As guerras e o discurso pacifista,
de Moisés Mendes

O Fórum Social Mundial reúne os defensores da paz, mas convive com um paradoxo:
organizadores do contraponto a Davos também se divertem com a retórica belicista

      O jornalista Bernard Cassen conta a história em artigo sobre as origens do Fórum Social Mundial, publicado nos anais do FSM. Em fevereiro de 2000, em sua sala de diretor do Le Monde Diplomatique, em Paris, conversava com os brasileiros Oded Grajew, presidente da Associação de Empresários pela Cidadania (Cives), e Chico Whitaker, secretário-executivo da Comissão de Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Cassen saiu da sala com a idéia do encontro mundial, levada ainda fresca e com entusiasmo juvenil ao diretor de redação do Le Monde, Ignacio Ramonet:

     - Ignacio, vamos montar uma operação histórica. Vamos afundar Davos.

     Claro que o 1º Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, não afundaria o histórico Fórum Econômico Mundial (FEM) da cidade suíça, que este ano se realiza em Nova York e em 2003 volta para Davos. O que fez foi articular, com entonações variadas, a retórica e as ações globais antineoliberalismo. A segunda edição do evento, com o mesmo apelo de Um Outro Mundo É Possível e o mesmo formato, também será em Porto Alegre, de 31 de janeiro a 5 de fevereiro.

     Vai debater alternativas para uma "globalização humanitária", abordando trabalho, comércio, especulação financeira, dívida externa, exclusão social. Mas o grande foco foi dirigido para a conferência da paz - ou Um Mundo Sem Guerras é Possível.

     Articula-se, sob a inspiração da reação militar aos ataques terroristas de 11 de setembro, o combate do belicismo como discurso e prática condenáveis. Dissimulado ou não, será montado em Porto Alegre o grande júri do julgamento americano no Afeganistão. O escritor uruguaio Eduardo Galeano antecipa:

      - Diz o refrão espanhol que a cabra arrasa o monte. O presidente dos Estados Unidos confirma o dito e os piores prognósticos proclamando que "quem não está conosco, está contra nós". Decidiu separar a humanidade em dois, bons e maus. Pressupõe-se que eles sejam os bons. E seu público, parlamentares republicanos, democratas, generais, funcionários, aplaudem de pé. A frase "vamos destruí-los" provoca um movimento ascendente na popularidade de Bush.

     A construção da utopia da paz mundial inicia-se pela condenação da linguagem bélica e a apresentação do que a ela se contrapõe. O Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel estará em Porto Alegre para defender um mundo sem guerras, mesmo as do varejo miúdo, as esquecidas, com um refrão de 1968:

     - Sejamos realistas, peçamos o impossível.

     Galeano, Frei Betto, Noam Chomsky, Esquivel também dirão em Porto Alegre que a ação belicosa tem verbos próprios e bem definidos - a área da especialidade de Chomsky. Todos eles poderiam chamar Cassen para um canto e perguntar:

     - Que história é essa de afundar Davos?

     O belicismo, antes de se industrializar e mover ódios e economias, é retórico e foi parar, enviesado, na frase de inauguração da idéia do fórum apresentada pelo próprio Cassen. O lingüísta Chomsky poderia submeter a frase do francês a uma dissecação complexa, para que não fique exposta apenas no que tem de primário como jargão de batalha naval. A operação histórica para anunciar que um mundo sem guerras é possível acomoda-se num fórum que pretendia afundar Davos? O FSM superlativo não seria um contraponto ao FEM para que os neoliberais não continuem falando sozinhos, mas um confronto para definir um vitorioso, um duelo em que um teria que ir a pique.

     A frase de almirante de Cassen é dele, não é do fórum, e apenas repete provocações sempre renovadas como chiste ou não. Massacram-se, afundam-se, trituram-se, aniquilam-se, militarizam-se adversários e concorrentes na política, na economia e até nos esportes. O sociólogo Emir Sader, por exemplo, viu o conflito no Afagenistão como um massacre, não como uma guerra. Só que o primeiro confronto mundial gerenciado pela tecnologia da terceirização, em que as batalhas por terra foram entregues à Aliança do Norte e apenas um soldado americano foi morto em combate no chão pelos inimigos, entrará na pauta por fora.

     O fórum do ano passado foi mais dicursivo, este se apresenta como propositivo. Se dispõe a tirar propostas de solução para os conflitos do Oriente Médio, do País Basco, de Chiapas e da Colômbia. O Afeganistão não está na lista, uma omissão, segundo parte da CUT. Propor o que para a guerra antitalibãs, que matou 3,8 mil civis - segundo estatísticas do americano Marc Herold, professor de Economia na Universidade de New Hampshire -, se a campanha teve o apoio dos estadistas ocidentais, já acabou e Bin Laden fugiu?

     Guerras espetaculosas, como a do Afeganistão, encobrem massacres subterrâneos, crônicos. Pérez Esquivel lembra que há mais de 50 conflitos no mundo hoje. São matanças cotidianas de guerras civis e étnicas, mortais discórdias tribais. Quem poderia - sem prejudicar a sesta da ONU? - pelo menos gerenciar tantos desacertos?

     O impossível de Esquivel e de outros convidados passa, invariavelmente, pela defesa de um controle dos complexos industrial-militares e pela compreensão de que as desigualdades moveriam tudo, até mesmo o terrorismo. O conselho internacional do fórum, reunido em Dacar, Senegal, em outubro e novembro, concluiu assim:

     - A solução de conflitos, e em primeiro lugar o da Palestina, irá erradicar as condições que dão origem ao terrorismo. A lógica de guerra será substituída por uma lógica da paz.

     É mais ou menos o que diz o sociólogo Frei Betto:

     - E se os países mais ricos do mundo se aliassem, não para bombardear um povo miserável, como o do Afeganistão, mas para combater as causas do terror?

    Ou, na lógica moral do americano Noam Chomsky:

- Se abrigar suspeitos de terrorismo constitui um crime que faz com que o país mereça ser bombardeado, então boa parte do mundo, incluindo os EUA, deveria ser atacado imediatamente.

      Ou Oded Grajew, um dos idealizadores do fórum:

     - Terrorismo e guerra estão do mesmo lado, são duas faces da mesma moeda. Do outro lado está a paz.

     Enquanto os Nobel da Paz Mairead Maguire, Rigoberta Menchú Tum e Esquivel estiverem debatendo o mundo sem guerras em Porto Alegre, um colega de láurea, Yasser Arafat, continuará acuado em seu canto, e a população afegã estará comendo a farinha jogada, com panfletos ditos pacifistas, nos intervalos dos bombardeios aéreos americanos. O impossível é grandioso.