Mesmo sem Papai Noel e troca de presentes, o almoço de Natal reúne a família Canofre. O calor chega com boas-novas. A renda aumentou, a casa ganhou eletrodomésticos e os filhos vão bem na escola. A esperança desenha o futuro

25 de dezembro de 2013 foi um dia como qualquer outro na casa de Iracema e Dirceu. Era Natal na cultura do mundo ocidental. Mas na moradia de madeira frestada pelo tempo não havia símbolos da mais antiga festa cristã, atualmente transformada no maior evento de consumo da humanidade.

 

Nada de Papai Noel, árvore enfeitada, bolinhas coloridas. No terreiro, sobreviventes à véspera, perus se alimentavam de grãos. A tradicional Ceia de Natal não se faz um hábito. Pelo chão nenhum pedaço de papel para enrolar presentes. Mas era, sim, um dia de desembrulhar lembranças em Iracema:

CENA | Sem ceia ou troca de presentes, família se reúne

CIRANDA | Roda no lugar de brinquedos industrializados

Presentes?

Naquela manhã que se fazia quente, a diferença estava no número de pessoas que passaram a noite juntas. Oito a mais do que os nove que vivem na casa. Três filhas casadas, o marido de uma delas e quatro crianças dormiram em cima de pedaços de esponja. No improviso de colchões sem capas, cabeças de adultos e pés de crianças se emparelharam. Enquanto, no escuro, mãos tapeavam os mosquitos.

 

Ainda era cedo quando o sol começou a esquentar o telhado de amianto. As crianças foram as primeiras a se levantar. Vestiram as roupas e os calçados mais novos comprados com dinheiro do Programa Bolsa Família. Nenhuma falou sobre Papai Noel, figura que não é cultuada entre eles.

 

Os pais não estimulam. Por viverem no campo, a propaganda tem menos influência do que se morassem na cidade. A coincidência da data natalina com as férias escolares também contribui. Longe de outras crianças, a febre do consumo não os alcança.

 

Na véspera, cada um dos filhos mais velhos havia chegado com um pedaço de carne. No meio da manhã apareceram convidados. Um casal de tios do genro que dividiu o custo da sobremesa: um bolo.

Colocado sobre a mesa da casa nova, em construção, a cobertura branca adoçava o olhar das crianças.

 

Talvez por isso, pouca atenção deram para o churrasco de costela de boi assado pelo pai. Quem sabe também a causa do aipim cozido e arroz branco terem sobrado na panela de alça quebrada. Entre as garrafas de refrigerantes de três litros, uma com sabor de uva, destampou a memória de Dirceu:

A infância pobre fez com que Iracema e Dirceu não se acostumassem a comemorar. Para eles, desde pequenos, o Natal era como a escola: coisa de rico.

 

Entre os Canofre não é exatamente a data que faz a família se reunir. Mas a folga do trabalho dos filhos adultos, a qual permite um encontro para conversas sobre trabalho na lavoura, netos que crescem, dificuldades financeiras. Um ritual brindado com bolo e refrigerante.

Sem alívio

O corpo da criança está enterrado no mesmo cemitério que o avô paterno, Rodolfo Canofre de Campos, em Timbó Grande.  Dirceu usa uma expressão bíblica com o significado de bem-aventurado quando se refere ao filho:

 

– Abençoadinho.

 

Com voz pausada e olhar oco, discorre sobre aquele dia quente de novembro de 2012 quando precisou pedir emprestados R$ 400 para o carro da funerária de Santa Cecília, a 70 quilômetros de Timbó Grande, transladar o caixão branco, por ele comparado a uma caixa de sapatos. Seria tão levinho, diz, que nem precisaria pagar: até no banco do carro de um parente caberia. Mas lei é lei e teve que cumprir.

 

Dirceu e poucos outros estavam na hora em que o túmulo foi coberto por cimento. Os filhos ficaram em casa; enquanto a mãe continuava no hospital sendo alimentada por bolsas de sangue. Iracema é o que se pode chamar de uma mãe órfã. Inconsolável.

 

– Não esqueço um dia do filho que perdi.

 

Além de não abrandar a dor, o tempo parece ter-lhe trazido mais dúvidas sobre o que realmente poderia ser a causa da morte.

 

– Eu trabalhei muito no sol. Quase cozinhei o corpo – recorda.

 

Outra possibilidade lhe vem à cabeça:

 

– Eu levantei um saco de cimento pesado e pode ter sido isso. Em seguida, comecei a sangrar.

 

Assim como nas outras 14 gestações, não fez o acompanhamento pré-natal. E contava com o risco de uma gravidez aos 48 anos.

 

A inconformidade de Iracema é visível. Ela fala em falta de zelo pela vida. A racionalidade de Dirceu também. Ele acredita que não houve culpados.

 

 

Na época, os recursos eram incertos e vinham da lavoura. Havia dívidas contraídas para o enterro do 15º filho, além das pendências no comércio local. Sem produção por causa de uma longa estiagem, Dirceu não conseguia fazer trocas por outros alimentos.

 

Hoje, os benefícios trazidos por programas como o Bolsa Família, do governo federal, e o Santa Renda, do Estado, somam-se aos esforços do trabalho. O salto de uma renda per capita de R$ 54 para R$ 189 é significativo.

 

Uma conquista individual a ser destacada em uma realidade que aprisiona outras 126 mil pessoas a uma condição de miséria em Santa Catarina. Apesar de a família Canofre ter deixado financeiramente a miséria, o percentual de pessoas nesta condição no Estado cresceu. Conforme a Secretaria Estadual de Trabalho e Desenvolvimento Social, isso ocorre devido à busca ativa – um procedimento de localização de pessoas que encontram-se fora das estatísticas oficiais de renda e vulnerabilidade.

 

Porém, somente o aumento de renda será insuficiente para provocar transformações mais profundas entre os Canofre. A trajetória dos pais está enraizada sobre abismos históricos. Metade da vida passou, e eles estiveram privados de serviços essenciais. Iracema envelhece sob o isolamento de um analfabetismo absoluto. Em Dirceu, o desafio é compreender o cotidiano de uma família que vive em uma lógica diferente da que lhe foi ensinada.

 

Embora Iracema e Dirceu dependam de ajuda governamental para fazer essa travessia, os filhos já estão na outra margem. Os mais velhos encontram-se fora da condição de extrema pobreza. Situação que decorre da renda fixa obtida com o trabalho, pelo menor número de dependentes e escolarização.

 

Os mais jovens, também no colégio, trilham um caminho de mais oportunidades. Do banco de madeira, onde Iracema e Dirceu sentam-se no passar das estações, os filhos avistam outras possibilidades, além da miséria que aprisionou os pais.

O verão de 2015 chega com boas-novas para a família Canofre. A terra abraçou sementes e o solo se abriu para mudas. Feijão, verduras e mandiocas estão prontas para virar alimento. Dirceu conseguiu construir uma estufa com troncos de pínus e cobertura de plástico para proteger as alfaces. As plantas se conservaram viçosas, mesmo com sol a pino e calor abrasivo da estação

Mas existem também doloridas memórias em Iracema e Dirceu. Como a do menino que por quase nove meses fez espichar a barriga da mãe, até que o ventre fosse golpeado pelo chifre de uma vaca.

A renda da família Canofre cresceu 143% comparando-se  janeiro de 2013, quando a reportagem começou,
a abril de 2015

Conquistas

Existem outros motivos para contentamentos. As crianças passaram de ano. Os pais estão orgulhosos pela conquista do filho Moisés, 17 anos, que chegou ao ensino médio. Algo inédito na família em que a mãe nunca foi à escola e o pai só fez o segundo ano primário. O rapaz conseguiu emprego em uma fábrica de laminados.

 

Com o salário, mesmo a contragosto dos pais, fez a primeira compra para si: um Corcel II ano 1980 e agora prepara-se para tirar a carteira de motorista. A dívida foi parcelada em dez vezes de R$ 500. Moisés paga o valor, fica com R$ 100 para si e entrega os outros R$ 100 para os pais.

 

A melhoria da renda da família se dá também pela inclusão no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que prevê a compra de produtos da agricultura familiar para a merenda escolar do município. Apesar de o pagamento não ser todos os meses, ajuda. Em abril de 2014, Dirceu vendeu R$ 1.282. A nota deste último abril registra R$ 930,70.

 

– Rico ninguém fica, mas dá para chegar a uma média de R$ 500 por mês, melhor do que antes – diz.

 

Os benefícios do Programa Bolsa Família continuam tendo relevância. Em abril, Iracema recebeu R$ 217 pelos cinco filhos, além de mais R$ 90 do programa do governo estadual Santa Renda.

 

– Olha o que comprei para a gente – diz apontando para a máquina de lavar roupas, 12 quilos, coberta por um lençol na sala da casa nova para não pegar pó.

 

Os recursos também serviram para um novo eletrodoméstico:

 

– Eu faço pão em casa, mas volta e meia o forno estragava. Agora tenho esse forninho elétrico para fornada ainda maior.

 

Iracema explica que pensou bem antes de assumir os compromissos no comércio local. As crianças crescem rápido e precisarão de roupas e sapatos novos, mas precaveu todos para ajudar a manter o carnê em dia:

 

– Avisei a eles (filhos) que vão ter que ter cuidado com as coisas, pois o tênis de um vai passar para o pé do outro.

 

Dirceu está satisfeito com o andamento da obra da casa de tijolos, iniciada em 2012. Ainda inacabada, mas os meninos adolescentes já dormem dentro dela.

Iracema, que se constrangia pela falta de dentes, agora pode sorrir sem cobrir a boca com as mãos. Foram três modelos de dentaduras até achar um que não a machucasse. Embora tenha doído no bolso: o que a protética inicialmente calculou em R$ 300 acabou em R$ 450. Uma das filhas pagou a primeira prestação, de R$ 150. Os R$ 300 restantes foram parcelados com dinheiro que recebe para cuidar de dois netos enquanto os pais, o filho Sebastião e a nora Luciana, trabalham.

 

José Dirceu, 15 anos, o filho imediato depois de Moisés, também adquiriu um bem material: o primeiro aparelho celular. Porém, com uma moeda diferente, um cachorro vira-lata.

 

A troca envolvendo o animal foi com um cunhado. Como o assentamento Perdiz Grande não recebe sinal da telefonia móvel, o adolescente usa o aparelho como rádio para escutar música que estavam gravadas.

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Reportagem

ÂNGELA BASTOS

É repórter especial e há 20 anos trabalha no Diário Catarinense. Para esta reportagem multimídia, dedicou dois anos e sete meses de apuração.

angela.bastos@diario.com.br

Fotografia

CHARLES GUERRA

Repórter fotográfico e há 15 anos atua no Grupo RBS. Registrou em imagens o cotidiano da família protagonista desta reportagem.

charles.guerra@diario.com.br

Edição

JULIA PITTHAN

julia.pitthan@diario.com.br

Design e desenvolvimento

FÁBIO NIENOW

fabio.nienow@diario.com.br

Edição de vídeos

LUCAS AMARILDO

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Direção de vídeos

LÉO CARDOSO

leo.cardoso@diario.com.br

Trilha sonora original

 

WAGNER SEGURA

Trilha sonora

TÁCIO VIEIRA

GUSTAVO RODRIGO DE SOUZA

WAGNER SEGURA

Tradutores

ÂNGELA INÊS RAUBER

CATARINA SIARLI KORMANN

EBERHARD JOSEF ALBERT

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