Semana Farroupilha | 18/09/2010 16h31min
Desde terça-feira (14) até a próxima segunda-feira, Zerohora.com publica a série de contos "Causos de João Furtuoso", em comemoração à Semana Farroupilha. Personagem criado por Dioclécio Lopes, João Furtuoso é protagonista das narrativas ambientadas na zona rural, mais precisamente em um lugar chamado Bom Jardim, palco da difusão dos costumes, dos afazeres e da linguagem utilizada pelas gentes que marcam e mantêm acesa a cultura gaúcha.
POTRO BAIO
UM TEMPORAL daqueles baixou em todos os rincões do Bom Jardim, eram ventos que relinchavam nos oitões, bufavam entre as frestas de portas e janelas. Era chuva que Deus mandava, alagando potreiros, transbordando açudes e arroios.
Num tempo daqueles quase nada se podia fazer. A peonada conciliava-se no galpão para jogar cartas, tomar chimarrão, contar causos, trançar cordas... Especialmente neste dia, João Furtuoso aquietara o corpo sobre um banco mocho, acendera o cigarro de palha e ficava a tampar e a destampar o isqueiro prateado, herança de seu avô Gaudêncio Furtuoso. Entre baforadas, destramelou as lembranças para o tempo em que usava calças curtas e para a manada de irmãos que se empilhavam na casinha modesta de chão batido e de cobertura de santa-fé. E narrou-lhes uma desdita.
"Certa feita, recebi um potro domado em troca de meio ano de serviços prestados a um fazendeiro vizinho. Era de porte o animalzinho: pelo baio, crinas finas e longas, um trote macio, e manso que só se vendo. Com ele eu cruzava num galope os campos das redondezas, subia e descia coxilhas, disparava em direção à venda do Seu Acácio para carregar alguns mantimentos na mala de garupa apoiada com cuidado sobre lombo lustroso do potro. Era de se ver o meu orgulho montado naquele animal: peito estufado, cabeça altiva — um garnizé metido a galo. Não poucas vezes apostava corrida com a gurizada, dando-lhes um bocado de luz, para em seguida polvilhá-los de poeira humilhante.
Duma feita, num dia de sol escaldante — fazia uma seca danada — coloquei o potro à soga para que pastasse, à sombra de uma figueira para que descansasse. Pois foi ali, bem ali (barbaridade!), que uma cruzeira impiedosa e traiçoeira rasgou o couro do animal para cravar o veneno silencioso da morte. E numa lonjura daquelas não houve coisas que pudessem fazer a não ser benzeduras e rezas comandadas por Vovó Cututa, pronto-socorro de gentes e animais do Bom Jardim.
Foram dias de luto como de gente. Por três luas, eu não disse além de bom-dia e boa-tarde. Me preguei embaixo de uma ramada ao lado do rancho de pau a pique, com o olhar perdido no horizonte, como que evocando talvez um milagre que eu sabia impossível — o despontar garboso do potro na porteira e o seu relincho denunciador de saudades."
Um peão pigarreou, Tenório comentou uma notícia da cidade, outro lhe passou a cuia Princesa para romper o fio das tétricas lembranças de guri.
— Credo, homidideus, qui falta me fez aquele animalzinho, hein?! — disse dessa
feita Furtuoso, voz embargada, enquanto a tordilha relinchava no potreiro e o cusco Piloto repousava a cabeça sobre o bico da bota de seu dono.
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