Semana Farroupilha | 14/09/2010 05h10min
De terça-feira (14) até a próxima segunda-feira, Zerohora.com publica a série de contos "Causos de João Furtuoso", em comemoração à Semana Farroupilha. Personagem criado por Dioclécio Lopes, João Furtuoso é protagonista das narrativas ambientadas na zona rural, mais precisamente em um lugar chamado Bom Jardim, palco da difusão dos costumes, dos afazeres e da linguagem utilizada pelas gentes que marcam e mantêm acesa a cultura gaúcha.
A PESCARIA
Era noite fechada às margens do Arroio dos Tigres e a peonada da Estância do Minuano preparava a pesca que prometia das boas. Encordoava vivente na barranca do arroio na ânsia de fisgar traíras e dourados que, iludidos pelas iscas traiçoeiras, tornavam-se presas fáceis dos anzóis.
O trago corria solto pelo gargalo, e um dos peões — com todo gosto e paciência — ia limpando e fritando os peixes em uma panela de ferro de três pés à luz de lampiões suspensos em galhos de árvores nativas.
Lá pelas tantas, falava-se de mulheres. Adão Tinhoso dizia que a maioria delas era interesseira, chamadas marias-fazendeiras e marias-gasolinas — sem dúvida, sem dúvida — repetia. Tenório discursou de pronto: disse que as mulheres gostam é de homens durões, que não se deixam botar canga, que tomam decisões sem pestanejar. João Furtuoso filosofou que o homem tem é que conhecer a alma das mulheres e assim dar o pealo certeiro.
Conversa vem, conversa vai, o assunto pendeu para o lado do sobrenatural. Artur Guidério, voz picotada depois de alguns goles, disse que por muitas vezes, ali mesmo, apareceram-lhe seu avô Adroaldo e seu tio Adão durante as pescarias que fazia solito. E, não raro, instruíam-no a atirar as linhas mais para baixo ou mais para cima do arroio — no que sempre estavam certos.
A peonada engoliu em seco.
Conta-se que justamente nesse ponto da conversa uma espinha de peixe atravessou-se inflexível na garganta de João Furtuoso, tirando-lhe a fala e assustando a paisanada. Deram-lhe água, cachaça, miolo de pão, e nada... O último recurso seria levá-lo até a Estância e dali correndo para a cidade na velha Rural. Até que — creiam — no meio do arroio surgiu a figura inconfundível de Gaudêncio Furtuoso — avô de João — falecido há uma quantidade de tempo. Deslizou sorridente sobre as águas, subiu o barranco sem esforço algum. E sem dizer palavra aproximou-se do neto trêmulo, olhou-o nos olhos, acariciou seu rosto desbotado e, com precisão cirúrgica, arrancou-lhe a espinha que o atormentava. Beijou-lhe a testa suada, deu-lhe as costas e voltou de onde saíra.
Mas pra que foi! Não é preciso dizer como reagiram todos aqueles viventes tidos como valentes — simplesmente perderam o dom da fala até a chegada à Estância do Minuano — sem nenhuma linha e sem peixe algum . E mais: naquela noite ninguém conseguiu pregar direito o olho, porque a cada estalo de galhos secos, a cada farfalhar de folhas do arvoredo, a cada movimento dos cachorros, tudo era motivo de suspense e inquietações.
— Credo, homidideus, quipescariazinha pavorosa, hein?! — disse Furtuoso, só no outro dia, apalpando, nervosamente, a aba do chapéu de barbicacho, sem ainda notar que num dos bolsos da bombacha a espinha de peixe era mais uma prova definitiva de que os mortos continuam vivos.
Arre!
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