| 27/02/2008 15h39min
A imagem é tão forte que as emissoras de TV evitam exibi-la. A fratura no tornozelo do brasileiro naturalizado croata Eduardo da Silva, do Arsenal, após uma entrada violenta do zagueiro Martin Taylor, do Birmingham, durante jogo do Campeonato Inglês no último sábado, não só chocou o mundo do futebol como também reabriu o debate sobre a possível proibição do carrinho.
A manobra, que basicamente consiste em deslizar pelo gramado para interceptar a bola ou desarmar o adversário, é tão antiga quanto o próprio futebol. Foi inventada pelos pais do esporte, os ingleses, que a chamam de “sliding tackle”. Desde então, tem celebrizado jogadores pela destreza com que a executam e também quebrado ossos de tantos outros.
No futebol brasileiro, o caso mais notório de carrinho “criminoso” foi o aplicado por Márcio Nunes em Zico, em agosto de 1985 (veja o lance no Youtube). Bangu e Flamengo disputavam a final do Campeonato Carioca daquele ano, no Maracanã, quando o defensor atingiu em cheio o Galinho, que deixou o campo com lesões em ambos os joelhos e só voltou aos gramados depois de três cirurgias.
Zico certamente não foi a primeira vítima de um carrinho mal-intencionado. Mas depois dele, as campanhas para inibir a violência dentro de campo, sobretudo contra o carrinho, ganharam eco no Brasil. Cronistas esportivos consagrados como Armando Nogueira e Fernando Calazans têm defendido ao longo dos anos a proibição pura e simples da jogada.
– Seria esta a única solução para que o futebol continuasse a ser praticado com mais decência, com mais lealdade, com mais fair-play (...) Enquanto estiver entregue à interpretação dos sopradores de apito, vai acontecer o que acontece sistematicamente em nossos campos, em todas as rodadas: num jogo aqui, o cabeça-de-bagre dá o carrinho e é expulso; em dois, cinco, sete jogos acolá, outros cabeças-de-bagre desferem o mesmo carrinho e não levam sequer cartão amarelo – escreveu Calazans em sua coluna no jornal O Globo, em 6 de novembro de 2005.
As regras do jogo
Das 17 regras do futebol, a que versa sobre as faltas é a de número 12. Nela, não consta nenhuma proibição ao carrinho. Somente há alguns anos a International Board (grupo da Fifa responsável pelas leis do esporte) adicionou à regra a seguinte recomendação: “Uma entrada (carrinho) que põe em perigo a integridade física de um adversário deve ser punida como jogo brusco grave”. Ou seja, com cartão vermelho.
Ex-árbitro e hoje comentarista, o gaúcho Renato Marsiglia é contra a proibição do carrinho. Para ele, que apitou jogos da Copa do Mundo de 1994, trata-se de um recurso técnico lícito à disposição dos jogadores. Mas com a ressalva de que os exageros devem ser punidos com rigor não pelos árbitros, que nada podem fazer além de cumprirem a regra e expulsarem o jogador, mas sim pelos tribunais esportivos.
– Todo carrinho, por natureza, é uma jogada violenta. É uma jogada que os árbitros têm que inibir. Mas o que eles podem fazer? Mostrar cartão vermelho quando acontece. Cabe aos tribunais agir de forma enérgica nesse tipo de lance como uma forma de inibir outros de agir da mesma maneira – afirma Marsiglia.
– Não pode haver a proibição do carrinho. Existem jogadores que davam carrinhos sem sequer tocar no adversário. Mauro Galvão era um, Gamarra era outro. Tiravam a bola limpamente do adversário. É um recurso técnico e você não pode proibir o jogador da utilização desse recurso – acrescenta.
Carrinhos e carrinhos
Além dos dois citados por Marsiglia, outros defensores de técnica apurada fizeram do carrinho limpo sua marca registrada. O zagueiro uruguaio Dario Pereyra, que fez história com a camisa do São Paulo na década de 1980, é um deles. Para ele, o carrinho é o último recurso do zagueiro e deve ser usado com parcimônia. Além disso, há uma espécie de código de ética entre os jogadores que deve ser respeitado: jamais atingir o pé de apoio do adversário.
– Você só dá carinho quando não chega na bola, quando a bola já fugiu. Eu procurava não dar muito carrinho, mas quando dava visava a bola. Também há carrinhos e carrinhos. Nesse caso (do Eduardo da Silva), o jogador foi no pé de apoio dele. Aí nunca se deve dar carrinho. É uma jogada desleal e que pode quebrar a perna, como aconteceu.
Em vez da proibição do carrinho, Dario defende punições rigorosas para os casos de excesso. Ele considera um absurdo que Martin Taylor tenha sido punido com apenas três jogos de suspensão, enquanto Eduardo precisará de nove meses para se recuperar. E embora ninguém seja capaz de provar que havia intenção (o dolo), ele observa que o zagueiro inglês, no mínimo, foi imprudente.
Por outro lado, o carrinho também tem seus fãs. Há quem veja na jogada a própria síntese do futebol, um esporte onde nem sempre o melhor vence e que a força de vontade pode se sobrepor à técnica. E como observa Dario, há carrinhos e carrinhos. É bem provável que a maioria dos carrinhos desferidos ao redor do mundo não resulte em nenhum dano para os atacantes.
Certo é que, ao menos por enquanto, os zagueiros continuarão a deslizar pelo gramado com as travas da chuteira à mostra. Eventualmente, fazendo uma vítima aqui e outra ali. Assim como ninguém pode dizer quando ou se Eduardo da Silva recuperará integralmente os movimentos de seu pé esquerdo. Como todo jogador de futebol, ele conhecia os riscos inerentes à profissão antes de entrar em campo naquele sábado. E agora mais do que outros, sabe o significado da expressão “ossos do ofício”.
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