamente legal. O problema, nesse caso, é que a Funai não explica onde a quantia foi aplicada.
Foram três convênios até agora: um com a Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil S.A., em 1998; e os outros dois com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT), pela duplicação da BR-101. O primeiro em 1997, relacionado ao trecho Garuva-Palhoça, e o segundo em 2002, por obras de ampliação do trecho sul da rodovia – este beneficiaria nove comunidades indígenas, cinco em Santa Catarina e quatro no Rio Grande do Sul.
Todos foram estabelecidos antes de a área que fica às margens da rodovia, cerca de 30 quilômetros ao sul de Florianópolis, ser reconhecida pelo Ministério da Justiça como terra indígena (o que aconteceu somente em 2008 e ainda depende de homologação da Presidência da República para ser oficializado). E, apesar de alta, a quantia não foi suficiente para garantir independência aos índios. Segundo depoimentos de indígenas que já habitaram Morro dos Cavalos, o terreno acidentado do local é inadequado ao plantio e a maioria sobrevive de programas sociais do governo.
Nos dois últimos convênios estabelecidos, o de 1998 e o de 2002, a Funai optou por retirar os índios de Morro dos Cavalos. Usou R$ 100 mil do gasoduto para comprar uma área em Imaruí, no Sul do Estado, para onde foram levados grupos indígenas que migraram para o litoral catarinense no início dos anos 90. Do repasse pela duplicação da 101 Sul, R$ 1,15 milhão foi destinado à compra de duas áreas em Major Gercino, na Grande Florianópolis. Também envolveu a retirada dos índios de Morro dos Cavalos, mudança realizada em abril de 2009.
A Funai não explica, porém, como o número de habitantes continuou crescendo mesmo com duas tentativas de esvaziamento da aldeia. Também não esclarece quem são os cerca de 200 índios que hoje ocupam Morro dos Cavalos, nem de onde vieram. Tampouco detalha o que foi feito com toda a quantia gerada pelos convênios.
No Portal da Transparência, onde deveria constar o encaminhamento dos recursos públicos, há poucos detalhes sobre a forma como a Funai gasta as quantias recebidas como compensação. O DC tentou desde janeiro que o órgão esclarecesse o uso do dinheiro.
Em documento oficial, obtido via Lei de Acesso à Informação, disse que só poderia fornecer dados a partir de 2005. A fundação se limitou a informar que até o ano passado, a quantia recebida em todo o país era superior a R$ 65,5 milhões (R$ 27,3 milhões recebidos por obras públicas e R$ 38,2 milhões por empreendimentos privados). Embora tenha revelado valores, não mostrou como o dinheiro dos convênios é aplicado.
– Isso nos preocupa. As prestações de contas precisam ser transparentes – diz o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Augusto Nardes.
A estrutura da Funai é analisada pelo tribunal, por meio de auditorias, desde 2005. Segundo Nardes, a fundação padece de problemas históricos relacionados à estrutura organizacional e insuficiência de servidores, o que daria ainda mais respaldo à inoperância do órgão. FUNAI DIZ QUE NÃO DISCUTE VALORES
Presidente interina da Funai desde junho do ano passado, Maria Augusta Assirati pondera que já foram feitas mudanças no processo das indenizações. Ela diz que atualmente, em vez de receber dinheiro (em uma conta bancária destinada aos indígenas, mas gerida pela Funai), são desenvolvidos programas básicos ambientais nos quais são detalhadas as ações que precisam ser desenvolvidas para minimizar o impacto gerado pelas obras de infraestrutura às comunidades. Desta maneira, o empreendedor é quem precisa atender as demandas estabelecidas.
– Nem sequer discutimos valores no processo, só falamos de projetos – argumenta Maria Augusta.
Autor de um laudo técnico que contesta os trabalhos de reconhecimento da terra indígena Morro dos Cavalos, o antropólogo Edward Luz já prestou serviços como funcionário terceirizado da Funai, para estudos de demarcação. Ele acredita que a ONG Centro de Trabalho Indigenista (CTI), peça-chave no caso de SC, tenha sido beneficiada indiretamente – a partir do financiamento de projetos gerados com a ocupação dos índios, que acabou sendo legitimada pelos convênios.
– Esse dinheiro fortaleceu e financiou o Programa Guarani, que é um projeto geopolítico de expansão do poderio indígena no Brasil, por meio de transferência de populações para o Sul e Sudeste. O lucro viria indiretamente, de projetos e de apoiadores internacionais. A estratégia era a de auferir ganhos para comprar terras e dar continuidade à movimentação indígena – sustenta o antropólogo Edward Luz.
Uma das organizações indigenistas mais influentes do país, o CTI não esconde o apoio financeiro que recebe de instituições internacionais. Em sua página na internet estampa: há financiamento de entidades da Alemanha, Áustria, Canadá, Espanha, Estados Unidos, Holanda, Inglaterra, Itália, Noruega, Suíça além de empresas e organizações brasileiras. Não há informações, porém, sobre as quantias recebidas.
O Programa Guarani de fato existe e se direciona à regularização de áreas para índios. É um dos carros-chefes da ONG. Foi colocado em prática antes de a antropóloga Maria Inês Ladeira, coordenadora do CTI, solicitar à Funai a demarcação de Morro dos Cavalos e tem rendido apoio financeiro à organização. Entretanto, Maria Inês considera fantasiosa a análise do colega Edward Luz.
– O objetivo do programa é o de recolonizar o litoral do país com índios? Olha, é um belo projeto – ironiza a antropóloga do CTI.
Segundo ela, o trabalho que realiza na ONG é feito a partir das solicitações dos grupos indígenas. Maria Inês diz que apenas encaminha as demandas. Sobre o apoio financeiro que recebe pelo programa, a antropóloga atribui à competência do trabalho e ao acesso que o CTI tem com os povos indígenas.
A O DESABAFO DO PRIMEIRO ÍNDIO DE MORRO DOS CAVALOS TENTATIVA DE ESVAZIAR A RESERVA FUNAI OMITE INFORMAÇÃO A IGNORÂNCIA DO PODER PÚBLICO ONG TEM UM LOTE DE FINANCIADORES
Aos 57 anos, afastado da aldeia e sobrevivendo de doações, Milton Moreira, descendente da família que deu origem à demarcação, afirma que se sentiu usado e denuncia Funai e ONGs indigenistas por “importar índios” para povoar a região e se beneficiar com as medidas compensatórias das obras de infraestrutura.
M
 ilton Moreira é índio guarani, filho de paraguaio e um dos primeiros a se instalar na região de Morro dos Cavalos – tinha só quatro anos na época em que os pais decidiram partir da fronteira do Paraguai.
O indígena, que é da etnia nhandeva, mora acampado com a mulher e os filhos às margens da BR-101 desde que foram expulsos de Morro dos Cavalos por índios de uma outra etnia, a mbyá, que hoje ocupa a área. Segundo Moreira, os atuais moradores da reserva migraram em veículos fretados pela Funai e ONGs. Prática que aconteceria desde os anos 90, depois que teve início o processo de demarcação da área, afirma.
Em gravações a que o Diário Catarinense teve acesso, o líder da aldeia de Imaruí (área adquirida a partir de compensação ambiental), Augusto Silva, revela a um antropólogo que fez parte da primeira leva de indígenas a migrar para o litoral nos anos 90. Ele confirma a informação de Moreira: a viagem até Morro dos Cavalos foi “feita em um caminhão fretado pela Funai”.
Augusto Silva morava na reserva indígena de Cantagalo, no Rio Grande do Sul – para onde havia migrado depois de viver 15 anos na Argentina e em municípios da fronteira com o Paraná e Oeste de SC. Afirma que saiu de lá porque foi induzido por antropólogos ligados a ONGs, apontadas como as responsáveis por garantir às comunidades abordadas que o governo de Santa Catarina estaria distribuindo terras aos índios .
O primeiro relatório da Funai sobre Morro dos Cavalos, elaborado em 1995, cita a migração de Augusto Silva. Ele era o líder de um grupo com cerca de 30 pessoas que, ao chegar ao litoral catarinense, acampou às margens da rodovia. De acordo com o que consta no documento, os indígenas viviam em condições subumanas naquele local. Eles mal tinham o que comer, às vezes procuravam alimento nos lixos de Florianópolis – onde vendiam artesanato.
Cacique na aldeia de Major Gercino (adquirida com recursos de compensação pelos impactos das obras de duplicação da BR-101), Artur Benites é mais uma testemunha do período de miséria em Morro dos Cavalos. Ele conta que chegou à região em 1994, quando deixou o Rio Grande do Sul (passou por Tenente Portela e Cacique Doble), e permaneceu até 2009.
Uma das principais recordações trata da subsistência: em Morro dos Cavalos mal se podia plantar. As características geográficas do local, que tem terreno acidentado, impediam a pujança da lavoura. Assim, Benites e o seu grupo eram obrigados a esperar o fim do mês, quando recebiam o Bolsa Família. O cacique reclama que quase não sobrava para comprar comida. E ele habitou Morro dos Cavalos exatamente no período em que três convênios prometiam melhorar a vida dos grupos indígenas que ocupavam o litoral.
SITUAÇÃO DE MISÉRIA É HISTÓRICA E RECONHECIDA DEPENDÊNCIA DE PROGRAMAS SOCIAIS
"O índio não é culpado, o índio está sendo usado"
MILTON MOREIRA, membro da família que deu origem ao processo de demarcação de Morro dos Cavalos
PROCURADORA CONTESTA RELATO A procuradora do Ministério Público Federal Analúcia Hartmann contesta a versão do indígena Milton Moreira. Afirma que ele e as irmãs nasceram em Morro dos Cavalos e que saíram de lá por vontade própria em 1995. Na tentativa de retornar à região, já nos anos 2000, Moreira teria se desentendido com o grupo que atualmente ocupa a área e por isso foi expulso.
Moreira conta que a briga aconteceu porque a Funai permitiu a ocupação de povos indígenas diferentes, com hábitos distintos. A procuradora nega.
– O Milton faz confusão. Ele diz que não, mas ele nasceu lá. E ele também inventou outra coisa: Milton diz que a atual cacique é kaingang (grupo indígena que vive no Oeste de Santa Catarina), mas não é verdade. Ela nasceu em uma terra kaingang, no Oeste, mas ela é guarani – afirma a procuradora.
GRANDES RESERVAS INDÍGENAS NÃO SÃO SINÔNIMO DE UMA VIDA DIGNA O Tribunal de Contas da União, que por meio de auditorias analisa o trabalho da Funai, tem uma série de questionamentos sobre o tratamento dado pelo órgão às comunidades beneficiadas por processos de demarcação. Para o presidente do TCU, há abandono nas áreas após a finalização do reconhecimento.
aproveitamento das áreas preservadas do país – tanto ambientais quanto indígenas –, foi objeto de análise do Tribunal de Contas da União (TCU), órgão que também realiza auditorias frequentes para avaliar a estrutura e o trabalho da Fundação Nacional do Índio (Funai). Para o ministro Augusto Nardes, que preside o TCU, não há dúvidas sobre a situação de descaso a que as comunidades indígenas de terras demarcadas estão submetidas.
– Não adianta fazer demarcação de terra se não der apoio. Há abandono nas áreas de proteção aos índios – analisa o presidente do Tribunal de Contas.
Jornalista e pesquisador radicado no Brasil há quase 30 anos, o mexicano Lorenzo Carrasco estuda a influência de organizações nacionais e internacionais nas ações do governo brasileiro desde 1988 e publicou três livros sobre o tema. Ele dá peso à declaração do ministro do TCU ao usar o caso da Raposa Serra do Sol (reserva indígena de Roraima, com 1,73 milhão de hectares) como exemplo. Sobrevoou a reserva no ano passado e diz ter ficado impressionado com o abandono do local. Havia gado morto e pouca produtividade na terra e uma parcela de índios já não vivia mais lá – era encontrada nos lixões de Boa Vista, a capital do Estado.
Segundo Carrasco, “as comunidades indígenas, de uma maneira geral no país, recebem atenções cosméticas”. Para ele, mesmo a demarcação de áreas imensas não significa a garantia de que os índios vão deixar de viver em condições precárias.
– Isto é uma violação dos direitos humanos. Trata-se de crime: os índios são obrigados a viver confinados e em estado de miséria. Foi cassado o direito de progredir, pré-requisito natural para o desenvolvimento do homem, para que se mantenha a condição de folclore e se ganhe dinheiro com isso – indigna-se o pesquisador mexicano.
Para a antropóloga Maria Inês Ladeira (que solicitou o início do processo de demarcação de Morro dos Cavalos e depois foi contratada para pela Funai para o estudo que propôs delimitar 1.988 hectares), no entanto, a situação de miséria só acontece porque a área ainda não pode ser usada pelos índios. Isto porque o processo ainda não está concluído (apesar de reconhecido pelo Ministério da Justiça ainda não foi homologado pela Presidência da República). ANTROPÓLOGA RECONHECE QUE ÁREA É INADEQUADA – Eles não podem ocupar o outro lado da estrada (área a oeste da BR-101 Sul), que apontamos no estudo como as áreas de roça. Eles estão no pior lugar para o plantio. E se dizem enganados porque imaginavam que as terras fossem ser demarcadas – defende Maria Inês Ladeira.
Sobre a vinda de grupos indígenas da Argentina, Paraguai e oeste do Rio Grande do Sul, a antropóloga argumenta se tratar da dinâmica social dos índios guaranis. Ela nega a interferência da ONG no processo de migração. E tem o apoio da procuradora do Ministério Público Federal em Florianópolis, Analúcia Hartmann.
A procuradora é a representante do órgão nas questões indígenas em Santa Catarina e travou um duro embate com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) desde o início dos anos 2000, quando começou a se discutir a duplicação do trecho da BR-101 que corta a reserva. Estão previstos dois túneis e a obra é a única de toda a extensão, de Palhoça a Osório (RS), ainda em fase de licenciamento. A procuradora cita Morro dos Cavalos como uma área de trânsito, importante pela localização de fácil acesso aos centros urbanos. Ela diz que não se pode comparar o modo de vida dos grupos indígenas do Sul com os que vivem na Amazônia. Segundo ela, os índios da região litorânea sobrevivem da venda do artesanato e do trabalho avulso, muitos servem à construção civil em Palhoça.
O
Mural
A série mostra o crescimento da população indígena no litoral de SC, associado à duplicação da BR-101. A história se inicia em Morro dos Cavalos. A Funai usa a demarcação da terra aos indígenas como moeda de troca para liberar a duplicação. Qual a sua opinião sobre essa polêmica?