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 | 02/05/2011 15h38min

Crônica: a vingança de Malu

Em Milão, ela revisitou lugares que os dois curtiram juntos

Fabiano Moraes  |  fabiano.moraes@diario.com.br

Malu baixou a tela do laptop e tirou os óculos. Colocou-os cuidadosamente sobre a mesa. A lembrança daquela noite ainda doía. Se a mão de André não estava mais acariciando sua nuca como sempre fazia quando ela trabalhava em casa, foi porque não quis. Cansou de esperar por uma decisão que nunca veio. Durante a última conversa, até tentou ser compreensiva.

Os anos na faculdade de Psicologia serviram para que pelo menos não arremessasse na cara dele o conjunto de fondue trazido de Paris. Quis ser racional. Disse que parar de desejar para não se frustrar não parecia ser uma boa alternativa. Mais: afirmou que, se ele desejasse muito alguma coisa, teria certa dose de frustração, pois existem coisas que desejamos e que simplesmente nunca teremos.

André não entendeu a racionalidade da namorada e reagiu ao estilo masculino: prático e superficial. Ainda disse a frase errada no momento inadequado. O "vamos dar um tempo" primeiro devastou, depois colocou Malu de frente para o seu destino.

Naquele momento, viu os seis anos de namoro escapando como uma folha que se solta do galho e sai ao sabor do vento de outono. Nó na garganta, frio na barriga, vontade de chorar. Foi até o quarto, abriu a gaveta da cômoda e pegou o cartão de uma editora em São Paulo. Queria saber se a proposta de trabalho como tradutora e revisora em Milão ainda estava de pé. Resolveu ligar para a publisher nacional.

Oito dias depois, malas abertas em Milão e apartamento fechado em Florianópolis. Nina, a gata que ganhou de presente de André, ficou com a mãe, em Blumenau. Antes de sair de casa, a última olhada no mural de fotos. As do agora ex-casal ainda estavam lá. Deu um suspiro, ajeitou a bolsa e bateu a porta sem saber se voltaria — se eles voltariam.

Milão era a cidade do início do namoro. À tarde, em um passeio pela Duomo, um encontro com as memórias dos melhores momentos. Revisitou o beijo apaixonado que trocaram em frente à catedral gótica, numa tentativa tosca e divertida de imitar Alain Delon e Anne Girardot no filme Rocco e seus Irmãos. Mas veio também a lembrança da leitura daquele maldito e-mail.

A outra não era mais bonita, tampouco mais inteligente. Como pode ter cedido? Resistiu à tentação da pergunta-clichê "O que ela tem que eu não tenho?" A perplexidade tinha razão de ser. A tal era bem sem graça e Malu era o sonho de consumo de qualquer departamento de marketing. A combinação perfeita de embalagem e conteúdo.

A herança germânica evidenciada nos olhos de tonalidade azul-piscina, a intelectualidade (tinha doutorado na Sorbonne) disfarçada pela pele bronzeada, rotina diária de malhação e cuidados estéticos de quem foi acostumada a circular pelo Quadrilátero de Ouro e a sentir o "astral Dolce & Gabbana."

Não entendia o motivo da traição. Como poderia ter sido trocada? E as juras de fidelidade? Retomou a caminhada tentando esquecer as perguntas que gostaria de ter feito e não fez.

O trabalho na editora estava indo bem. Malu adaptada à vida na Itália, com novos amigos e planos. As lembranças dos seis anos de namoro rareando. A liberdade, quem sabe, estaria chegando para ela. Até que, em uma manhã fria em ensolarada, chega o e-mail: "Desembarco depois de amanhã. Vamos conversar e resolver tudo. Beijos, André". Malu sentiu. Querendo ou não, ele ainda era o dono do que ela tinha de melhor. O calor explodiu dentro dela. Tentou resistir, mas não deu. Passaram uma semana de sonho em um hotel na Piazza Del Tricolore.

Na semana seguinte, ainda em Milão, André pensa em um jantar surpresa para reatar o namoro definitivamente. Sobe as escadas do prédio dela com as embalagens de espaguete com tomates frescos e manjericão do Il Salotto di Milano e toca a campainha. Quem abre é outro. É Javier, escritor espanhol com quase dois metros de altura, total estilo latin lover, que mantinha com Malu uma "amizade com benefícios" há pouco mais de um ano.

Vendo que o jantar e a cara de decepção de André não eram para ele, Javier deixa a porta aberta e chama por Malu. Ela, de roupão e toalha na cabeça, pergunta se ele quer entrar e tomar um tinto com eles enquanto ela se arruma.

André deixa as embalagens sobre a mesa de jantar, narra o cardápio e vai embora com o mesmo nó na garganta, o frio na barriga e a vontade de chorar que fizeram Malu mudar de vida. Ela olhou para ele com ar resignado, fechou a porta e disse ao "amigo" espanhol: "Hoje nós vamos arrasar".

Ilustração de Lucas Abreu / Reprodução

Os seis anos de namoro escaparam como uma folha que se solta do galho e sai ao sabor do vento de outono
Foto:  Ilustração de Lucas Abreu  /  Reprodução


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