Dirceu desconhece os antepassados. Uma pista leva à Alemanha. Na estação das flores, o Diário Catarinense deixa o outono do Sul do Brasil e desembarca em maio de 2014, no distrito de Esselborn em busca da origem da família Canofre

verdade que a água do mar é salgada?

 

Pergunta Dirceu Canofre de Campos. Ele ignora a proximidade com as correntes do oceano Atlântico. Se deixasse Timbó Grande, no Planalto Norte, e seguisse em linha reta para o litoral, chegaria 207 quilômetros depois à Baía da Babitonga, em São Francisco do Sul, o mais antigo município de Santa Catarina. Sentiria o gosto da salinidade para dar fim a um desconhecimento improvável para quem vive em um país com 7,4 mil quilômetros de litoral.

 

Mas são profundas outras dúvidas do agricultor. Uma delas sobre os antepassados. O máximo que alcança é o nome de um avô, Fabiano Canofre de Campos. A filiação está escrita na carteira de identidade do pai falecido, que contava ser de origem alemã.

 

Desconfia-se que seja descendente das levas que, a partir de 1824, escolheram as áreas férteis do Brasil para recriar sonhos de prosperidade trazidos da Europa. Como fez Valentim Knopf, do qual pode ter nascido esse Canofre de Timbó Grande.

 

É o que sugere Telmo José Tomio, membro do Instituto de Genealogia de Santa Catarina. Com o tempo, a grafia do Knopf deve ter sido aportuguesada para Canofre. Em alemão, a palavra quer dizer botão.

 

A alteração, explica o genealogista, é um fato comum por causa da dificuldade que os responsáveis pelos registros tinham em entender as pronúncias. Em seus estudos, o pesquisador, que mora em Balneário Piçarras, encontrou o nome de Valentim Knopf, nascido em cerca de 1798, em Wahllhein, Alzey-Worms, na Alemanha. Um lenhador evangélico, que retirava o sustento da terra.

 

Além de desconhecer essa parte da própria origem, o brasileiro se ressente da falta de uma fotografia. A inexistência de um retrato do avô – nem o pai possuiu – é uma moldura vazia. Ouviu que o avô Fabiano viveu na costa do rio Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Lá teria abandonado a mulher, Rosa Pinheiro de Morais, com os filhos pequenos, e desaparecido. Fato é que Fabiano não deixou rastro. Algumas dúvidas, ele responde com suas próprias explicações:

 

REGISTRO | Certidão de casamento dos pais de Dirceu, Rodolfo e Izaura, é um dos poucos documentos dos antepassados

Mas carrega outros questionamentos:

 

– E como se tira o sal da água do mar?

 

Como se fosse possível dessalgar as águas do oceano, tal qual a carne dos porcos que abate a cada estação do ano e que põe para secar no varal fumacento do fogão.

 

Avião

A moradia da família Reβler fica a cerca de 500 metros das ruas centrais da pequena cidade. Ela é proprietária de 60 hectares de terra, onde cultiva uvas e faz cerca de 10,5 mil litros de vinho por hectare. O terreno é fértil e no inverno faz muito frio no lugar. Esse é o cenário onde se encontra parte das raízes da família de Dirceu na Alemanha.

 

Rüdiger e os familiares foram em busca do próprio passado. Provam isso quando, ao receber o DC, colocam sobre a mesa da casa de tijolos onde vivem dois pedaços de pedra de granito preto. As inscrições Hier ruht in Gott! (Aqui descansa em Deus!) e Ruhe Sanft! (Descanse em paz – pacificamente!) são de lápides retiradas de um cemitério.

 

– Quando soube sobre a existência de Valentim Knopf fui buscar informações, remexi documentos, olhei nos livros da Igreja e entendi que Bárbara, sua irmã, viria ser minha parente – conta Rüdiger.

 

Ao lado da mulher Heide Katja, e acompanhado pelos filhos adolescentes Jan-Peter e Jeanne Christin, ele explica que as pedras haviam sido retiradas da sepultura dos antepassados Friedriche  e Katharina  Zimmermann. São do filho e da nora de Bárbara Paul, filha de Bárbara Knopf, irmã de Valentin Knopf.

 

Investigar as origens da família era um antigo desejo deles. Mas a falta de tempo adiava a intenção. Até que chegou a informação de que havia no Brasil pessoas que poderiam ser do mesmo tronco.

 

– Até então, a gente não estava muito interessado em guardar a memória da família.

 

As primeiras buscas não foram promissoras. Nos cemitérios mais antigos da cidade, nenhuma referência aos Knopf. Em cartórios também não havia registros de terras. Porém, o sobrenome aparece em outros lugares mais distantes. Mudanças constantes mostram que não se fixavam em nenhum lugar. Isso, acredita o agricultor alemão, deve-se ao fato de que desde a origem os Knopf não tinham posses.

 

– Terras possuíam, mas não o suficiente para todos os filhos. Deve ter sido isso que levou Valentim a migrar.

 

Agora, quase 200 anos da partida, os rastros da família de Valentim Knopf estão desaparecidos. Na região não existe ninguém com o sobrenome Knopf. Os que existem não vêm de Valentim. Como eram pobres, a casa onde moravam devia ser de madeira. Caiu com o tempo.

No computador sobre a mesa da sala da casa confortável em Esselborn, na Alemanha, Rüdiger recorre ao Google Maps para localizar Timbó Grande em Santa Catarina. Em seguida, a família se junta para conhecer a cidade brasileira onde moram os parentes distantes.

 

– São 13,5 mil quilômetros separando-nos deles – constata o alemão.

 

Fotos da família de Timbó Grande se abrem na tela. Os moradores de Esselborn ficam chocados. O ambiente desfavorecido da casa em que mora a família que vive em terras catarinenses constrange.

 

Uma das que mais chama a atenção é a que mostra Iracema e Dirceu com os filhos ao redor do fogão a lenha. E outra, onde o avô põe o pé de uma neta para esquentar na portinha ao lado do forno. Também a dos filhos adolescentes fazendo a lição.

 

Por serem agricultores, eles observam com atenção a lavoura dos Canofre. Perguntam sobre o que plantam. E como é a produção da família catarinense. Querem saber se vendem a produção e quanto fica para alimento da família.

 

Professora, a esposa de Rüdiger, Heide Katja, interroga se os filhos de Iracema e Dirceu estão indo bem na escola. Ela entende que completar os estudos é o meio que possuem para ter uma vida melhor. Também parece tocada com a imagem de Iracema. A figura da brasileira de chinelos de dedo em pleno inverno, com roupas velhas e cercada de filhos impressiona a alemã.

 

Acostumados com frio e neve, surpreendem-se com as carências da família Canofre para enfrentar baixas temperaturas. Apesar disso, não demonstraram desejo de aproximação com os parentes de Timbó Grande.

 

No retorno ao Brasil, a reportagem revelou à família Canofre o contato com os alemães. Diante das fotos e vídeos, mostraram-se curiosos. Mas também não revelaram interesse em estabelecer algum contato.

NA ALEMANHA | Rüdiger com a mulher, Heide Katja, e os filhos adolescentes Jan-Peter e Jeanne Christin. FOTO ÂNGELA BASTOS

REFLEXOS | As imagens despertam curiosidade tanto nos alemães como nos brasileiros, mas nenhum manifesta desejo de encontros. FOTO ÂNGELA BASTOS

Uma terra de milagre

 

Nas buscas de Rüdiger, uma correspondência do irmão imigrado da bisavó, Valentim Knopf, escrita em 1º de dezembro de 1827 aos seus pais e irmãos em Wahllhein, e para sua irmã em Esselborn, descreve a jornada. O documento foi descoberto por Paul G. nos espólios da avó Bárbara Paul, nascida Zimmermann, em Esselborn, nos arredores de Alzey. A correspondência foi publicada na revista Hessische Chronik há cerca de 100 anos.

 

O migrante conta como foi a viagem, iniciada no porto de Hamburgo em 20 de setembro de 1825 e finalizada 78 dias depois, em 18 de janeiro de 1826 no cais do Rio de Janeiro. A correspondência foi entregue para uma instituição que resgata a história da emigração na Renânia.

 

Além do valor histórico, o documento tem trechos carregados de emoção, como a narrativa da morte de dois filhos pequenos de Valentim. Ao todo, na viagem de 300 pessoas, morreram cinco crianças e três adultos.

Valentim Knopf. Carta escrita em 1o de dezembro de 1827

A dúvida sobre o gosto da água do mar de Dirceu Canofre de Campos remete à saga dos imigrantes que há 190 anos formaram a primeira leva a cruzar o oceano para se instalar no sul do Brasil. Em 18 de julho de 1824, depois de passarem pelo Rio de Janeiro, onde foram recebidos e distribuídos, 39 imigrantes alcançaram Porto Alegre. Dois anos depois, mais imigrantes chegariam

A história da família está semeada no distrito de Esselborn, cidade de Alzey-Worms.  É lá que vive o agricultor Rüdiger Reßler, 49 anos. Ele é parente distante de Valentim Knopf, imigrante que deu o sobrenome para o Dirceu de Timbó Grande

CORRESPONDÊNCIA NA ÍNTEGRA

VIAGEM PARA A AMÉRICA

 

Origem e destino de

Valentim Knopf no Brasil

Nesta etapa, incrementava-se o mapa da colonização germânica, do qual esse Canofre – que pode ter vindo da denominação Knopf – iria figurar. Documentos mostram que o imigrante de 27 anos estava entre os passageiros do navio Kranich, comandado pelo capitão Klauss Frederico Becker, e que fez sua segunda viagem ao Rio de Janeiro em 18 de maio de 1826. Com ele vieram 40 famílias, 216 pessoas a bordo, destinadas à Colônia de São Leopoldo.

 

A vinda de Valentim Knopf foi consequência da política de imigração do governo brasileiro. Dois anos antes do primeiro desembarque, um emissário viajou para a Europa. Era o major Georg Anton von Schäffer, o qual recrutou interessados em se mudar para o Brasil.

 

Para convencê-los, acenou com vantagens. Foram oferecidas: passagem às custas do governo; concessão gratuita de um lote de terra de 78 hectares; subsídio diário de um franco ou 160 réis a cada colono no primeiro ano e metade no segundo; e certa quantidade de bois, vacas, cavalos, porcos e galinhas, na proporção do número de pessoas de cada família.

FOTO ÂNGELA BASTOS

DA TERRA | Rüdiger, parente distante de  Dirceu

na Alemanha, também mantém a casa da família em uma

área rural e tira o sustento da agricultura. FOTO ÂNGELA BASTOS

NA PEDRA | Lápides no cemitério de Esselborn

revelam o passado da família. FOTO ÂNGELA BASTOS

Reportagem

ÂNGELA BASTOS

É repórter especial e há 20 anos trabalha no Diário Catarinense. Para esta reportagem multimídia, dedicou dois anos e sete meses de apuração.

angela.bastos@diario.com.br

Fotografia

CHARLES GUERRA

Repórter fotográfico e há 15 anos atua no Grupo RBS. Registrou em imagens o cotidiano da família protagonista desta reportagem.

charles.guerra@diario.com.br

Edição

JULIA PITTHAN

julia.pitthan@diario.com.br

Design e desenvolvimento

FÁBIO NIENOW

fabio.nienow@diario.com.br

Edição de vídeos

LUCAS AMARILDO

lucas.amarildo@diario.com.br

Direção de vídeos

LÉO CARDOSO

leo.cardoso@diario.com.br

Trilha sonora original

 

WAGNER SEGURA

Trilha sonora

TÁCIO VIEIRA

GUSTAVO RODRIGO DE SOUZA

WAGNER SEGURA

Tradutores

ÂNGELA INÊS RAUBER

CATARINA SIARLI KORMANN

EBERHARD JOSEF ALBERT

E-BOOK

GALERIA

COMPARTILHE

www.diario.com.br

EXPEDIENTE

WEBDOC