A Argentina, para não esquecer
Miguel Rosseto, vice-governador do RS - 02/01/2002

     O colapso da Argentina no final de 2001, o sofrimento de seu povo e suas manifestações de revolta e desespero, soam como uma grave advertência para toda a América Latina, que vem, há mais de uma década e com poucas exceções, adotando receitas políticas e econômicas semelhantes.

     O modelo faliu. Não sobrou nada para a retomada de um processo de recuperação, por mais lento que seja. A Argentina não tem mais moeda, desnacionalizou a sua produção e privatizou toda a estrutura estatal. A estrutura produtiva do país foi arrasada e com ela o emprego e a renda. O governo não tem mais à sua disposição instrumentos eficazes para governar e definir políticas. A saúde, a educação, as estradas, as telecomunicações, os combustíveis, a previdência, os bancos, os transportes, tudo foi privatizado, e a economia foi completamente subordinada aos interesses do mercado externo. Tudo vai precisar, de alguma forma e com enormes dificuldades, ser reconstruído.

     Pior, não existe, no cenário atual, nenhuma possibilidade de recuperação rápida, nenhum projeto viável que seja capaz de alavancar a economia, gerando emprego e renda, no curto ou médio prazo.

     Mas mais impressionante é a solidão da Argentina em sua crise. É incrível como os seus parceiros de globalização agem agora como se nada tivessem a ver com o assunto. Em busca de impunidade, os que ontem defenderam com entusiasmo a implantação do modelo lá e aqui no Brasil, tanto no que diz respeito ao seu conteúdo quanto na velocidade de sua aplicação, permanecem agora num silêncio cínico e oportunista. Nenhum organismo financeiro internacional foi capaz de manifestar uma posição autocrítica sobre o modelo imposto aos argentinos e, muito menos, de propor medidas de socorro à economia, capazes de viabilizar o país.

     Foram o grande capital internacional e as elites internas quem primeiro saquearam nossos vizinhos. Os saques patrocinados pelo povo antes do Natal foram a resposta desesperada de uma sociedade que paga a conta há mais de uma década e que chegou ao seu limite de tolerância.

     Quanto ao Brasil, mesmo que, apressadamente, representantes do governo federal ou de instituições financeiras falem em "descolamento" da situação argentina e sublinhem as diferenças atuais da política cambial, razão da nossa sobrevida após 1999, em tudo mais o modelo aqui implantado é idêntico.

     Desde os anos 80, em razão da crise da dívida externa, enormes pressões foram feitas sobre os governos da América Latina por parte dos EUA, do FMI e dos bancos credores para forçar a adoção desse tipo de política econômica. O medo diante dessas chantagens, sempre um mau conselheiro na vida política, levou a sucessivas capitulações e, finalmente, à renúncia à autodeterminação e à adoção do modelo neoliberal. Essa é a razão fundamental do fracasso argentino, só não experimentada por nós brasileiros, em toda a sua dramaticidade e na sua gravidade, porque o governo federal foi derrotado depois de quatro anos, em sua tentativa de aplicar uma política de câmbio irreal. Que o digam a agricultura e a indústria.

     Não sabemos quais caminhos a Argentina seguirá daqui para a frente. As candidaturas à presidência surgidas até agora lembram o passado. A falta de uma alternativa que tenha legitimidade e vitalidade política para apontar um novo caminho para o país parece denunciar a fadiga de uma sociedade fraturada, primeiro, por uma ditadura militar sangrenta e, logo depois, pelo arrasador modelo neoliberal.

     Mas a maior lição da crise argentina talvez seja a de mostrar ao mundo que não há mais como negar uma pauta internacional que trate de globalizar a solidariedade; que rediscuta radicalmente a situação das dívidas externas e internas dos países pobres e periféricos; que restabeleça o equilíbrio nas relações comerciais entre os povos; que garanta a soberania de todos os países e estabeleça novas formas de financiar o desenvolvimento humano em todas as partes do planeta. É esta a agenda do próximo Fórum Social Mundial.