ASSISTA

AO WEBDOC

depois de um dia colhendo e carregando pés de fumo, Eraci Seibert foi atacada com um pedaço de lenha que lhe rasgou a testa. mas a maior dor é ter sido impedida pelo marido de se despedir dos pais no leito de morte

O mais forte, o que mais me doeu nos meus 35 anos de casamento foi ele, o meu marido, ter brigado, me ameaçado de morte e não ter permitido eu dar adeus. Quando cheguei, o pai já estava morto e enterrado.

arregar 4 mil pés de fumo numa carroça, chegar ao galpão e ser recebida com uma paulada na cabeça dói muito. Assim como a costura dos pontos para fechar o ferimento de onde escorre sangue. Mas também dilacera não ter a chance de se despedir dos pais no leito de morte. É o que descreve a agricultora Eraci Terezinha Eichelberger Seibert, 63 anos, moradora na Linha Canela Gaúcha, localidade que fica no limite dos municípios de Paraíso e São Miguel do Oeste.

— O mais forte, o que mais me doeu em meus 35 anos de casamento foi ele, o meu marido, ter brigado, me ameaçado de morte e não ter permitido eu dar adeus. Quando cheguei, meu pai já estava morto e enterrado.

Dias depois, a mãe dela reuniu os filhos e fez uma proposta. Daria a parte das terras a que tinha direito como viúva para Eraci, desde que fossem morar perto, em Arroio do Tigre, no Rio Grande do Sul. A reação do marido foi um desastre. Se ela quisesse, poderia ir, mas a filha ficaria com ele.

— Até a menina ele tentou me tirar na vida.

Anos mais tarde, a situação se repetiria na doença da mãe. Ao saber que o quadro era irreversível, Eraci quis pegar um ônibus no dia seguinte para se despedir dela. Outra noite de briga dentro de casa, intimidação e pavor dos filhos pequenos que a tudo assistiam.

A agricultora desata em prantos quando lembra que só queria visitar a mãe, e não passear, como estava sendo acusada.

— Ela morreu e eu não a vi.

Por isso, considera ter levado “uma vida de não e não”.

Eraci é o retrato da mulher que cresce enroscada numa teia de domínios. Primeiro, precisou obedecer aos pais, já que eram “eles que mandavam”.

Queria ser freira, mas não recebeu apoio. Era moça bem jovem quando se casou. Na construção da nova família, reencontrou-se com papéis conhecidos desde a infância. Tudo decidido em função do homem. Trabalhava em casa, cuidava dos filhos e acompanhava palmo a palmo o serviço na roça. Muitas vezes, tinha que ir antes do que ele.

— Eu criei a filha mais velha dentro de um cestinho, sempre perto de mim, enquanto eu trabalhava.

A agricultora faz parte de uma geração de mulheres que nunca teve empregada. Dessas que levantam antes do dia. E que se deitam depois da noite. As mesmas que despertam aos sobressaltos entre a madrugada que avança e o dia que raia. Obrigadas a fazer sexo não por prazer, mas por prevalecer a cultura da posse sobre o corpo feminino.

Eraci é macerada em um cotidiano de violência. Nos últimos tempos, teve um pouco de sossego. Paradoxalmente, numa fase também de preocupação, a doença do marido. Dedicou-se a ele, diminuiu o ritmo das reuniões no grupo de mulheres e na igreja. Assim foi até que a depressão levou o agricultor a tirar a própria vida. Tudo isso aconteceu com uma doença que se abateu sobre as vacas leiteiras. Mais um processo de violência:

— Eu perdi o marido, o plantel de animais e ainda fui acusada por algumas pessoas de ter sido a culpada da morte dele.

Apesar de tudo, Eraci manteve para si o que vivia. Somente agora consegue falar abertamente sobre o assunto. E admitir os riscos que correu.

— Até a última hora, até o momento em que ele foi se suicidar, ele tentou me matar. Jogava um casaco sobre o meu pescoço e tentava apertar, dar um nó, mas eu protegia com o braço para não apertar. Decerto, queria me matar primeiro, e depois fazer igual com ele. Como acontece em muitos lares.

Por algum tempo, ela pensou que também iria adoecer. Nem chimarrão conseguia tomar. Mas recebeu apoio da família e ajuda dos vizinhos. Mudou de endereço e um neto foi morar com ela. Está aposentada, mas continua a trabalhar na terra. Planta árvores frutíferas e de chás e gosta de mostrar o canteiro florido de rosas. Às vezes, entre um mate e outro, olha pela janela e observa o vento deitando o capim. Mas sem força para dobrar as árvores. Mais ou menos como foi com ela, naquele dia em que depois de tanto trabalho foi recebida com uma paulada na cabeça por um motivo que nunca entendeu. Sabe, apenas, que o pedaço de lenha estava ali, à espera dela, para ser usado a qualquer momento.

ACOMPANHE OUTRAS HISTÓRIAS

VOLTAR AO MENU PRINCIPAL

QUEM SOMOS

Repórter

Ângela Bastos

Editora

Julia Pitthan

Repórter fotográfico

Felipe Carneiro

Editor de fotografia

Ricardo Wolffenbüttel

Edição de vídeo

Chico DUARTE

Design digital

Maiara Santos

Ilustrações

Aline Fialho

DC: NAS REDES

Material publicado em 26 de junho de 2017