Semana Farroupilha | 16/09/2010 05h10min
Desde terça-feira (14) até a próxima segunda-feira, Zerohora.com publica a série de contos "Causos de João Furtuoso", em comemoração à Semana Farroupilha. Personagem criado por Dioclécio Lopes, João Furtuoso é protagonista das narrativas ambientadas na zona rural, mais precisamente em um lugar chamado Bom Jardim, palco da difusão dos costumes, dos afazeres e da linguagem utilizada pelas gentes que marcam e mantêm acesa a cultura gaúcha.
A PROFESSORA QUE DEU A LETRA
Antônio Balta achou que era hora da peonada ficar mais instruída. Chamou João Furtuoso e lhe disse que na semana seguinte teriam aula com uma professora contratada exclusivamente para ensinar-lhes as letras, que muitos mal sabiam assinar o nome.
Criou-se um alvoroço no galpão. As rudezas das lidas campeiras haviam engrossado as mãos calejadas da peonada e limitado os movimentos finos e exigentes do lápis e da caneta. Mas se o patrão mandou...
Numa segunda-feira, manhezita de início de inverno, encostou uma charrete puxada por uma parelha de cavalos baios bem-cuidados. Pezinhos delicados, envoltos em botinas brancas, tocaram o chão da Fazenda do Minuano pela primeira vez. Era uma ruivinha de olhos vivos e azuis, corpo bem acabado pelo Arquiteto das Alturas, e de um sorriso de espantar a até mesmo a dor de vivente estropiado por uma novilha arisca.
A voz macia da moça adocicou o ar da sala de aula improvisada do casarão. Os ignorantes tentavam causar a melhor das impressões à professorinha, que já marcava o quadro-negro com o "bê-á-bá" sonorizado pela repetição entusiasmada da peonada. Manter a escrita nos limites das linhas do caderno foi algo penoso. O lápis, teimoso, descia e subia os fios como carro dirigido por motorista reprovado em teste de bafômetro. Os dedos, meio tortos e rijos, ora encurtavam algumas palavras, ora alongavam demasiadamente outras.
A professorinha, ah a professorinha! O perfume que ela exalava quando passava de classe em classe embriagava a gauchada como cachaça das boas. Os seus passos gravados no assoalho e na mente de cada um, ora freavam a respiração, ora aceleravam os sentidos daqueles homens toscos. Num dia a professora estava bonita, no outro, linda, e no seguinte exageradamente bela. Na fazenda do Minuano — cheia de homens vividos — nunca se esperou tanto o raiar do dia com tanta ansiedade, nem se usou tanto cheiro, jamais se alinharam tantos cabelos e nunca a Negra Carminha passou tantas bombachas e camisas.
Ao cabo de três meses e pouco, aqueles gaúchos rudes passaram a escrever-lhe versinhos e a presenteá-la com mimos baratos que ela valorizava com sorrisos largos e beijos miúdos.
Mas numa manhã gelada pelo implacável minuano (que barbaridade!), a porta da sala de aula do casarão não se abriu. De que se teve notícias, esse foi um dos dias mais improdutivos da fazenda de Antônio Balta. Todos ficaram mais apagados do que lampião sem querosene e mais tristes do que viúva de primeiro dia. O patrão, então, entregou-lhes uma pequena carta em que a professorinha dizia que amava a todos e que não tivera coragem de se despedir.
No dia seguinte, porém, quando a cuia Princesa girava nas mãos dos viventes, o patrão Antônio Balta foi chamado ao galpão. Desta vez, um verdadeiro abaixo-assinado sugerido por Furtuoso lhe foi entregue — os peões reivindicavam, com certa urgência, um segundo curso das letras, porque ler e escrever já sabiam e isso já consideravam muito pouco.
— Credo, homidideus, o que é o estudo, hein?! — disse dessa vez Furtuoso, enquanto subscritava uma carta à ruivinha dos olhos azuis, sem que ninguém, ninguém mesmo desconfiasse que a relação dos dois já havia rompido os limites de amizade entre professora e aluno.
"A voz macia da moça adocicou o ar da sala de aula improvisada do casarão"
Foto:
Guilherme Gonçalves, Arte ZH
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