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 | 04/07/2008 04h21min

Como é a vida dos reféns das Farc na selva

Libertados relatam rotina de privações, dor e violência

Itamar Melo  |  itamar.melo@zerohora.com.br

A cada nova libertação de reféns das Farc, emergem da selva colombiana relatos de uma rotina de privações, dor e violência. Com a operação que resgatou Ingrid Betancourt e outras 14 pessoas, na quarta-feira, novos e espantosos detalhes do inferno do cativeiro vieram à tona. A seguir, veja como era o dia-a-dia de quem estava nas mãos dos guerrilheiros, conforme relatos feitos por prisioneiros libertados ao longo dos últimos meses:

Comida

O cabo do exército William Pérez teve de se acostumar a comer frutos silvestres cujo nome desconhecia durante o cativeiro na selva. A alimentação oferecida pelas Farc era frugal e consistia de três refeições diárias. No café da manhã, ingerido às 6h, os prisioneiros comiam arepa (espécie de bolo de milho). No almoço e no jantar, quase sempre feijão, arroz e macarrão. Uma vez por mês, havia carne e vegetais.

Monotonia

Os dias transcorriam quase sempre iguais, marcados pelo tédio. Os cativos eram despertados pelos guerrilheiros às 5h30min. Depois do café, seguia-se uma hora de exercícios físicos, como abdominais e barra. Depois, os reféns escutavam rádio à espera do almoço por volta do meio-dia. Durante a manhã, também eram soltos das correntes por 15 minutos para a higiene pessoal. Até a hora de se recolherem, às 18h, seguiam ouvindo rádio e conversando. Tentavam passar o tempo lendo, escrevendo ou costurando. Segundo o cabo do exército William Pérez, o tédio só era interrompido pelas marchas para mudar de acampamento. A ex-deputada Gloria Polanco, libertada em fevereiro, conta que a rotina afetava o ânimo.

- Foi uma tortura impressionante, especialmente mental. Todos os dias acordávamos para olhar a mesma coisa, tomar o mesmo café da manhã e almoçar o mesmo.

Acampamentos

São toscos e móveis. A cada duas semanas, mudam de lugar, para evitar que sejam descobertos pelo exército colombiano. Nessas ocasiões, os reféns podiam fazer a viagem acorrentados e de pés descalços. O ex-senador Luis Eladio Pérez conta que costumavam andar dois ou três dias com mochilas pesadas.

- Os pés ficavam em frangalhos, éramos picados por insetos e estávamos sujeitos a todo tipo de doenças: malária, leishmaniose e hepatite - relatou.

Às vezes, os prisioneiros eram acomodados em lanchas precárias e viajavam por rio durante 20 ou 30 dias.

Os prisioneiros dormiam em geral no chão, dentro de tendas improvisadas. Também era comum dormir em redes amarradas a árvores, cobertas com lonas contra a chuva e mosquitos.

O banho era diário e ocorria com freqüência em rios. Era comum o prisioneiro receber um balde com água pela metade.

Presos a árvores

O ex-senador Luiz Eladio Pérez, que permaneceu preso com Ingrid Betancourt e foi libertado em fevereiro, conta que os prisioneiros passavam o dia acorrentados a árvores.

- Era muito ruim. Tinha uma mobilidade máxima de dois metros e me sentia humilhado sempre que refletia sobre minha situação - conta o ex-senador.

O policial Jhon Pinchao, que também esteve preso com Ingrid e conseguiu fugir, conta que os cativos eram amarrados, em pares, também para dormir. Ele contou ter permanecido com correntes ao redor do pescoço durante meses a fio.

Isolamento

Os reféns ficavam praticamente incomunicáveis com o mundo exterior. Os mais ilustres, como Ingrid Betancourt, recebiam permissão esporádica para escrever cartas a familiares ou gravar vídeos, uma forma de provar que seguiam vivos. Alguns tinham licença para possuir rádios, mas dependiam da boa vontade das Farc para receber pilhas. A saída era racionar o uso. Jornais e revistas eram raros. Francisco Araujo, ex-prisioneiro, relatou que, quando um jornal chegava, ele lia só duas páginas por dia, bem devagar, para poupá-lo.

Recados da família

Entre as poucas distrações dos prisioneiros estava ouvir rádio. Pela manhã, eles escutavam um programa por meio do qual as famílias mandam recados para os seqüestrados. No dia de sua libertação, por exemplo, Ingrid Betancourt soube pelo rádio de notícias sobre sua mãe e sua filha. A ex-deputada Gloria Polanco, libertada em fevereiro, descobriu que o marido havia morrido pelo programa voltado aos reféns na rádio.

- Foi um dos piores momentos do cativeiro - contou.

Ela ficou um mês sem comer quase nada depois disso. A esperança de rever os filhos foi o que a fez voltar a se alimentar.

O sofrimento era permanente.

Enfermeiro

Graças aos seus conhecimentos de enfermagem, o cabo do exército William Pérez podia ajudar outros reféns. Ele assistiu Ingrid quando ela apresentou febre alta, provavelmente provocada pela hepatite. A ex-senadora reconheceu que o cabo salvou sua vida.

Execuções e medo

Notícias sobre a morte de outros prisioneiros das Farc abalavam os reféns. O ex-senador colombiano Luis Eladio Pérez contou como recebeu a informação sobre a morte de 11 deputados departamentais em poder das Farc.

- Foi chocante saber que tudo acabou assim, após anos de tanto sofrimento, durante os quais suas famílias tinham esperança de revê-los.

Os prisioneiros também temiam uma tentativa de resgate militar. Nesse caso, os guerrilheiros tinham ordem de fuzilar os reféns.

- O desespero era tanto que muitas vezes eu desejava que essa ação ocorresse. Não tinha esperança de escapar. Preferia a morte rápida a continuar apodrecendo na selva - descreveu Pérez.

Tentativas de fuga costumavam ter como punição ficar amarrado a uma árvore por uma corda de dois metros.

Convívio com os guerrilheiros

Segundo o relato do ex-senador Luis Eladio Pérez, o contato com os guerrilheiros era mínimo e sem sombra de simpatia. Se algum guerrilheiro demonstrava cumplicidade e oferecia um pão a mais, era repreendido pelos chefes. Em alguns acampamentos, estavam proibidos de falar com os prisioneiros.

- Quase enlouqueci e terminei falando com as árvores - contou o ex-senador.

Em algumas situações, no entanto, desenvolviam-se relações amistosas. O ex-prisioneiro Francisco Araujo teve bolo de aniversário e jogou cartas com seus captores. Mas quando relações desse tipo se desenvolviam, os chefes afastam os soldados dos prisioneiros.

- Não recebíamos o tratamento que se dá a um ser vivo. Era puramente crueldade arbitrária - disse Ingrid depois de ser libertada.

Os relatos dão conta de que as Farc restringem as relações sexuais. Araújo afirmou ter permanecido seis anos em abstinência sexual no cativeiro. Quando foi libertado, descobriu que sua mulher estava casada com outro e tinha um filho.

Clique na imagem abaixo e veja como foi o resgate de Ingrid

 
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