Chega semana que vem a Porto
Alegre o lingüista americano Avram Noam Chomsky, 72 anos,
conhecido internacionalmente por suas ácidas críticas
à política e à mídia dos Estados
Unidos. Ele vai fazer a conferência de abertura do Fórum
Social Mundial, na PUCRS, no dia 1º de fevereiro, às
18h. Num ambiente que ele próprio descreve como "um
encontro de pessoas de todo o mundo comprometidas a reverter
tendências ameaçadoras", Chomsky deve falar
sobre a possibilidade de um mundo sem guerras.
- É bom que a resposta
à questão seja positiva, ou a espécie
humana poderá se revelar um erro evolucionário
- diz, em entrevista por e-mail.
Professor de Lingüística
do Massachusetts Institute de Technology (MIT), autor de mais
de 30 livros sobre política e pesquisas de neurociência,
Chomsky se diz entusiasmado com a vinda a Porto Alegre. Lembra
que, em novembro de 1996, passou "duas semanas fascinantes
no Brasil". A expectativa é a mesma em relação
ao Fórum.
Zero Hora - O sr. acredita que é possível
hoje um mundo sem guerras?
Noam Chomsky - Sendo realista,
não me parece provável. Atualmente, guerras
terríveis vêm sendo travadas. Na África
Central, por exemplo, milhares de pessoas foram mortas nos
últimos anos. Esse não é, infelizmente,
o único lugar. Enquanto escrevo, duas potências
nucleares (Índia e Paquistão) estão perigosamente
se aproximando da guerra. Eu acredito - e fervorosamente desejo
- que essa guerra possa ser evitada. Do contrário,
as conseqüências serão imprevisíveis
e será terrível demais contemplá-las.
Mas é bom que a resposta à questão seja
positiva, ou a espécie humana pode se revelar um erro
evolucionário, em um futuro não tão distante.
Entretanto, essas não são questões para
especulação. As relações humanas
são muito pouco entendidas para que qualquer previsão
realista seja possível.
ZH - Que tipo de contribuição o Fórum
Social Mundial pode trazer para a paz mundial?
Chomsky - As agências
americanas de inteligência recentemente publicaram suas
projeções para os próximos anos. Prevêem
que a globalização, a forma de integração
econômica neoliberal favorecida pelos centros de poder,
continuará acarretando o crescimento da desigualdade
e aumentando a volatilidade financeira (conseqüentemente,
trazendo desaceleração do crescimento e um perigoso
caos). Há cinco anos, o Comando Espacial dos EUA, responsável
pelos programas de militarização espacial (incluindo
mísseis), apresentou sua justificativa pública
para esses programas. Uma das principais preocupações
era o crescente desnível entre ricos e pobres. Previam
que isso causaria distúrbios entre um número
cada vez maior de pessoas miseráveis, distúrbios
que teriam de ser controlados à força. Decorre
disso a necessidade de militarizar o espaço, equipando
os EUA com armas destrutivas, provavelmente nucleares. Além
das horrendas conseqüências para as vítimas,
isso é também a receita para um desastre global.
Contra esse contexto, a potencial contribuição
do Fórum Social Mundial para a paz mundial fica clara.
O FSM é um encontro de pessoas de todo o mundo comprometidas
a reverter essas tendências extremamente ameaçadoras,
focando no centro do problema: o processo de globalização
neoliberal e seus terríveis efeitos. Participantes
do FSM basicamente concordam com a avaliação
das agências de inteligência e planejamento militar,
mas eles representam pessoas, não o poder, e, por isso,
têm diferentes interesses: se preocupam com uma sobrevivência
decente dos seres humanos e não com o aumento da concentração
de poder e do lucro. Retornando à questão, a
contribuição do FSM é essencial e pode
ser decisiva.
ZH - Parece ser unânime entre os participantes do
Fórum a crítica à "globalização
neoliberal". Que alternativas haveria?
Chomsky - Há maneiras
simples de se encontrar essa resposta. Para iniciantes, basta
ler o programa do Fórum Social Mundial. Cada sessão
fala sobre alternativas em uma determinada área. Há
muitas questões fundamentais, como o trabalho assalariado,
que há 150 anos era considerado não muito diferente
da escravidão pelo mainstream americano (inclusive
no Partido Republicano e no The New York Times). Com justiça,
acho. Existiram três formas de totalitarismo no século
20: o bolchevismo, o fascismo (com suas variantes) e o totalitarismo
privado, as chamadas "corporações".
Todos têm estruturas internas similares e até
mesmo raízes intelectuais comuns. São esforços
para superar os efeitos desastrosos dos mercados livres. Dois
deles desapareceram. O terceiro não é uma lei
da natureza, mas uma criação de certos setores
da elite. Por que essa forma de autoridade ilegítima
deve remanescer? Adam Smith ou Thomas Jefferson não
pensariam assim.
ZH - O Fórum pode mudar o futuro da globalização,
mesmo que a reunião do poder político e econômico
esteja em Davos?
Chomsky - O poder econômico
e político caberá a Davos enquanto as pessoas
permitirem isso. Não é uma lei da natureza,
assim como não era uma lei da natureza que o poder
fosse parar nas mãos de imperadores e reis, lordes
feudais, donos de escravos, patriarcas, generais brasileiros,
do Kremlin, ou... é fácil continuar. Um tema
inspirador da história humana é o esforço
para desmantelar tais concentrações ilegítimas
de poder. Essa é a tarefa que o Fórum deve enfrentar.
ZH - Que tipo de conseqüência política
podemos esperar do Fórum?
Chomsky - Eu não esperaria
imediatamente "conseqüências políticas".
O desenvolvimento de forças populares em escala internacional
é que deve, a longo prazo, trazer mudanças em
larga escala, não somente no poder político,
mas também nos setores econômicos, ideológicos,
militares.
ZH - Como as relações internacionais mudaram
desde os atentados de 11 de setembro?
Chomsky - 11 de Setembro foi
um evento histórico, não na escala de atrocidade,
que, lamentavelmente nos é familiar, mas sim pela direção
em que as armas foram apontadas. Pela primeira vez na história
dos Estados Unidos desde 1814, o território nacional
foi atacado ou esteve sob ameaça. Não preciso
lembrar o que se fez aos outros durante quase dois séculos.
Para a "terra natal", a Europa, a mudança
foi até mais dramática. A Europa não
conquistou e ocupou a maior parte do mundo entregando doces
a crianças. Mas a Índia nunca atacou a Inglaterra,
nem a Algéria atacou a França, nem o Congo atacou
a Bélgica... Terrorismo é a maneira com que
normalmente NÓS tratamos a ELES. Não se espera
que o terror esteja dirigido contra os Estados Unidos. O choque
que reverberou depois de 11 de setembro é inteiramente
compreensível. Assim como a falta de preocupação
diante do que o almirante Michael Boyce, chefe da Defesa britânica,
anunciou como política oficial da Grã-Bretanha
e dos Estados Unidos. Ele advertiu os afegãos de que
eles seriam submetidos a um ataque devastador, até
que tivessem "suas lideranças trocadas" -
um exemplo típico de terrorismo internacional conforme
ele é definido na lei americana. Da mesma forma, é
compreensível que não haja preocupação,
talvez algum pesar, quando Estados Unidos e Reino Unido implementaram
essa política com a firme expectativa de expor um grande
número de pessoas a um grave risco de fome e morte
lenta - milhões de pessoas, segundo cálculos
deles próprios. Nos dois casos, 11 de setembro e suas
conseqüências, as reações são
naturais, supondo-se que a história deveria seguir
seu curso: NÓS cometemos atrocidades indizíveis
contra ELES, enquanto as classes intelectuais aplaudem a si
mesmas e a seus líderes por sua nobreza. Essa é
uma boa parte da história, no mundo real.
Depois de 11 de setembro,
os EUA redeclararam uma "guerra contra o terrorismo",
adotando a mesma retórica usada pela administração
Reagan há 20 anos. Os EUA fizeram a guerra contra o
terrorismo construindo uma rede internacional de terrorismo
em escala sem precedentes e usaram-na com efeito letal na
América Central, na África, e na Ásia
Ocidental. Levaram até mesmo a uma condenação
dos Estados Unidos pela Corte Mundial, sob justamente a acusação
de terrorismo internacional. Na América do Sul, isso
foi apenas uma continuação da onda de terrorismo
internacional apoiada pelos EUA, iniciada quando John F. Kennedy,
em 1962, mudou o nome da missão das forças armadas
latino-americanas de "defesa hemisférica"
para "segurança interna". Não é
necessário elaborar o significado desse termo e como
ele foi traduzido na prática. Os líderes da
primeira guerra contra o terrorismo tiveram um papel importante
em sua reencarnação atual: John Negroponte,
por exemplo, que lidera os esforços diplomáticos
das Nações Unidas, aprendeu sobre terrorismo
internacional quando atuou como cônsul de Honduras há
20 anos, supervisionando a guerra terrorista contra a Nicarágua
(pela qual seu governo foi condenado pelas mais altas autoridades
internacionais), ou Donald Rumsfeld, que dirige o componente
militar da guerra para "esmagar o terrorismo", como
ele mesmo diz, aprendeu sua tarefa como enviado especial de
Reagan ao Oriente Médio, onde o governo americano e
seu aliado israelense venceram facilmente o prêmio de
terrorismo internacional daquele período. Nada disso
desperta nenhum comentário, assim como não há
nenhuma reação para a explícita defesa
e implementação do terrorismo internacional
massivo por parte dos poderosos de hoje. Não se poderia
esperar nada diferente, dada as convenções sobre
como a história deve funcionar. Claro que há
mudanças. As relações entre EUA e Rússia
ficaram mais amigáveis, pelo menos temporariamente
- a Rússia quer se unir à "guerra contra
o terrorismo" para ganhar a aprovação da
superpotência reinante quanto a seus horrendos crimes
terroristas na Chechênia. A China também se integra
por razões semelhantes. Na verdade, em várias
partes do mundo, elementos brutais reconhecem que têm
uma "janela de oportunidade" para implementar suas
agendas, explorando cruelmente o medo e a angústia
de pessoas temerosas de que possam também se tornar
vítimas do terrorismo internacional. As conseqüências
de 11 de setembro demonstram que, apesar de o mundo ser tripolar
em termos econômicos, é dramaticamente unipolar
em termos militares, e essa disparidade está aumentando
rapidamente, enquanto Washington aproveita a oportunidade
para aumentar os gastos militares, com planos ambiciosos de
se expandir para novas frentes, particularmente o espaço,
hoje um monopólio americano. Mas essas são apenas
continuações das tendências atuais, e
não novas linhas de ação substanciais.
ZH - Como o mundo pode reagir ao terrorismo internacional?
Chomsky - O terrorismo internacional
é um crime. E a resposta apropriada para um crime é
a investigação para se apontar os culpados,
que devem ser encontrados e levados a um julgamento justo.
E isso é correto tanto para o caso de um roubo nas
ruas quanto para os crimes de 11 de setembro, ou crimes de
terrorismo internacional cuja responsabilidade nunca foi colocada
em dúvida. Há uma lista longa. Para mencionar
só alguns casos: o bombardeio ao barrio El Chorillo
no Panamá pelo Bush I, matando milhares de pessoas;
o bombardeio ordenado por Clinton a uma indústria farmacêutica
no Sudão, levando milhares à morte segundo os
poucos levantamentos realizados; ou a guerra terrorista contra
a Nicarágua, que deixou milhares de mortos e devastou
o país. Não deveria ser necessário prosseguir
com detalhes. O Brasil foi o primeiro alvo do terrorismo de
Estado apoiado pelos americanos depois da reversão
de Kennedy sobre o papel dos militares latino-americanos,
construindo as bases para o golpe de 1964, saudado pelo embaixador
Lincoln Gordon como "a mais decisiva vitória individual
da liberdade na metade do século 20". Em nenhum
desses casos as vítimas tiveram algum direito moral
ou legal de recorrer à violência para punir supostos
terroristas. Cuba, por exemplo, não tem direito de
pôr em prática bombardeios ou atos bioterroristas
contra os EUA, mesmo sendo talvez o maior alvo do terrorismo
patrocinado pelo Estado americano desde 1959. Nem o Haiti
tem o direito de fazer o mesmo, ainda que os EUA se recusem
a extraditar um criminoso que liderou as forças paramilitares,
que brutalmente assassinaram milhares de pessoas em um golpe
que recebeu o tácito apoio de Bush I e Clinton. A reação
não seria legítima nem nos piores casos.
Quando o Ocidente é
a origem do terrorismo internacional, tais responsabilidades
são consideradas atrocidades desprezíveis, e
adequadamente são. É o mais elementar dos truismos
morais: se algumas medidas são consideradas legítimas
quando aplicadas aos inimigos, nós precisamos concordar
- e de fato insistir - que elas se apliquem também
a nós. Quando os poderosos e privilegiados ascenderem
a esse mínimo nível de integridade moral, será
possível discutir o problema de maneira séria.
Até que essa mudança
revolucionária aconteça, nós continuaremos
a viver em um mundo descrito há milhares de anos por
Thucydides, um mundo em que os grandes e poderosos fazem o
que querem e os fracos sofrem como devem, enquanto o sacerdócio
secular lidera o coro de aplausos por seus líderes,
enaltecendo a "fase nobre" e a áurea santificada
de seu empenho no estrangeiro, para pegar emprestado algumas
fraseologias de analistas respeitados dos maiores jornais
do mundo.
Um dos mais memoráveis
triunfos da terrível propaganda do Ocidente é
que é ainda válido declarar esses truísmos
factuais e morais. Alguém pode esperar que eles sejam
entendidos automaticamente, sem a necessidade de nenhuma explicação,
particularmente entre as vítimas tradicionais. Infelizmente,
isso não é assim. Escravidão, opressão
das mulheres e dos trabalhadores, e outras violações
severas aos direitos humanos têm conseguido ficar ainda
mais duras em parte por causa dos valores que os opressores
têm incorporado às vítimas, de várias
maneiras. Por isso, o "aumento da consciência"
é freqüentemente o primeiro passo para a libertação.
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