E
la veio pra unir quem há séculos estava separado, a chegada foi comemorada com uma festa jamais vista até então e era tão querida que seu pai, sabendo que tinha pouco tempo de vida, até celebrou seu nascimento antes do tempo pra poder sentir o gostinho, ainda que simbólico, de vê-la de pé. Noventa anos depois, completados hoje, a Ponte Hercílio Luz continua como a imponente dama de ferro de Santa Catarina, embora associa-lá a polêmicas seja natural diante dos mais de 30 anos de interrupções no tráfego, obras, promessas e atrasos.
Mas disso vamos falar mais pra frente, porque também é preciso lembrar que, mais do que construções entre porções de terra sobre a água, pontes são também tudo aquilo que serve de ligação entre pessoas. Nada une mais as pessoas do que suas histórias, e com a Hercílio Luz não é diferente. Ferro, estacas e parafusos se misturam às vivências de quem ajudou e ajuda a dar alma a um monumento que mudou e moldou o Estado à forma que ele tem hoje.
Uma das maiores pontes pênseis do mundo, a "Velha Senhora" foi construída entre 1922 e 1926, durante a administração do governador que deu nome à obra. Ele não chegou a ver o sonho realizado porque morreu em 1924, apenas 12 dias depois de inaugurar uma réplica de madeira, construída na Praça XV especialmente para o ato simbólico. Antes da inauguração da ponte, os 40 mil habitantes de Florianópolis dependiam de balsas precárias para fazer a travessia entre Ilha e Continente. A ponte também consolidou a cidade como Capital, já que ela tinha acesso difícil e corria o risco de perder o posto para Lages.
E para aqueles mais céticos quanto ao valor cultural da Hercílio Luz, existe até pesquisa mostrando que, mesmo com tantos impasses, a ponte ainda é o principal símbolo que remete as pessoas a SC. O levantamento é do Instituto Mapa, de março de 2016, que aponta que 40,2% das pessoas fazem essa associação de cartão-postal mais marcante, bem à frente das praias de Florianópolis (5,3% das menções) e da Serra do Rio do Rastro (4,5%).
“A minha mãe, aos 13 anos de idade, começou a trabalhar no mato com o meu avô e os meus tios e as minhas tias, tirando a madeira do fundamento da ponte. Essa madeira descia de carro de boi por toda Forquilhas até Praia Comprida. O madeiramento que tá lá no fundo do mar foi tirado do terreno do meu avô.
Minha mãe tinha muito carinho pela ponte, mas também questionava muito a demora dessa reforma. Ela faleceu com 101 anos, em 2014, então ela tinha uns 12, 13 anos na inauguração da ponte. Isso aqui é um presente nosso, é uma joia rara que nós temos no Brasil. Eu também tenho muito apreço pela Hercílio Luz. Acho que todos os catarinenses que são catarinenses de coração têm esse carinho. Aqui eu passei muito a pé pra acompanhar a minha mãe. Porque a minha mãe trabalhava na universidade e, pra economizar o passe, pra não pagar os dois ônibus, ela vinha a pé de casa até aqui.
Eu não vejo a hora dela ficar pronta pra passar de novo nela e quando isso acontecer vai vir na cabeça que valeu todo o sacrifício da minha família no passado, que trabalharam por essa ponte. Eu queria agradecer por ela ter resistido aos maus tempos, à falta de cuidado, que ela passou, que ela sofreu. E obrigado. Obrigado por ela sobreviver todos esses anos. Ter enfrentado chuva, sol, vento, grandes temporais. Ter atravessado por tudo. E por ser o cartão-postal de Florianópolis.”
Teresinha Eva Schlosssler
aposentada, 77 anos
“Quando fecharam a ponte, eu fiz a primeira miniatura, mais ou menos como protesto. Ela foi interditada e houve um boato, um rumor que ela ia ser demolida. Sendo a único no estilo no mundo inteiro que estava em pé, aí foi, sei lá, uma forma de chamar atenção pra ponte.
Não é uma ponte, é o símbolo de uma cidade, o símbolo de uma união entre pessoas. Então esse significado é muito além de um monte de ferro e o objetivo físico dela.
Sou ourives desde os 14 anos e em 1980 eu vim pra Florianópolis. Vim fazer uma visita por uma peça minha que foi premiada no exterior. Fiquei uma semana aqui e 20 dias depois eu estava de mudança pra cá. Até hoje. A Ilha me adotou e eu adotei a Ilha. Acho que a ponte me fisgou porque quando eu cheguei aqui eu passei por ela.
Olhando pra ela com o coração eu diria que ela não vai cair. Já te digo, não adianta dizer Buenos Aires sem Obelisco ou Estados Unidos sem Estátua da Liberdade. Não se pode dizer Florianópolis sem a Hercílio Luz. O mundo tá meio complicadinho. Eu moro bem, mas preciso do muro na minha casa. Então o que que a gente, o ser humano, está construindo? Muros. Muro significa eu isolado de você. Eu estou me isolando, me protegendo. Pontes unem pessoas.
Estou com 63 anos e ainda gostaria de passar por ela, ainda que for caminhando, assim, prontinha, bonitinha que ela seja, o objetivo para o qual ela foi feita. De unir pessoas do Continente pra Ilha, sem aquele sacrifício de remar, tempestade.”
Juan Alvez
ourives, professor de joalheria, de criação e confecção de joias, 63 anos
“Desde a minha juventude, a gente sempre passeava. Pra ir pro Centro, passava por ela. E era bem pertinho, super perto. Não era essa distância violenta que é hoje em dia. Como é que a gente vai sair do Estreito, dar toda essa volta pra vir no Centro de bicicleta ou a pé? Ia a pé quando era pra vir no Centro e de bicicleta quando era pra acampar nas praias. Em 1974 não tinha esse movimento todo, era muito menos tráfego. Quarenta e dois anos e tudo é irreconhecível, menos essa coitada, que ficou desse jeito, abandonada.
É um sentimento de profunda tristeza, frustração. Meus filhos nunca passaram por aqui. Meus netos nunca passaram por aqui. A gente sempre saía meio de madrugada de casa, aí tava sempre vazia. A cidade era super segura. Podia andar de bicicleta por tudo quanto é canto. Passar na ponte não tinha problema nenhum.
Querida, eu queria que olhassem mais pra ti e que te respeitassem. E que terminassem com essa reforma que não acaba nunca. Quero ver meus netos passarem por ti, ponte. É um sonho, sem dúvida. É uma parte da nossa história que tá aqui, a gente está pisando na história. Esse tempo foi e não volta mais. Eu tenho fé que o dinheiro que eles têm ainda possam arrumar essa ponte, essa velhinha. Fazer uma plástica nela pra deixar original.”
Pedro Eugênio da Silveira
arte-finalista (Velho Lobo do Mar), 55 anos
A
principal polêmica envolvendo a Ponte Hercílio Luz, e que perdura até hoje, tem seu ápice em 1982. Em janeiro daquele ano, a estrutura foi totalmente interditada para o tráfego pelas condições precárias, com a deterioração das barras de olhal. O problema, porém, tinha começado antes. Edições de jornais dos anos 1960 e 1970 mostram que a ponte estava sobrecarregada já naquela época, absorvendo muito mais fluxo do que se projetava quando ela foi inaugurada.
Depois do primeiro fechamento, em março de 1988 a Hercílio Luz foi reaberta somente ao tráfego de pedestres, bicicletas, motocicletas e veículos de tração animal. Em julho de 1991, contudo, a ponte foi novamente interditada a qualquer tipo de trânsito e o piso asfáltico do vão central foi retirado, resultando num alívio de peso da ordem de 400 toneladas. Desde então, não houve nova abertura.
Todas as interdições foram marcadas também por promessas e execução de obras, mas muitas delas não se confirmaram e o restauro total para que veículos voltem a cruzar a Hercílio Luz agora é esperado para o segundo semestre de 2018. Nas tentativas anteriores, se falava até em a estrutura abrigar um metrô e em um tempo total de recuperação que não passava dos dois ou três anos anos _ mas que em muitos casos sequer iniciaram.
O temor de uma queda também sempre esteve presente, e na década de 1980 por mais de uma vez os jornais noticiaram esse risco ou mesmo os relatos de moradores que sentiram tremores perto da estrutura. Também engenheiros e arquitetos dos Estados Unidos vieram a Florianópolis nessa época, e chegaram a dizer que a ponte sobreviveria mais 30 anos, desde que os reparos fossem feitos.
Os valores desembolsados ao longo de mais de 30 anos de obras são um capítulo à parte. Em 2015 o Ministério Público de Contas (MPTC) até mensurou esses gastos: teriam sido R$ 563 milhões em recursos públicos de 16 contratos, o que foi contestado pela atual gestão do governo do Estado.
1922
14 de novembro
Começa a construção da Ponte Hercilio Luz
1924
8 de outubro
Muito doente, Hercílio Luz inaugura simbolicamente a ponte, atravessando uma passarela pênsil de 18 metros de comprimento, construída em miniatura, com escala 50 vezes menor que a original, junto ao trapiche de Florianópolis, pois se sabia que dificilmente estaria vivo para inaugurar a ponte que idealizara - e que originalmente se chamaria Ponte da Independência
20 de outubro
Hercílio Luz morre
1967
15 de dezembro
Desaba a Ponte Silver Bridge, em Point Pleasant, o que causou repercussão em SC pela ponte ter estrutura muito semelhante à Hercílio Luz
1981
3 de dezembro
1982
15 de dezembro
1988
15 de março
A ponte é reaberta somente ao tráfego de pedestres, bicicletas, motocicletas e veículos de tração animal
1990
Fevereiro
É apresentado pela Cerne Engenharia e Projetos e pela Construtora Roca Ltda. o Relatório da Primeira Etapa da Análise da Viabilidade da reabertura ao tráfego da Ponte Hercílio Luz
1991
4 de julho
A ponte é novamente interditada a qualquer tipo de tráfego, e o piso asfáltico do vão central, retirado, o que resulta num alívio de peso da ordem de 400 toneladas, não tendo sido mais aberta ao tráfego até os dias de hoje
1992
4 de agosto
O então prefeito Antônio Henrique Bulcão Viana assina o Decreto nº 637/92, tombando a Ponte Hercílio Luz como Patrimônio Histórico, Artístico e Arquitetônico do Município de Florianópolis
1997
13 de maio
O então governador Paulo Afonso Evangelista Vieira, através do Decreto nº 1.830, homologa o Tombamento da Ponte Hercílio Luz, de propriedade do Estado de Santa Catarina
15 de maio
Passa a valer o Decreto nº 2.070, no qual o governo de Santa Catarina declara de utilidade pública para fins de aquisição por doação ou desapropriação, amigável ou judicial, os imóveis compreendidos na área de entorno da Ponte Hercílio Luz. Na mesma data a ponte é declarada patrimônio histórico nacional
2005
24 de março
Governador Luiz Henrique da Silveira apresenta um resumo do Projeto de Reabilitação da Ponte Hercílio Luz, ocasião em que estabelece um prazo para o lançamento do edital para a execução das obras de reabilitação da ponte
15 de dezembro
DEINFRA inicia a abertura do Edital de Concorrência Internacional n.º 24, no qual o consórcio formado pelas empresas ROCA e TEC foi o vencedor do certame
Iniciada a execução do contrato PJ-015/2006, no valor de R$ 21 milhões e que tem por objetivo a execução, com fornecimento de materiais e insumos, dos serviços necessários para a restauração, reabilitação e manutenção da Ponte Hercílio Luz. Tal contrato estava previsto para ser encerrado em 5 de agosto de 2008 e contemplava a primeira fase da obra
2008
1° de novembro
A Espaço Aberto assume a obra de restauração da ponte
19 de janeiro
Obras são paradas após morte de mergulhador que trabalhava no estaqueamento da ponte
2012
1° de maio
previsão de entrega da obra é adiada em dois anos
2013
13 de novembro
Início da fase mais crítica da restauração. Uma treliça de 22 toneladas, que suspenderá o vão central, começa a ser montada. Previsão da conclusão da obra é para dezembro de 2014
2014
19 de agosto
governo do Estado quebra contrato com a Espaço Aberto
2015
3 de fevereiro
Ministério Público de Contas (MPTC) investiga desperdício de dinheiro e falta de fiscalização na ponte
19 de fevereiro
Empa é contratada com dispensa de licitação para a reforma emergencial das estruturas de sustentação, orçada em R$ 10,2 milhões
7 de abril
Empresa recomeça os trabalhos nas obras emergenciais
13 de maio
após contato do governo do Estado para a segunda etapa do restauro, uma equipe da American Bridge, empresa que construiu a Hercílio Luz, visita a ponte. Fica de dar resposta em 30 dias
28 de setembro
9 de outubro
após muitas conversas e tentativas e novas visitas à ponte, a American Bridge comunica que não fará a reforma da ponte
2016
8 de março
governo do Estado informa que a Empa, que já executava as obras emergenciais, fará também a etapa principal de restauro da ponte
10 de março
Governador Raimundo Colombo assina o contrato para a última etapa do restauro da ponte, prevista para ser entregue entre setembro e outubro de 2018. O serviço custará R$ 262,9 milhões
Gabriela Machado
gabriela.machado@rbstv.com.br
Victor Pereira
victor.pereira@diariocatarinense.com.br
Felipe Lenhart
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Felipe Reis
felipe.reis@rdcbn.com.br
produção conjunta dos veículos da RBS em SC