FENÔMENO INVISÍVEL
textos ÂNGELA BASTOS
angela.bastos@diariocatarinense.com.br
imagens FELIPE CARNEIRO
felipe.carneiro@diariocatarinense.com.br
uando é inverno, os campos catarinenses são encobertos por um nevoeiro espesso. Isso é comum em lugares de altitudes mais elevadas, como as serras. A paisagem se altera. A umidade forma pequenas gotas que parecem lágrimas ao pingar das folhas das árvores. Popularmente chamada de cerração, a ocorrência deixa o cenário turvo e impede a visibilidade. Esse evento meteorológico remete a outro fenômeno, também encoberto, imperceptível, igualmente lacrimejante – a violência contra a mulher que vive na área rural.
Para mostrar essa realidade nebulosa, é preciso deixar o asfalto; enveredar por estradas de chão; avistar plantações; abrir e fechar porteiras. É o que fizemos para, em formato multimídia, compor Sozinhas – a história de mulheres que sofrem violência no campo.
Ao perseguir esse viés perverso enraizado numa cultura historicamente de dominação masculina, encontramos mulheres maceradas em um cotidiano de violência física, psicológica e financeira.
É o caso de Eraci Terezinha Eichelberger Seibert, 63 anos, que vive em São Miguel do Oeste, proibida pelo marido de se despedir dos pais no leito de morte. Também de Lucimar Roman, 53 anos, moradora de São José do Cedro, escorraçada e mandada embora pelo marido com três filhos pequenos. Se Eraci e Lucimar conseguem falar, deixam-se fotografar e identificar, outras se escondem por medo de represálias.
Com a voz sufocada, Tânia* recorda das fugas para o mato, para se proteger do machado. Ade* tem os braços marcados por cicatrizes deixadas pelo fio do facão e ossos quebrados pela força do homem que, aos 14 anos, sinalizou um casamento nada respeitoso. Estuprada, teve a genitália dilacerada. Mesmo assim, Ade foi obrigada a casar.
Para algumas, não há rostos ou vozes. Outras agricultoras emprestam timbres para revelar vivências brutais, como a da mulher obrigada a substituir um boi na junta que lavrava a terra. E a que lê a carta em que outra camponesa descreve chutes e cotoveladas recebidos na barriga durante a gravidez, diante da dúvida de um marido enfurecido acerca da paternidade do bebê.
Experiências de mulheres que levantam antes de o dia amanhecer, que deitam depois de a noite adormecer. Às vezes, acordadas aos sobressaltos entre a madrugada que cai e a manhã que raia. Personagens solitariamente assentadas em um campo áspero, árido, tedioso. Sobrecarregadas de trabalho, confinadas nas próprias casas, assustadas com os números.
Em 2016, das 2.554 ligações originadas de Santa Catarina para o Disque Denúncia (180) cerca de 7% (184) saíram da área rural. Uma estatística desalentadora, levando-se em conta as distâncias, a dificuldade de comunicação, o isolamento e a falta de estrutura para abrigar e proteger as campesinas. Se algumas denunciam, para outras, não houve tempo – ou providências adequadas –, como as sete mulheres assassinadas entre janeiro e maio deste ano na região do Oeste.
Sozinhas dá espaço a essas narrativas, traz números, ouve pesquisadoras e lideranças acerca do que se passa num campo nem tão bucólico como se imagina. Especialmente, dessa violência escondida sob um véu sombrio como a cerração, que deixa invisível a paisagem.
*Nome fictício
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