LUIZ ANTÔNIO ARAUJO
A professora afegã Mariam
Rawi, 27 anos, vive há 18 anos no exílio. Seu
pai juntou-se às forças da resistência
contra o exército soviético, que invadiu o Afeganistão
em 1979, e foi morto em 1982 no campo de batalha. Privadas
de meios para sobreviver, Mariam e a família - a mãe,
a avó e quatro irmãs - deixaram Cabul e buscaram
abrigo no Paquistão, onde a professora vive desde então.
Nesse país, Mariam matriculou-se numa escola mantida
pela Associação Revolucionária das Mulheres
do Afeganistão (Rawa, sigla em inglês), organização
não-governamental feminista fundada em 1977 por mulheres
afegãs. Convidada pela rede feminista Articulação
Marcosur a participar do 2 Fórum Social Mundial, Mariam
chegou ontem a Porto Alegre, onde comandou uma oficina na
sede do Cpers-Sindicato e fez uma palestra no Salão
de Atos da UFRGS. Antes, concedeu entrevista a Zero Hora.
Fez uma única exigência: a de ser fotografada
de forma que seus traços não pudessem ser identificados.
As integrantes da Rawa costumam ser atacadas por grupos fundamentalistas
no Paquistão, e evitam revelar suas identidades.
ZH - Qual é o significado da queda do Talibã
para o povo afegão?
Rawi - A eliminação
do regime talibã foi uma mudança positiva no
Afeganistão. Nossos homens e mulheres e nosso povo
em geral sofreram muito durante o governo do Talibã.
Mas infelizmente a subida dos fundamentalistas ao poder ocorreu
antes do Talibã. O período de 1992 a 1996, antes
do Talibã, quando os grupos da Aliança do Norte
estavam no poder, foi um dos mais obscurantistas de nossa
história. Infelizmente, a comunidade internacional
e a mídia ocidental esqueceram esses quatro anos. Depois
do Talibã, a mesma coisa vai se repetir.
ZH - Qual é a situação atual do Afeganistão?
Rawi - O Afeganistão
está outra vez dividido em partes, e há luta
entre diferentes facções fundamentalistas, apoiadas
por diferentes países, como o Paquistão, a França
e os Estados Unidos. Todos estão interessados na região,
e cada um apóia um grupo. As Nações Unidas
informaram que não podemos desenvolver nossos programas
no Afeganistão por razões de segurança.
De acordo com fontes da Agence France Presse (AFP), as pessoas
estão agora felizes com o Talibã, porque pelo
menos tinham garantia de segurança pessoal, e agora
todos estão preocupados com isso. Muitas pessoas dormem
com armas sob suas camas, porque estão com medo. A
queda do Talibã foi uma mudança positiva, mas
não a grande mudança. Os grupos fundamentalistas
e os líderes criminosos estão outra vez no poder.
Alguns podem ser da nova geração, mas a maior
parte é da velha geração. São
as forças que mataram milhares de pessoas, destruíram
90% de Cabul e demoliram nossos museus, nossa arte e nossas
escolas. Muitos casos de estupro, assassinato, seqüestro,
invasão de casas e destruição aconteceram
antes do Talibã, sob o Talibã e continuam acontecendo.
ZH - Depois da queda do Talibã, o mundo viu imagens
de mulheres afegãs tirando as burkas e voltando à
escola. Essa não é uma mudança significativa?
Rawi - Os afegãos,
e especialmente as mulheres, nunca vão esquecer e nunca
vão perdoar a experiência vivida sob o governo
da Aliança do Norte, de 1992 a 1996. Infelizmente,
a mídia ocidental cumpre um papel negativo em relação
à situação afegã, porque sempre
ao longo dos últimos 20 anos deu algum tipo de apoio
crítico a líderes fundamentalistas. Isso está
acontecendo outra vez. Estamos vivendo no Afeganistão
e podemos ver que as mulheres não estão prontas
para tirar suas burkas. Se poucas mulheres fazem isso, não
é importante. Mas a maioria das mulheres está
com medo dos grupos militares, em razão dos estupros,
seqüestros e casamentos forçados que estão
ocorrendo. Elas se sentem inseguras. Elas não querem
deixar suas casas para ir à escola. Em geral, a situação
é a mesma, para as mulheres e para os homens. Não
é tão importante se as mulheres vestem burka
ou não. O problema das mulheres do Afeganistão
não é vestir burka. O problema é a condição
social sob o poder os grupos fundamentalistas. Com burka ou
sem burka, as mulheres estão privadas de direitos.
ZH - Na sua opinião, que mudanças ainda
precisam ocorrer no Afeganistão?
Rawi - Em termos políticos,
lutamos contra o fundamentalismo. Esse é o grande inimigo
de nossos homens e, especialmente, de nossas mulheres, e de
nosso país. Lutamos pelo estabelecimento de um governo
democrático. A democracia é a única forma
de salvar a vida do povo e assegurar direitos às mulheres.
Democracia significa segurança, direitos humanos e
direitos das mulheres. Juntamente com isso, lutamos por educação
e por assistência à saúde da mulher.
ZH - Quais são os objetivos da Rawa?
Rawi - Na época da fundação,
o principal objetivo da Rawa era lutar pelos direitos de homens
e mulheres no Afeganistão. Fomos o primeiro grupo político
independente a lutar pelos direitos das mulheres. Infelizmente,
a União Soviética apoiou um golpe de Estado
no Afeganistão em 1978, um ano depois da fundação
da Rawa, e invadiu nosso país em 1979, e mudamos nosso
objetivo, porque acreditávamos que sem independência
não poderíamos falar de democracia ou de grandes
mudanças no país. Hoje, acreditamos que sem
democracia não podemos falar de direitos das mulheres.
Por isso, começamos a lutar contra a invasão
soviética e continuamos a lutar contra o fundamentalismo.
O fundamentalismo é ainda mais perigoso do que a União
Soviética para nosso povo, especialmente para as mulheres.
Desde então, trabalhamos em dois campos: o político
e social. No campo político, promovemos manifestações,
encontros, edição de diversas publicações
e de um site na Internet. A maior parte dessas atividades
é realizada no Paquistão, uma vez que, por razões
de segurança, não podemos realizá-las
no Afeganistão. No Afeganistão e nos campos
de refugiados do Paquistão, temos muitos programas
sociais para mulheres, que têm sido o principal foco
da Rawa. Organizamos pequenas salas de aula para meninas no
Afeganistão, cursos para mulheres com o objetivo de
ajudá-las a viver de forma independente e outras atividades.
No interior do Afeganistão, essas atividades ocorrem
em âmbito muito restrito e secreto. No Paquistão,
temos escolas para meninas e hospitais, mas em geral não
podemos trabalhar sob o nome da Rawa. Temos ainda distribuição
de remédios e assistência médica.
ZH - Que tipo de restrições a Rawa sofre
por parte do governo do Paquistão?
Rawi - Sim. A Rawa trabalha
há 20 anos no Paquistão, e ainda não
somos uma organização legalizada. Todas as organizações
fundamentalistas são legalizadas. Não podemos
ter sede nem conta bancária em nome da Rawa. Nossa
líder e fundadora, Meena, foi assassinada em Quetta
por agentes da KGB (polícia política secreta
da União Soviética), durante a guerra com a
União Soviética, com a cumplicidade dos fundamentalistas.
Sempre que realizamos manifestações e encontros,
eles nos atacam. É por isso que não podemos
mostrar o rosto nem revelar nossas identidades. Geralmente
mudamos nossos nomes e nunca publicamos nossas fotos. Não
é perigoso apenas no Afeganistão, mas também
no Paquistão.
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