apesar dos primeiros testes da substância realizados no CIEnP, em Florianópolis, terem acusado resultado negativo, pacientes catarinenses recorrem à Justiça para manter o tratamento de câncer com fosfoetanolamina
texto | EMERSON GASPERIN
edícula de alvenaria nos fundos da casa de dois andares em uma ruazinha no centro de Pomerode já trouxe muitas alegrias para Carlos Kennedy Witthoeft. Hoje, desperta lembranças dolorosas no representante comercial de 52 anos. Em 23 de junho de 2015, ele foi preso em flagrante e os equipamentos do laboratório improvisado em um dos cômodos, apreendidos. Dezessete dias, um habeas corpus e dez salários mínimos de fiança depois, a Justiça lhe permitiu responder ao processo em liberdade. Carlos é acusado de falsificação de medicamentos, crime considerado hediondo e passível de 10 a 15 anos de pena. Ele produzia cápsulas de fosfoetanolamina sintética e as doava às pessoas que batiam à sua porta atrás da chamada “pílula do câncer”.
– Está do jeito que a polícia deixou, evito entrar aqui – aponta o ex-químico diletante, mal contendo as lágrimas, para o interior da sala de azulejos brancos onde restam apenas a bancada junto à parede e alguns frascos vazios no chão.
A substância manipulada por Carlos protagoniza uma discussão que reacende as esperanças de pacientes desenganados, contraria a comunidade médica, motiva ações judiciais e aguarda pela definição do governo federal. Sintetizada na década de 1990 pelo cientista Gilberto Chierice, do Instituto de Química de São Carlos (IQSC), ligado à Universidade de São Paulo (USP), a fosfoetanolamina era pouco conhecida fora do universo de doentes que o procuravam para testá-la gratuitamente até 2014. Naquele ano, porém, a aposentadoria de Chierice levou a instituição a interromper sua produção e distribuição enquanto a droga não obtivesse as licenças e registros exigidos pelo Ministério da Saúde e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A resolução chamou a atenção do grande público para a existência de um remédio que curaria o câncer, independentemente do tipo. De nada adiantou oncologistas alertarem que ainda pairavam incertezas sobre a eficácia ou que outras substâncias também surgidas como “milagrosas” acabaram em frustração. Tampouco surtiu efeito o renomado doutor Drauzio Varella falar que os “comprimidos que vêm em um saco plástico sem rótulo e sem bula têm enganado muita gente” no Fantástico. Após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em favor de um paciente que pleiteava o acesso à droga, obrigando a USP a fornecê-la, começaram a se multiplicar liminares semelhantes por todo o país.
O clamor popular fez Brasília se mexer. Em 2015, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação remanejou verbas para destinar R$ 10 milhões à pesquisa da substância. Os trabalhos são conduzidos por laboratórios nas universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ), Ceará (UFC), estadual de Campinas (Unicamp) e pelo Centro de Inovação e Ensaios Pré-Clínicos (CIEnP), instalado no Sapiens Parque, em Florianópolis. No último dia 8 de março, antes mesmo de saírem os primeiros relatórios, o projeto de lei que autoriza a produção, comercialização e uso da fosfoetanolamina, assinado por 25 deputados de diversos partidos, foi aprovado por unanimidade na Câmara. No dia 22, passou pelo Senado.
O texto segue agora para sanção ou veto presidencial. Em nota, o ministro da Ciência e Tecnologia, Celso Pansera, recomendou que a fosfoetanolamina seja legalizada como suplemento alimentar pela Anvisa para poder ser encontrada em farmácias à medida que avancem os estudos que irão comprovar se a substância deve ou não ser classificada como um medicamento. No entendimento do ministro, isso impediria que os interessados recorressem a meios alternativos – muitas vezes, suspeitos e sem nenhuma garantia – para providenciá-la.
ois dias depois de comemorar o 80o aniversário, em março de 2007, a mãe de Carlos baixou no hospital com hemorragia. Diagnóstico: Irene Volkmann estava com câncer no colo do útero e tinha mais dois meses de vida. Nas condições dela, cirurgia ou quimioterapia estavam fora de cogitação – só radioterapia, ainda assim somente para lhe atenuar o sofrimento. O filho se desesperou. Na busca por tratamento, descobriu que no interior paulista havia sido desenvolvida uma substância que vinha apresentando resultados animadores em pessoas com a doença. Entrou em contato com Gilberto Chierice e recebeu em casa dois pacotes de 60 cápsulas cada de fosfoetanolamina com a prescrição de ministrar duas doses diárias à enferma. Foi logo dando três porque “ela estava tão debilitada que não saía mais da cama e sua alimentação se limitava a pequenos pedaços de pão pela manhã”.
No terceiro dia, conta Carlos, dona Irene levantou-se, desceu a escada, foi à cozinha e pediu para tomar uma sopa. No quarto, comeu um pouco de carne de panela e, em vez de tornar a se deitar, pegou agulha e linha para ficar cerzindo roupas. No 18º, ele teve que ir ao banco e quando voltou a mãe estava em pé no quintal, enxada na mão, dizendo que “ia dar uma capinadinha”. A melhora gradual da velha senhora, filha de Ernesto Volkmann, fundador da empresa de ônibus que leva o sobrenome da família – pioneira no transporte de passageiros entre Pomerode e Blumenau em 1927 – atiçou a curiosidade da cidade.
– As pessoas viam minha mãe disposta e perguntavam qual o segredo para ela ter se recuperado tão rápido – recorda Carlos.
Revelada a resposta, vinha o apelo para que conseguisse mais fosfoetanolamina, pois quase todo mundo tinha algum parente ou amigo que enfrentava o mesmo calvário. Por telefone, Carlos ouviu de Chierice que seria impossível atendê-lo porque a produção era insuficiente para suprir a demanda. Então, lançou a proposta: e se ele o ensinasse a fabricá-la? O cientista desconversou, questionando a capacidade de um vendedor, leigo em química, aprender os meticulosos procedimentos necessários para produzir a substância.
– Mas eu tanto insisti, falando que tinha força de vontade e que queria ajudar outras pacientes como ele tinha ajudado minha mãe, que o Gilberto concordou.
Entre idas e vindas a São Carlos, o homônimo do santo levou quatro meses para dominar a técnica de fabricação da droga. Com a colaboração de amigos, comprou matéria-prima, bomba de hidrovácuo, beckers (recipiente para soluções líquidas), máquina encapsuladora e demais utensílios para montar seu laboratório. Kardecista, ele iniciava a lida sempre com uma prece e colocava música clássica, celta ou cantos gregorianos para lhe acompanhar durante o processo. Dedicando-se às noites e aos finais de semana, demorou dez meses para se sentir seguro quanto à qualidade da composto que que produzia – testado em si próprio.
A notícia se espalhou. Segundo a vizinhança, todos os dias pessoas apareciam em frente à casa de Carlos lhe pedindo as tais pílulas. Elas eram recepcionadas e confortadas por sua mulher, Aridina Gutknecht Witthoeft, Rita para os locais.
– Ele jamais cobrou um centavo ou aceitou alguma espécie de pagamento, só fazia o bem – atesta o advogado blumenauense Paulo Heleno dos Santos, um dos muitos que consumiram a fosfoetanolamina de Carlos.
Em 2009, aos 68 anos, Paulo soube que um tumor crescia em seu rim esquerdo. À época trabalhando como administrador de empresas em Pomerode, ele já conhecia Carlos e seu envolvimento com a substância. Por dois anos, tomou as cápsulas. Em três meses, o câncer parou de evoluiu. Mais 11 meses e Paulo garante que estava “curado”.
– O efeito do remédio é incontestável. Não há nenhuma contraindicação. A liberação da fosfoetanolamina é uma questão de tempo, tomara que aconteça o quanto antes – anseia o advogado.
ssa é a expectativa também de protético Hilario Segala, 41 anos, há cinco convivendo com um carcinoma no intestino grosso – o dobro da estimativa de vida que o médico lhe calculou ao detectar que 75% do órgão já estavam afetados. Em outubro de 2015, após já ter tentado aveloz (planta à qual são atribuídos poderes analgésicos, cicatrizantes e anti-hemorrágicos) e garrafadas de babosa com mel, ele passou a tomar a fosfoetanolamina enviada pela USP mediante liminar.
– Em menos de uma semana, meu ânimo era tanto que minha mulher comentou: “Nossa, onde é que desliga?” Larguei até o antidepressivo – diz.
Naquele mês, os nódulos aumentaram de 0,7cm cada para 1,1cm e 1,9cm. Em novembro, estavam maiores, mas evoluíram em menor proporção do que na tomografia anterior. Em fevereiro de 2016, permaneciam do mesmo tamanho.
– Quero ver como estarão no próximo exame, que as cápsulas acabaram – teme o morador de Santo Amaro da Imperatriz, mostrando os laudos com as medidas.
Hilario faz parte de um grupo formado nas redes sociais que, sob o slogan “quem tem câncer, tem pressa”, luta pela regulamentação da droga. Pela internet, seus 2,7 mil componentes dividem experiências e trocam informações sobre como conseguir o composto. Só as advogadas Flora Juliani Galvão, Vera Corrêa Chterpensque e Marisa Nogueira Ferreira, de Florianópolis, representam cerca de 1 mil clientes que reivindicam a fosfoetanolamina.
A transferência da produção da substância – para testes clínicos, não para cumprir liminares – pela USP em fevereiro para a Fundação para o Remédio Popular (Furp) e para o laboratório PDT Pharma, ambos em Cravinhos (SP), significa um obstáculo a mais nesse sentido. De acordo com Flora, elas vão alegar “litisconsórcio passivo necessário”.
– A gente está tentando convencer os juizes que as duas entidades foram credenciadas pela USP. Se eles não aceitarem, teremos que recomeçar do zero. Imagine o ônus, o trauma dos pacientes! Se já demorava porque a USP não supria a demanda, agora vai demorar mais ainda – explica.
Outra que está na torcida para que o acesso à droga seja facilitado é a professora de natação Myriam Marques, da capital catarinense. Depois de submeter-se à mastectomia por causa de um câncer avançado na mama direita, ela teve que remover também a esquerda, afetada por um nódulo (e reconstruiu as duas imediatamente). Fez seis sessões de quimioterapia e, atualmente, faz hormonoterapia, mas entrou na fila pelo composto.
– A fosfoetanolamina serviria para impedir a recidiva (retorno da doença), como prevenção e para deixar o paciente mais disposto, pois os tratamentos são muito agressivos – acredita.
No dia 13 deste mês, prazo final para a presidente Dilma se posicionar sobre o projeto de lei que libera a fosfoetanolamina, o grupo planeja fazer uma manifestação na rua Vidal Ramos, no centro de Florianópolis.
o dia 19 de março, foram divulgados os primeiros resultados das pesquisas financiados pelo governo para verificar a composição do produto e sua capacidade de inibir tumores em células de laboratório (in vitro). Conforme os estudos realizados realizados pelo CIEnP e pela Unicamp, a pílula só teria efeito quando aplicada em um quantidade até 5 mil vezes maior do que a de outros quimioterápicos, e apenas um de seus componentes – a monoetanolamina – teria efeito. A conclusão, embora não definitiva, corrobora a posição da maioria dos médicos.
– A gente entende a emoção relacionada a um tema como a cura do câncer. Mas, como profissionais da saúde, temos que ser racionais. E o que temos, objetivamente, é uma substância sintetizada por um químico que, após testes em animais, começou a aplicá-la em humanos. Nos choca saber que milhares de pessoas estão tomando um composto sem nenhuma comprovação científica de seus benefícios – defende o oncologista e hematologista Claudio Ferrari, diretor de comunicação da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, entidade que congrega 1,3 mil profissionais da área de todo o país.
Para o especialista, além de as evidências de que a fosfoetanolamina funciona ainda serem muito frágeis, a comoção gerada pela droga acarreta consequências como “o afastamento de um tratamento já aprovado, a desmoralização de todas as instâncias científicas ao se estimular seu uso e a oposição entre médico e paciente”.
– É uma questão de fé, não de ciência.
Carlos Kennedy Witthoeft, o representante comercial que foi preso por fabricar a droga em Pomerode, tem argumentos para rebater cada objeção. Como aprendeu com o professor Gilberto Chierice, a fosfoetanolamina seria atóxica – portanto, se não desse certo não faria mal nenhum – e requereria um sistema imunológico forte para ser eficaz, visto que ela atua marcando as células cancerígenas para as defesas do organismo a destruírem.
– Fosfoetanolamina não é a cura, é um agente da cura! O movimento para legalizá-la é irreversível. Trata-se simplesmente de dar uma opção a quem não tem mais nenhuma.
No dia em que ele foi solto, Rita, com quem era casado havia 35 anos, teve um AVC. Pouco tempo depois, morreu, deixando Carlos sozinho com o filho Thiago, hoje com 27 anos. Dona Irene já havia partido, em 2013. De infecção hospitalar.
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