O LÍDER COMUNITÁRIO
QUE VIROU UM ANDARILHO
Por telefone, ao final da tarde de uma quarta-feira, o ex-líder comunitário concorda em conceder uma entrevista. Mas não aceita marcar um local. Diz apenas que, na manhã seguinte, volta a ligar. Às 8h40min de quinta, usando outro número, ele cumpre a promessa. Marca o encontro para uma hora depois, em um município da Grande Porto Alegre. No local combinado, pede para que a reportagem seja feita em outra cidade.
A cautela adotada dá ideia de como tem sido a vida do ex-líder comunitário nos últimos dois anos e meio.
– Sou um andarilho e me sinto como se tivesse alguma doença contagiosa que me impedisse de ter contato com as pessoas. Vivo fugindo e me escondendo para não morrer nem colocar outras pessoas em risco – inicia a conversa.
Um recado a tiros
O drama do homem de 51 anos começou em 2013, quando o seu filho de 22 anos foi executado com 26 tiros, na Vila Jardim, na Zona Norte da Capital. Segundo ele, o crime teve motivação passional, embora envolva nomes ligados ao tráfico de drogas.
– Foi ciúme. A mulher de um traficante se apaixonou pelo meu filho e o líder do tráfico na Vila Jardim mandou matá-lo. Em troca, o bandido conseguiu unir duas vilas dominadas por traficantes.
Uma semana após esse crime e de ele ter prestado depoimento contra os traficantes da região, sua casa foi atingida por vários tiros. Ele considerou um recado expresso para que deixasse para trás o local em que sempre vivera até então – do nascimento aos 49 anos –, o trabalho, os amigos, os vizinhos e os filhos. Ou então, que desafiasse o risco de morte.
Vida sem as referências
Com uma sacola de roupas, o ex-líder comunitário virou um nômade:
– Minha cabeça foi colocada a prêmio pelos traficantes e minha vida virou de cabeça para baixo. Perdi as referências. Já andei pelo Interior, por outros Estados. Já tive uma empresa e hoje vivo de bicos. Tinha minha casa e agora dependo de conhecidos para ter onde dormir. Até no mato já dormi.
Seu tempo de permanência em cada local depende da realização de trabalhos eventuais e o encontro casual com algum conhecido.
– Cada vez que algum morador da Vila Jardim me vê, eu me mudo para outro lugar, pois podem comentar de ter me visto.
Os amigos e a própria família, ele pouco vê. Um dos filhos, viu há cerca de três meses. Com o outro, já nem lembra quando foi o mais recente encontro.
– As pessoas têm medo de estar comigo e morrer junto. Eu as compreendo. É triste estar passando pelo que estou passando. É muito triste.
DIÁSPORA DE UMA FAMÍLIA
Havia algum tempo que o filho, então com 22 anos, tentava alertar a mãe, uma doméstica de 50 anos, sobre atitudes suspeitas do pai, de 58 anos. Ela, porém, não estava convicta. Esperava por uma informação mais concreta para acreditar que o marido estava, de fato, envolvido com o tráfico de drogas. Era março de 2015 e a confirmação acabou vindo da pior maneira possível para a família de Alvorada.
– Eu estava trabalhando, quando invadiram a nossa casa para cobrar uma dívida de R$ 500 que ele (ex-marido) não teria pago. Meu filho acabou pagando as consequências. Foi ameaçado, deram uma coronhada, socos, chutes e cuspiram na cara dele. Levaram uma tevê de 29 polegadas e disseram que voltariam para matá-lo, se a dívida do pai não fosse paga – conta a mãe.
A avó do rapaz, de 72 anos, passou mal. Começava ali um martírio com sérias consequências para a família.
Nos dias seguintes, os autores das ameaças foram atrás do filho na escola, na parada de ônibus, entre outros lugares, deixando claro que sabiam onde ele poderia ser encontrado. E, em todas as vezes, repetiam as ameaças, exigindo os R$ 500.
Deixou o emprego
Enquanto isso, o responsável pela dívida permanecia desaparecido. Sozinha para decidir, a doméstica decidiu proteger os familiares e resistir, a fim de não perder a moradia.
– Mandei a família para outros lugares, enquanto eu juntava dinheiro para pagar a dívida. Eu fiquei. Resolvi aguentar a pressão e preservar a casa.
O filho deixou a escola e o trabalho e mudou-se para outro Estado. Lá, conseguiu um novo emprego, mas passou a ter de pagar aluguel. A mãe da diarista e uma sobrinha foram para outra região da cidade. Uma filha alugou uma casa em um município vizinho. As despesas foram multiplicadas.
– E eu que trabalhava de dia, com carteira assinada, tive de deixar o emprego, para cuidar da casa. Mantive o trabalho que eu tinha à noite, de cuidadora.
Depois de 92 dias sem dar qualquer sinal de vida, o marido reapareceu.
– Chegou na maior cara de pau, como se nada tivesse acontecido. Agora ele não mora mais aqui.
A doméstica conseguiu pagar a dívida. Afirma que levou praticamente um ano para conseguir se restabelecer. Sua vida, porém, nunca mais foi a mesma.
LÍDER DO TRÁFICO METIA O TERROR
No dia 1º de março, uma ação da 1ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa resultou na prisão de um dos traficantes que mais amedrontava moradores das ruas Patrimônio e Dona Veva, no Bairro Aparício Borges, Zona Leste da Capital.
– O cara estava cuidando da boca de tráfico da Rua Patrimônio e está envolvido na expulsão de mais de 20 famílias do morro – afirmou o delegado.
Duas execuções
O homem preso também é suspeito de dois homicídios cometidos no ano passado. Em um deles, a vítima foi Luiz Fernando Figueira Amorim, 33 anos, foi morto a tiros dentro de sua casa, na Rua Dona Veva, no dia 13 de abril. No outro, foi morto Valdir Correia Ferreira,30 anos, executado com 11 tiros, dentro de sua casa, na mesma rua, no dia 14 de outubro.
Ao todo, de acordo com o delegado, foram oito assassinatos ao longo do ano passado, na guerra entre as quadrilhas da Rua Patrimônio, da qual o preso faz parte, e uma rival, da Rua Dona Veva.
O período de tiroteios mais intensos e frequentes na região foi no mês de outubro, quando muitas pessoas deixaram suas casas. A estimativa é confirmada pela direção da Escola Estadual Jerônimo de Ornelas. Naquele mês, as famílias de oito crianças solicitaram transferência.
“Impera a lei do mais forte”
Para o sociólogo Rodrigo de Azevedo, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Puc, antigamente havia um vínculo maior dos traficantes com as comunidades, pois as lideranças eram exercidas por oriundos das próprias regiões, que praticavam assistencialismo. Atualmente, com a morte dos líderes daquele tempo, em muitos casos os espaços foram ocupados por criminosos de outras regiões, que substituíram o auxílio pelo terrorismo.
Diário Gaúcho – O que faz com que traficantes tenham tamanho domínio de determinadas regiões a ponto de expulsar moradores e, em certos casos, tomarem suas casas?
Rodrigo de Azevedo – O fato é que o mercado de drogas ilícitas produz relações sociais violentas, nas quais a chamada lei do mais forte impera. O tráfico então exerce um domínio territorial impondo ordens. Isso deve-se também ao fato de o Estado não ter uma presença constante dentro do que se espera. Nessas áreas, a violência é uma moeda de troca e está sempre presente, atingindo até mesmo aqueles que não estão diretamente vinculados a atividades ilícitas.
Diário – Quais as causas de tanta violência nessas áreas?
Rodrigo – Existe o mercado da droga, mas nem sempre isso acarreta relações violentas. As disputas de territórios, em função da fragmentação de mercado, com cada chefe de facção querendo dar demonstrações de força é que fazem crescer a violência.
Diário – Houve um tempo em que o tráfico mantinha uma relação de certa reciprocidade com comunidades, agindo com assistencialismo. Isso não existe mais?
Rodrigo – Antigamente, havia um vínculo maior com as comunidades, com as lideranças sendo exercidas por oriundos daquelas regiões. Mas com a morte dos líderes daquele tempo, em muitos casos os espaços foram ocupados por traficantes de outras áreas, outros bairros. E esses exercem o seu poder por meio da violência, tanto para manter, quanto para conquistar novos territórios.
Diário – Pode-se dizer que a situação atual é semelhante a do Rio de Janeiro?
Rodrigo – O Rio é um laboratório interessante por causa dessa fragmentação. Houve muita disputa por território entre facções, e hoje há também perda de espaço para as UPPs e para as milícias. O grande contraste ocorre no Estado de São Paulo. O PCC, que tem regras muito rígidas, domina o mercado do crime. A queda no número de de homicídios naquele Estado deve-se, em muito, a esse monopólio. Os acertos acontecem dentro do próprio grupo, e isso acabou reduzindo o número de confrontos.
Diário – Por que muitas famílias que perdem suas casas para o tráfico não denunciam?
Rodrigo – Em parte pela falta de confiança que há em relação a instituições como a polícia, pela forma como muitas vezes são reprimidas pessoas que não têm envolvimento com crimes. Por outro lado, a polícia não se atualizou com a criação de outros mecanismos de aproximação com as comunidades. Está faltando sinergia. Não há vontade política para se avançar em uma aproximação.
Ronaldo Bernardi
Luiz Armando Vaz
Carlos Macedo
Carlos Macedo
O terrorismo que vivemos na Região Metropolitana não tem relação com o islamismo, mas também mata, tortura e expulsa famílias de suas casas. Enquanto na Europa e na Ásia milhares se vêem obrigados a deixar suas moradias, abandonar até mesmo o país, por medo, aqui também há refugiados.
Há dois anos e meio, um homem perambula por casas de amigos, em diferentes cidades e em outros Estados. Volta e meia é no mato que ele tem de dormir. Já teve casa, carro e uma pequena empresa, mas foi obrigado a largar tudo.
No Centro da Capital, outro homem chora abraçado à mulher e observado pelos filhos. Não esconde o desespero provocado pela pressão dos criminosos.
Na Zona Leste, uma família teve de deixar a casa construída a custo do esforço pessoal. Não aguentava mais os frequentes tiroteios que obrigavam os filhos a rastejarem pela casa e a todos se esconderem embaixo das camas. São exemplos de um fenômeno cada vez mais frequente nas regiões conflagradas.
O drama de quem é obrigado a migrar de vila, bairro, cidade ou até Estado devido a ameaças e ações do crime é o tema da segunda reportagem da série Refugiados do Tráfico.
UMA FAMÍLIA SEM RUMO
– Não foi ainda, mano?
A provocação de um traficante, escorado em um muro com as mãos na cintura, fez um homem de 40 anos completos naquele mesmo dia, em meados de fevereiro, chegar ao limite.
O autônomo passou pelo traficante de cabeça baixa e entrou na casa onde mora com a família. Não aguentava mais. Reuniu a mulher e os quatro filhos, os colocou no carro e partiu. Não sabia para onde ir, apenas para onde não queria mais voltar: no Bairro Jardim Carvalho, Zona Leste da Capital.
Naquela noite chuvosa, estacionou na Praça da Matriz, no Centro da Capital. Ali, diante do Palácio Piratini, sentado em um banco úmido, pedia socorro. Com as duas mãos, segurava uma carta escrita com caneta verde-limão em duas folhas de caderno dobradas quatro vezes. Era o resumo de uma história e um pedido para que alguém o ajudasse.
– Colocaram uma boca de fumo do lado da minha casa e mandavam perguntar a toda hora por quanto eu queria vender. Ameaçavam, intimidavam. Não aguentei – conta o morador.
SAÍRAM SÓ COM A ROUPA DO CORPO
Os planos de ter uma casa de alvenaria foi se tornando realidade em anos de muito suor. Literalmente. Além do trabalho fora de casa, das tarefas domésticas, da atenção ao marido e aos dois filhos, a mulher trabalhou duro para construí-la, na Zona Leste de Porto Alegre. As paredes foram erguidas aos poucos.
Porém, em um ritmo bem mais acelerado, o sonho foi sofrendo revéses. A moradia foi construída em uma área dominada por traficantes que foram foram tirando o sono da família.
– Carreguei areia, ajudei a virar massa para construir minha casa, e agora tenho que sair dela com minha família porque é muita pressão – conta a mulher, sem esconder o desespero.
A família não recebeu determinação expressa dos traficantes para deixar o local, mas uma sucessão de fatos deixou tudo claro.
– Eles vivem ameaçando, dizendo que todo mundo é alcaguete. Nossa casa está cheia de marcas de bala. De noite, nossos filhos têm que rastejar por medo de balas perdidas.
Os problemas afetam também sua mãe e sua sogra, que moram na vizinhança. Um incêndio supostamente criminoso atingiu a casa da sogra. Já a mãe, teve de ser resgatada de casa pela Brigada MIlitar (BM).
– Uma madrugada dessas, minha mãe ligou. Estava embaixo da cama, apavorada com um tiroteio.
Em seu socorro, a mulher foi até um quartel da BM e, em uma viatura, retirou a mãe de casa.
– Não posso pagar aluguel. Tivemos de sair para a casa de um amigo levando só a roupa. Ficamos quatro meses lá. Agora voltamos, mas não sabemos até quando poderemos ficar.
FIM DE UM NAMORO,
COMEÇO DE UM MARTÍRIO
Os arranhões ficaram até bem pouco tempo nos braços e joelhos dos quatro membros de uma mesma família de Viamão. Já o medo e o trauma parecem não ter prazo para a cura.
Um casal, uma filha adolescente e uma criança tiveram de sair rastejando pelos fundos da casa, enquanto bandidos davam tiros nas paredes, porta e janelas da casa.
As ameaças, que culminaram com a tentativa de chacina da família, tiveram início em junho do ano passado, como forma de pressão, ao término de um namoro. A filha do casal chegara a envolver-se com um dos criminosos. Porém, ao tomar conhecimento de suas ligações com o tráfico, decidiu romper.
O rapaz, no entanto, não se conformou. Passou a intimidá-la e chantageá-la, acreditando que, desta forma, ela aceitaria reatar o namoro. A adolescente, de 16 anos, porém, manteve a recusa.
Roupas no corpo
O inconformismo deu lugar à revolta. Duas semanas depois do fim do relacionamento, o rapaz rejeitado e outros cinco, em três motos, foram à casa da família, para desespero do casal e dos filhos.
– Eram seis dando tiros, apavorante demais – lembra, trêmula, a mãe da jovem.
A decisão pela fuga do local foi quase imediata. Mal deu tempo de pensar em levar o máximo de roupas que poderiam, prevendo que dificilmente voltariam àquela casa.
– Colocamos umas roupas sobre as outras e saímos prelos fundos, rastejando, para que eles não nos vissem. Ficamos com os braços e os joelhos bastante esfolados – contou.
A família mudou-se para outra região do município, deixando tudo para trás.
O MEDO DE DENUNCIAR
O medo de represálias de parte dos traficantes faz com que muitas famílias fiquem resignadas diante da perda da moradia, quando expulsas por criminosos. A avaliação é do delegado de Homicídios Rodrigo Pohlmann. Recentemente, ele comandou uma operação que resultou na prisão de um líder do tráfico responsável pela saída de cerca de 20 famílias de uma vila no Bairro Aparício Borges, na Zona Leste da Capital.
Ainda assim, o delegado acredita que é possível, mediante um trabalho que envolva investigação e aproximação da polícia com as comunidades, a descoberta deste tipo de crime e a retomada das casas.
– Não são todos os que têm coragem de registrar casos assim. Muita gente tem medo de denunciar. Temem que aconteça alguma coisa para si ou para algum familiar.
Mas, muitas vezes, recebemos informações ou denúncias informais, que nos dão uma base para investigar – explica.
No caso das famílias do Bairro Aparício Borges, de acordo com o delegado, a primeira informação chegou à polícia de forma casual. Quando os agentes da 1ª DHPP cumpriam um mandado de prisão no Bairro Lomba do Pinheiro, acabaram descobrindo uma casa que abrigava 20 refugiados, de diferentes famílias que haviam sido expulsas de suas moradias.
– Eram familiares de um traficante e, mesmo não morando com ele, foram retiradas de suas casas pelo líder de uma quadrilha rival – conta o delegado.
A partir deste primeiro caso, os policiais identificaram vários outros, em situação semelhante, mesmo sem qualquer envolvimento com a guerra do tráfico.
– Essas famílias acabam passando por uma série de transtornos. São obrigadas a mudar as crianças de escola, a mudar os postos de saúde que utilizam, enfim, enfrentam uma série de dificuldades que vão além da violência sofrida com a expulsão de casa.
De acordo com o delegado, entre as famílias expulsas, há casos em que ocorre o retorno para a moradia, principalmente quando ocorre a prisão do traficante que as ameaçava. Porém, grande parte não volta mais.
– Sempre fica a sensação de medo. Cabe à polícia deixar os moradores mais confiantes, com sentimento de segurança, percebendo a presença da polícia Depois de nossa ação, moradores vieram nos agradecer.
Perseguição
Remexendo a carta úmida e amassada, ele chora quando para de falar. A mulher o abraça. Cobre o rosto com as mãos e fica sem voz ao lembrar que chegou a liberar a companheira para deixá-lo.
Não queria obrigá-la a suportar o medo com ele. Mas ela ficou e dividia naquela noite o banco da Praça da Matriz, enquanto os filhos esperavam dentro do carro.
– Não aguento mais, sou perseguido onde eu vou. Chegam a bater atrás do meu carro para me irritar, pra me fazer reagir. Atiram foguetes de noite por cima da garagem, onde eu durmo com a mulher e as crianças – relata.
Em outubro,deixou o emprego fixo para viver de bicos. Mas tem medo de sair de casa, sempre perseguido pelos olhares dos soldados do tráfico. Os filhos adolescentes concentram os maiores temores.
– Eles são teimosos. Estão namorando e não querem ir embora. Esses tempos, um deles estava com a menina e foiseguido por cinco caras armados. Querem provocar reação dele. Aí, já sabe o que vão fazer – prevê.
Tadeu Vilani
Divulgação/Polícia Cívil
Divulgação/Polícia Cívil
“O recado tá dado”
Apontado como líder do tráfico de drogas no Campo da Tuca, Zona Leste de Porto Alegre, Juraci Oliveira da Silva, o Jura, 40 anos, que cumpre pena na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas, gravou no início do ano um recado pelo WhatsApp. Em tom ameaçador, sugere aos descontentes que deixem o local, “em vez de caguetar”. Confira o recado de Jura que já está nas mãos da Justiça:
EXPULSOS DE CASA