Desde terça-feira (14) até a próxima segunda-feira, Zerohora.com publica a série de contos "Causos de João Furtuoso", em comemoração à Semana Farroupilha. Personagem criado por Dioclécio Lopes, João Furtuoso é protagonista das narrativas ambientadas na zona rural, mais precisamente em um lugar chamado Bom Jardim, palco da difusão dos costumes, dos afazeres e da linguagem utilizada pelas gentes que marcam e mantêm acesa a cultura gaúcha.

Carro de boi

ONOFRE estava se dirigindo à Fazenda do Minuano pertinho do meio-dia, horário em que as panelas de ferro, comandadas pela Negra Carminha, iniciavam uma batucada que soava pelo terreiro, cruzava o arvoredo e se instalava no galpão. Lá a peonada lavava braços, mãos e caras numa bacia de louça esmaltada.

O ronco como de trilhadeira chamou a atenção dos viventes que saltaram para a rua, de olhos atentos e de ouvidos aguçados. À medida que o ruído se aproximava, mais assustadas voavam as aves, mais nervosos latiam os cuscos. Até que o Fusca azul esbarrou próximo à cancela do casarão.

Os peões juntaram-se ao carro mais amontoados que cacho de uva. Numa curiosidade de compradores, examinavam a lataria, observavam as calotas bojudas, alisavam o guidão, ouviam o rádio, cujo som mais parecia um enxame de abelhas africanas.

Enquanto se lambuzava com as fartas garfadas, Onofre destravou a língua. Disse que o seu Fusca era um chama-moça, que era valente no barro e furioso nos pedregulhos, que andava só com o cheiro de gasolina, que oficina só conhecia de passagem e coisa e tal.

Conta-se que João Furtuoso, embora nunca servisse pra trouxa, entusiasmou-se com toda aquela propaganda e, prevendo uma noitada das melhores, propôs um negócio imperdível: vinte sacos de milho debulhado, uma de junta de bois mansos e uma égua com cria pelo Fusquinha.

— Negócio fechado! — disse o faceiro Onofre.

Chovia canivete e relâmpagos faiscavam sobre os campos naquele sábado de frio de renguear cusco. Mas o 12º Fandango de Ouro do Bom Jardim era coisa imperdível. Havia concursos de danças, prêmios e... moças bonitas, é claro.

João girou a chave, o motor roncou alto, e os faróis iluminaram campo e porteira. Tenório e mais dois viventes se acomodaram sobre os bancos. A estrada estava um atoleiro só. Mais espichado que couro em estaca, o Fusquinha dava tudo que tinha, vencendo subidas, embalando em descidas, segurando-se nas curvas, até que — acelerado pela pressa e derrotado pela exigência — as rodas não mais se moveram bem diante da porteira da fazenda do Maneco.

Em meio àquele temporal, uma junta de bois foi a única salvação da gauchada aflita, que mecânico não existia. Um correntão preso na canga e no para-choque foi a saída para chegarem já de madrugada ao 12º Fandango de Ouro do Bom Jardim. Lá fora, os quatro peões com as roupas encharcadas e com as botas embarradas até o cano. Lá dentro, o ronco excitante da gaita de oito baixos, o acorde feliz do violão e o ruído entusiasmado de sapatos e de botas trepidando no assoalho gasto. E o pior: Helena, Marcinha, Jenita e Janira numa dança entusiasmada com seus pares que não fechavam a boca de tanta felicidade. E para desespero de João Furtuoso e Tenório, entre eles a figura conhecida de... ONOFRE!!

— Credo, homidideus, quidisastri dinegóciu, hein?! — disse dessa feita Furtuoso, com a aba do chapéu de barbicacho virado num arroio, enquanto Tenório tentava com algum morador conhecido alguns cavalos para poderem retornar à Fazenda do Minuano. Sem o Fusca.

Arre!!!