Semana Farroupilha | 17/09/2010 05h10min
Desde terça-feira (14) até a próxima segunda-feira, Zerohora.com publica a série de contos "Causos de João Furtuoso", em comemoração à Semana Farroupilha. Personagem criado por Dioclécio Lopes, João Furtuoso é protagonista das narrativas ambientadas na zona rural, mais precisamente em um lugar chamado Bom Jardim, palco da difusão dos costumes, dos afazeres e da linguagem utilizada pelas gentes que marcam e mantêm acesa a cultura gaúcha.
UM TIPO ATREVIDO
O baile do Bom Jardim corria muito enfezado. Um gaiteiro e um violonista compartilhavam suas destrezas nas cordas e nos teclados, enquanto o baterista esforçava-se para não fazer feio.
Mas como nem tudo é perfeito, correu no salão a notícia de que havia chegado um tal de Jorginho Mulato, homem forte, cara de poucos amigos, queixo comprido disfarçado por um ralo cavanhaque. A fama de brigão já havia ultrapassado as fronteiras do Bom Jardim e se instalado em muitos lugarejos como Passo Feio, Novo Alecrim e Lagoão. Ouvia-se dizer que o valente tinha metido meia dúzias de desafiadores na cova e lanhado uma dezena de indivíduos que tentavam equiparar-se nas virtudes do manejo do manda-balas e da navalha de fio ameaçador.
Contam alguns, que lá pela meia-noite parou-se a música para que a paisanada descansasse os ossos, saboreasse a carne assada e tomasse os tragos servidos por viventes pilchados a capricho. Nesse momento, Furtuoso caminhava por um corredor estreito formado pelo gentario e, no repente, surge à sua frente a figura atarracada e atrevida de Jorginho Mulato, justo no espaço em que cabia só um. Com as mãos na cintura, o valente folgado olhou-o de cima a baixo, cravou-lhe os olhos de fuzis e entreabriu os lábios num sinal de desdém provocador.
O peão da Estância do Minuano não era chegado a confusão, mas numa situação daquelas não recuaria. Então, firmou o pé no assoalho, e usando da força descomunal adquirida nas lidas da Estância do Minuano foi levando o brigão por diante até uma clareira no meio do povo, sempre olhando-o nos olhos, rangendo os dentes e acelerando os instintos para um embate iminente.
O pessoal assistia à cena com os olhos mais arregalados do que mudo que viu assombração. O que todos achavam e que não tinham coragem de dizer numa hora medonha daquelas é que finalmente Jorginho Mulato havia encontrado alguém que lhe peitasse, que não lhe baixasse a crista, que não se borrasse de medo. Mas um gaiato inconsequente (que barbaridade!) gritou em alto e bom som:
— Essa sai ou não sai?!
Mas como Jorginho Mulato, justamente naquela ocasião, não portava as armas na cintura, nem sequer a vilania de algum cúmplice das arapucas costumeiras, sentiu a lhe afrouxarem as pernas, um suor frio a lhe escorrer pelo rosto pálido, os olhos a ficar embaçados, o corpo a se tornar insustentável e o salão a rodar como globo de bingo, até tombar de borco sobre o assoalho empoeirado, como burro que comeu urtiga.
A paisanada — emudecida — levou as mãos à boca para abafar a indisfarçável incredulidade, mas não a ponto de impedir um sonoro BAH!!! que viajou como um trovão por todo o recinto. E respirou aliviada. Afinal, não houve morte, nem sangue, nem drama...
E em seguida, a sanfona abriu o fole, o violão trinou seus acordes e o baile só parou quando despontaram os primeiros raios de sol entre o galhario das pitangueiras.
— Credo, homidideus, quipiãozinho metido a facão sem cabo, hein? — disse dessa feita Furtuoso, ajustando o chapéu sobre a cabeça e cercado por prendas admiradoras da valentia, enquanto Jorginho Mulato era socorrido por um peão metido a veterinário.
"Finalmente Jorginho Mulato havia encontrado alguém que lhe peitasse, que não lhe baixasse a crista"
Foto:
Godinho, Arte ZH
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