derradeira das 21 pás de terra vermelha jogadas sobre o caixão de Paulo Sérgio Pires Nunes, no início da tarde do dia 29 de abril de 2016, encerrou uma trajetória marcada pela exclusão e pela solidão.
Na foto ao lado de Rozeli, Paulo Sérgio é o menino que tenta mostrar o rosto, enquanto mastiga um pedaço de pão. Na vida, Paulo só costumava aparecer quando o nome dele era preenchido numa das ocorrências policiais às quais era vinculado.
Antes de ser assassinado com um tiro na axila na madrugada de 26 de janeiro deste ano, aos 28 anos, Paulo teve uma vida distante da família. A saída da Renascer, em 2002, e a despedida da mãe, Natalina Pires, vítima de cirrose em 2003, teriam servido como estopim para a abertura de um caminho que o levou à morte.
Em 2004, aos 16 anos, foi pego pela primeira vez por invasão de patrimônio. Os 16 registros por furto, dois por posse de entorpecentes, dois por tráfico, um por invasão de patrimônio e um por lesão corporal, indicam que ele furtava para manter o vício em álcool, cocaína e crack.
— Ele era um ninguém. Não tinha família, endereço fixo ou documentos. Passou por este mundo sem ser nada — comenta um policial civil da Capital que conheceu o histórico de Paulo.
A mais grave ocorrência também foi a última: um roubo a um mercado no Bairro Cristo Redentor, em 22 de maio de 2015. Portando uma faca, Paulo foi flagrado pelo proprietário do estabelecimento quando tentava carregar cigarros e uma garrafa de vodka. Para entrar no prédio, ele usou o telhado e caiu sobre caixas de garrafas. Acabou ferido. Detido em flagrante, ficou quase sete meses no Presídio Central até ganhar liberdade provisória em 9 de dezembro.
Menos de 50 dias depois, morreu enquanto tentava pedir ajuda num posto de gasolina onde duas semanas antes tinha tentado assaltar. Ele teria sido alvejado próximo ao local. O caso, considerado homicídio, segue sob investigação.
Desprezo
Por ter escolhido uma rotina de crimes, Paulo foi desprezado em vida pela família e desconsiderado após a morte. Um dia depois de morrer, ele teve o corpo reconhecido por um dos 11 irmãos, no Departamento Médico Legal (DML) da Capital.
Apesar de atestar a identidade, o irmão desapareceu antes de fazer os trâmites para o enterro. Enquanto a situação não se resolvia, Paulo compartilhou por 95 dias o mesmo espaço com outros dois cadáveres sem identificação na gaveta D da câmara fria do DML.
No início do mês de abril de 2016, um familiar paterno dele foi identificado pela reportagem e demonstrou surpresa ao saber que o sobrinho não havia sido enterrado. Porém, não fez questão de se envolver no caso.
Uma semana antes do enterro, outro irmão de Paulo foi localizado por funcionários do DML e negou-se a enterrá-lo. Alegou que os dois não tinham contato há mais de uma década e que eram irmãos apenas por parte materna. Sem alternativas, a direção do departamento optou pelo enterro social no Campo Santo do Cemitério da Santa Casa.
Duas únicas testemunhas
O caixão, a roupa e o sepultamento de Paulo Sérgio foram garantidos pelo Estado e pelo município.
— É triste, mas é comum. Muitas famílias não querem enterrar entes que tiveram uma vida no crime. Ele será sepultado sem ter ninguém por perto — lamentou uma funcionária do DML.
E foi exatamente assim que se encerrou a história de Paulo. Levado até o local por dois funcionários da perícia criminal, o corpo dele chegou às 11h50min ao cemitério e ficou numa capela.
Os funcionários negaram-se a enterrá-lo, mesmo em estado de decomposição, no horário do almoço – que havia iniciado 11h30min.
Duas horas depois, quatro sepultadores levaram o esquife até a cova 99, no alto do cemitério destinado aos sem posses financeiras em vida.
Dois deles ficaram para enterrá-lo. Em menos de cinco minutos, Claudiomiro Barbosa e Olímpio da Silva o sepultaram num buraco que tinha menos de 40cm de profundidade. Foram as únicas testemunhas daquele fim.
Campo Santo é o destino de três irmão da família Nunes
Quarto de uma família de 11 filhos, Paulo não foi o único dos Nunes a frequentar a Renascer. Na foto, outros três irmãos aparecem próximos a ele e a Rozeli. Luis Antonio tinha 14 anos, Maicon, oito, e Cristiane, cinco. Dos três, apenas ela segue viva.
Filhos de pais alcoólatras, as crianças sofriam com as crises da mãe. Quando ela bebia demais, expulsava os menores de casa. O pai também não se importava com a situação.
No Conselho Tutelar do bairro, Maicon e Cristiane ainda têm expediente aberto, mas as ocorrências desapareceram porque não havia sistema informatizado. Nas pastas, a mãe deu diferentes nomes e aparece como Natalia e Natalina. Um conselheiro da época conta que a família era desestruturada.
— As crianças cresceram nas ruas. Maicon pedia comida aos vizinhos. Cristiane teve o mesmo destino. Os pais eram chamados, mas a situação piorou quando eles morreram — lamenta.
Na Renascer, tiveram os períodos mais alegres. Ganhavam comida, roupas e faziam passeios ao lado de Rozeli.
Em casa, não tinham sequer registro de identidade e perderam os pais para a cirrose. Natalina em 2003. O pai, Nelson, dois anos depois.
Analfabeto
Maicon, cujo apelido era Coni, morreu analfabeto aos
14 anos. A tia Jacinta Nunes, 59 anos, mãe de Dionas Nunes Cordeiro, que também aparece na foto ao lado de Rozeli, recorda que o nome do menino foi uma homenagem a Nelson Marconi, comunicador da Rádio Farroupilha que morreu em 2012.
— A mãe dele gostava muito do programa da rádio e queria homenageá-lo. Como não conseguiu registrar Marconi, colocou Maicon e o chamava de Coni em casa — justifica.
Coni viveu nas ruas depois da morte da mãe e envolveu-se com as drogas. Aos 13 anos, a tia tentou levá-lo à escola, frequentada por apenas um mês.
— Ele morou comigo por um tempo e tentei recuperá-lo. Mas, infelizmente, já estava perdido. Ele tinha vergonha por ser mais velho do que as outras crianças. Não aguentou — lamenta Jacinta.
Numa tarde de agosto de 2006, Maicon foi alvejado por um disparo na cabeça próximo à entrada da Vila Bita, na Avenida Ignes Fagundes, no Bairro Restinga. Já tinha uma ocorrência por tráfico de drogas. Morreu um dia depois, no Hospital de Pronto Socorro. O suspeito do assassinato morreu com cinco tiros, no Bairro Vila Nova, em 2010.
Pouco se sabe sobre Luis Antônio, reconhecido pela tia apenas como Fia. Aliás, os três familiares localizados só lembraram do apelido do jovem, que costumava se esconder da família para fumar. Nas ocorrências por roubo e porte ilegal de arma também foi identificado pelo apelido.
No dia da morte dele, Fia estava com a companheira e teria sido alvejado por diversos disparos de arma de fogo na Rua C, na Vila Castelo. O suspeito foi um adolescente, que se suicidou dois anos depois. Fia morreu aos 18 anos, um ano depois da mãe, sem jamais ter ganho uma carteira de identidade.
As trajetórias de Maicon e de Luis Antonio, numa infeliz coincidência, encerraram-se no mesmo lugar que a de Paulo, em uma cova rasa do Campo Santo.
“Ele morou comigo por um tempo
e tentei recuperá-lo.
Mas, infelizmente,
já estava perdido.”
Jacinta Nunes, referindo-se ao sobrinho Maicon
Passado para esquecer
Na mesma época em que o pai morreu, Cristiane Nunes fugiu pela primeira vez de casa. Ela tinha dez anos – hoje, está com 20. Foi encontrada nas ruas do bairro e encaminhada pelo Conselho Tutelar a um abrigo. Não ficou uma semana no local e passou a morar com um parente que não tem contato com o restante da família. Ficou com ele por quase cinco anos.
Preocupada com o futuro da sobrinha, Jacinta contatou, mais uma vez, os conselheiros tutelares da região. Cristiane foi levada para um abrigo municipal, onde teria ficado até os 18 anos. Quando deixou a casa destinada a crianças em situação de vulnerabilidade, afastou-se da família. Hoje, é vista nas ruas da Restinga.
Durante a apuração da reportagem, chegou-se à casa onde ela estaria morando, na Vila Castelo. Também foi deixado recado com conhecidos dela. Rozeli tentou contato com a jovem, mas Cristiane preferiu o silêncio.
Por intermédio da tia, tentou-se falar com os dois irmãos mais velhos dos Nunes, que vivem em outros bairros da Zona Sul. Ambos se negaram a recordar o passado da família.