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Semana Farroupilha  | 15/09/2010 05h11min

Contos Gauchescos: O baile do Bom Jardim

Até segunda-feira, Zerohora.com publica série de contos de Dioclécio Lopes

Desde terça-feira (14) até a próxima segunda-feira, Zerohora.com publica a série de contos "Causos de João Furtuoso", em comemoração à Semana Farroupilha. Personagem criado por Dioclécio Lopes, João Furtuoso é protagonista das narrativas ambientadas na zona rural, mais precisamente em um lugar chamado Bom Jardim, palco da difusão dos costumes, dos afazeres e da linguagem utilizada pelas gentes que marcam e mantêm acesa a cultura gaúcha.

O BAILE DO BOM JARDIM

O baile do Bom Jardim corria solto e faceiro, animado por uma gaiteira baixota, corpo atarracado, cabelos presos por uma diadema prateada; e pelo famoso violonista e cantor Ademar Machado, alto e magro, suíça espichada quase ao canto da boca — olhar de gavião rondando a presa. Dizem que o ajoujo dos dois ocorreu contra a vontade do pai da moça, para quem a vida de artista era "para os indolentes, para os mandriães". Juntos já haviam percorrido quase todos os recantos do Bom Jardim, animando até velhinhos de oitenta atacados por reumatismo dos brabos.

Naquela noite estrelada, dizem que havia no salão uma morena lá por seus dezoito anos, cintura fina, olhos muito verdes e sorriso provocador. Ademar Machado — em cima do coreto — dedilhava o violão com a maestria costumeira e soltava o vozeirão que estrondava por todo o recinto e ainda fazia sobrar esmola para quem tenteava barganhar meia-entrada na portaria.

Mas não demorou muito para que os olhos do artista campereassem os olhos verdes da linda morena, e esta lhe endereçasse sorriso envolto de promessas.

E delequedele baile.

João Furtuoso não raro tonteava as moças na terceira volta de salão, tais os giros rápidos nos calcanhares, impulsionados por uma destreza misteriosa a cada valsa, a cada rancheira, a cada vanerão. O certo é que poucas aguentavam o seu ritmo alucinante, mas também é certo que todas davam um dedo para serem cortejadas pelo exímio dançador.

Perto da meia-noite parou-se o baile para a churrascada e os tragos costumeiros. Naquela hora, a conversa entre os pares ganhava mais intimidade, e amarrar um namoro ou noivado era coisa muito comum. Tiniam copos e garrafas, garçons relampejavam entre as mesas, e os viventes que há tempos não se viam cumprimentavam-se num quebra-costelas amistoso e, de imediato, incendiavam as conversas com dezenas de piadas bagaceiras e dúzias de mentiras deslavadas.

Lá pelas tantas, todos já aguardavam o reinício do baile. A gaiteira baixota desapresilhava a sanfona e acariciava os teclados, fazendo de vez em quando algum floreio...

— Onde se meteu o Ademar Machado? — perguntavam-se todos, enquanto os olhos varriam cada canto do salão. A sanfoneira, então, não teve dúvidas, meteu a sanfona no estojo e, a passos miudinhos, alcançou a saída, sumindo sob a noite estrelada.

O dono do baile do Bom Jardim — não se dando por perdido — descobriu uma gaita de oito baixos empoeirada que jazia em cima de um jirau, sem jamais desconfiar que a poucos passos dali o violonista e cantor Ademar Machado e a morena de olhos verdes faziam dos pelegos a cama e das selas os travesseiros.

E assim na pressão, no embate da decisão do entrar ou ficar fora, João Furtuoso viu-se empurrado para cima do coreto, apresilhado à sanfona cheia de pó, despejando nos teclados e contrabaixo nada mais que intuições musicais aprendidas de ouvido e tocadas apenas nas churrascadas na Estância do Minuano.

E foi um tal de inheco-inheco-vum desgovernado até o amanhecer, atropelando notas e ferindo ritmos sem que ninguém, ninguém mesmo levasse isso em conta, porque o mais importante, naquela hora, eram as danças, os namoros, as conversas, a alegria que dominavam os espíritos daqueles viventes.

— Credo, homidideus, quigaitinha das boas, hein?! — disse desta vez Furtuoso no fim da bailanta, enquanto retirava dos bolsos da bombacha dezenas de bilhetes de admiradoras — fruto do sucesso no manejo da sanfona, cujo fole abriu-se mais do que porteira em dia de festa.

ZEROHORA.COM
Thiago Machado, Arte ZH / 

"Dizem que havia no salão uma morena lá por seus dezoito anos, cintura fina, olhos muito verdes e sorriso provocador"
Foto:  Thiago Machado, Arte ZH


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