O inverno 2013 vem com tudo. Rigoroso, expõe as agruras de um frio inclemente em que os termômetros descem a zero grau. Também se revela cênico, como no Planalto Norte, região de Timbó Grande, em que mora a família de Iracema e Dirceu
A falta de informação empurra a família de Iracema e Dirceu para uma espécie de mundo à parte. As causas variam, mas o certo é que ele e a mulher não desenvolveram o hábito de acompanhar os noticiários.
Com tantas carências ao longo da vida, aparelhos de rádio e de TV sempre foram vistos como artigos de luxo. Também por terem passado grande parte da vida em comunidades onde a comunicação não chega. Outra questão é a rotina de trabalho, que no meio rural funciona diferente do urbano. Cansado das atividades, o agricultor prefere se deitar cedo a ficar vendo televisão.
Iracema e Dirceu não estão sozinhos nesse universo aparentemente à parte. Um indicador preparado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) com base em metodologia do Banco Mundial, usado para medir a chamada pobreza multidimensional, mostra a dificuldade de acesso real dos mais pobres a algumas melhorias nas condições de vida.
Inclusive de informação. Mesmo que vivam em um Estado com pequena extensão territorial, com boa infraestrutura e veículos de comunicação operando. Dirceu, assim como Iracema, é eleitor. Mas desconhece a estrutura geopolítica da capital federal.
Não apenas pelo sangue que sai pelos rasgos e cantinhos da boca. Mas pela vergonha de se exporem aos olhos dos colegas.
Essa não é a única ferida que os deixa acanhados no colégio. Constrangimentos chegam por outros motivos. Roupas surradas, calçados gastos, mochilas descosturadas. Também pelas unhas sujas de terra, consequência do trabalho na lavoura. São os próprios adolescentes que, ao ganharem maior compreensão da realidade, sentem-se incomodados com a situação de extrema pobreza.
Mas os meninos vão tentando jeitos. Nos dias de chuva, um deles envolve em sacolas de plástico a bolsa de pano onde carrega o material. Um outro, mais velho, havia ameaçado abandonar os estudos. Não queria mais ouvir a professora reclamar dos seus cadernos e livros molhados.
Mas se convenceu com a explicação dos pais e bancou para os amigos: a culpa não era deles. Mas da falta de um abrigo onde pudessem esperar o ônibus escolar nos dias de chuva.
Com o calor das chamas do fogão a lenha, a família de Iracema e Dirceu enfrenta as massas polares que nesta época do ano costumam castigar a Região Sul
A pergunta vem de Dirceu e se refere à presidente Dilma Rousseff. A dúvida do agricultor, em junho de 2013, mostra o quanto os extremamente pobres ficam alheios a informações que formam o dia a dia da imensa maioria da população brasileira
O frio racha os lábios dos filhos de Iracema e Dirceu. Em vez de manteiga de cacau, banha de porco. É nisso que se lambuzam para aliviar a dor provocada pelo ressecamento da pele. Os que vão de manhã cedo para a escola são os mais castigados. A sensibilidade dos lábios, açoitados pelo vento, parece mais dolorida nos adolescentes
EM JULHO | O modelo meteorológico operacional dos Estados Unidos crava o centro da América do Sul com a maior temperatura negativa do planeta Terra, excluindo-se os polos.
ara gente extremamente pobre como a família Canofre, o frio selvagem despe um lado avesso. Quanto mais roupas vestem, mais nus se sentem. Com quase 50 invernos nas costas, Iracema e Dirceu afirmam ser os ossos o que mais dói, e que isso vem de tempo. Não tem como esquentar.
Iracema enfrenta o inverno com chinelos de dedo. Em qualquer estação do ano é o calçado que tem, diz ela, que cresceu com os dedos encardidos de terra e machucados pelas pedras do caminho.
Na tarde de domingo, 21 de julho, as crianças viram bolinhas como se feitas de isopor caírem das nuvens. As meninas menores acharam parecido com sagu, aquele servido na merenda da escola. Quiseram ir para a rua, pegar na mão, sentir o gosto.
Na manhã seguinte, uma paisagem nova. Mais de um palmo de neve cobria o redor da casa. Plantas, galhos de árvores, estradas, caminhos. Também o carrinho de mão, as roupas e os calçados adormecidos do lado de fora. Com o gelo acumulado, o ônibus da escola não sairia.
Sem máquina para fotografar, guardam na memória a primeira vez que a neve se acumulou em suas terras.
LIÇÃO | Moisés estuda como alternativa para melhorar de vida
FOTO LUIZ RICARDO MAGUERROSKI GREIN, ARQUIVO PESSOAL
Convívio
O cenário começa a ser montado com a aproximação da noite. Ao escurecer, por volta das cinco horas da tarde, pai e filhos recolhem lenha no mato para alimentar o fogo. Abastecem-se com troncos de bracatinga e eucalipto.
Todos os dias, quase como num ritual, a família se reúne. A chapa do fogão esquenta mais do que a chaleira e o bule. Sobre o metal, Iracema aproxima as mãos, e os dedos enrijecidos voltam a ganhar movimento.
O calor das chamas tem outra finalidade. Dirceu segura cuidadosamente os pezinhos da neta, sentada ao lado, e os coloca dentro do compartimento. Tão logo aquecidos, recebem um par de meias, e a criança volta a brincar no assoalho.
Cadeiras e banco de madeira servem para formar a roda. As conversas são sobre o dia a dia, as baixas temperaturas, a ocorrência de neve. As crianças pouco falam, mas, entre sorrisos, escutam os pais. Enquanto as bochechas vão ganhando cor.
Reportagem
ÂNGELA BASTOS
É repórter especial e há 20 anos trabalha no Diário Catarinense. Para esta reportagem multimídia, dedicou dois anos e sete meses de apuração.
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Fotografia
CHARLES GUERRA
Repórter fotográfico e há 15 anos atua no Grupo RBS. Registrou em imagens o cotidiano da família protagonista desta reportagem.
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Trilha sonora original
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Trilha sonora
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Tradutores
ÂNGELA INÊS RAUBER
CATARINA SIARLI KORMANN
EBERHARD JOSEF ALBERT
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