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 | 05/05/2006 15h43min

Nacionalização revela polarização da América do Sul, diz Caliendo

Futuro do Mercosul e da Comunidade Andina estão em jogo

A nacionalização das reservas de petróleo e gás natural anunciada pelo presidente boliviano, Evo Morales, na última segunda, reforça a divisão da América do Sul em dois pólos. Segundo o doutor em Direito Internacional, Paulo Caliendo, de um lado estão os países que adotam políticas públicas responsáveis, como Chile, Brasil e Argentina. Na outra ponta, estão Venezuela, Equador, Bolívia, países de democracia frágil. Para ele, o atual quadro também influencia no futuro do Mercosul e da Comunidade Andina, que já apresentam sinais de desestruturação.

Em entrevista online concedida ao clicRBS nesta tarde, Caliendo ressaltou a importância do presidente venezuelano Hugo Chávez na decisão tomada por Morales. Para ele, a Bolívia vive uma situação de radicalização semelhante à Venezuela, em que o mercado e a democracia representativa passam a ser questionadas.

A estatização, no entanto, não deixa de ser importante para um dos países mais pobres da  América do Sul, conforme aponta Caliendo. A medida, no entanto, poderá trazer mais miséria ainda ao povo boliviano, pois afastará novos investimentos.

A entrevista online foi conduzida pelas jornalistas Lenara Londero e Helena Kempf, e contou com a participação de internautas moderada por Cláudia Ioschpe. Confira abaixo a íntegra do chat.

clicRBS: Quais são as motivações de Evo Morales ao decretar a nacionalização das reservas de petróleo e gás natural? No que está se transformando a Bolívia?

Paulo Caliendo: As motivações de Evo Morales são de duas ordens: política-eleitoral e de programa de governo. De um lado, é uma política pirotécnica visando as próximas eleições e a mudança da constituição e de outro é parte de um programa de governo de esquerda. A Bolívia passa por um processo de radicalização semelhante à Venezuela, de questionamento e de crítica profunda à democracia representativa e ao mercado.

Pergunta de internauta: Por que a Bolívia tomou essa decisão? Ela tem embasamento legal? Se a Petrobras sair da Bolívia, receberá indenização pela fábrica?

Paulo Caliendo: A Bolívia tem embasamento Constitucional e mesmo em direito internacional esse fenômeno já foi tratado pelas nacionalizações nos países árabes, logo após o período de descolonização. Nacionalizar é possível, desde que exista a justa indenização.

clicRBS: A estatização vai beneficiar realmente a Bolívia? O país não perde com a saída dos investimentos estrangeiros?

Paulo Caliendo: O país irá perder profundamente com esse processo, pois não possuem capital para realizar os investimentos necessários, igualmente não possuem tecnologia. Em vista desse fato estão procurando apoio técnico na Venezuela, Rússia e mesmo na China.

clicRBS:  Em que a nacionalização na Bolívia difere da situação brasileira? As reservas no Brasil também não pertencem à União?

Paulo Caliendo: Se recordarmos o Brasil também teve uma campanha semelhante em relação ao Petróleo (Petróleo é nosso!). A diferença é que estamos juntos com a Bolívia no Mercosul, no qual a Bolívia é país-membro associado. Houve uma precipitação do lado boliviano e uma ação lenta e descomprometida na diplomacia brasileira.

Pergunta de internauta: Embora tenha muito gás e petróleo, a Bolívia é um país muito pobre. As mudanças que Morales está propondo podem mudar a economia do país? Em quanto tempo?

Paulo Caliendo:  As mudanças de Morales são significativas e nobres no país mais pobre do Mercosul, mas trarão mais miséria para os bolivianos, visto que não possuem capital ou tecnologia para explorar esses recursos. A atitude de Morales contra os investimentos estrangeiros é contrária aos interesses bolivianos. Ele deveria defender um comércio justo e não uma ação contra o comércio.

clicRBS: Recentemente a empresa EBX foi ameaçada de expulsão da Bolívia. O presidente da Petrobras, Sérgio Gabrielli, também anunciou que a companhia está cancelando projetos de investimento no país vizinho. Tornou-se um risco investir no país?

Paulo Caliendo: Não somente na Bolívia, mas em toda a região: Equador, Peru, Venezuela e no chamado "eixo populista". Igualmente investimentos do Brasil por via do BNDES devem ser revistos, tais como aquele no Metrô de Caracas/Venezuela. Mesmo investimentos em outros países devem ser considerados, com no Irã, visto que a Petrobrás é uma sociedade de economia mista, com dinheiro público.

Pergunta de internauta: Como o Brasil deveria ter reagido? O governo brasileiro não recebeu nenhum aviso ou sinal da Bolívia de que a indústria petrolífera seria nacionalizada?

Paulo Caliendo: O governo brasileiro sabia desde o início que Morales ia nacionalizar e radicalizar sua política. Não deveria nunca alegar que houve uma surpresa ou foi pego desprevenido. Houve negligência. O Governo deveria ter enviado técnicos e diplomatas antes da medida, logo após a posse de Morales. De outro lado, deveria ter sido mais enérgico depois da medida.

clicRBS:  Alguns analistas apontam o presidente Hugo Chávez como o "mentor" de Evo Morales. Qual é a situação da Venezuela em relação aos combustíveis? Ela pode tomar alguma atitude semelhante à de Morales?

Paulo Caliendo: O Hugo Chávez é o grande mentor da medida. Ele enviou técnicos e ministro para a Bolívia para assessorá-la. O Brasil é visto como uma força imperialista na região. Hugo Chávez tem disputado com Lula a liderança política na América Latina. Certamente mais alguns capítulos ocorrerão.

clicRBS:  Podemos dizer, então, que a América do Sul começa a se polarizar em dois blocos: Chávez-Morales e Lula-Kirchner?

Paulo Caliendo: Creio que essa divisão se torna cada vez mais gritante e irá implicar no futuro do Mercosul e da Comunidade Andina. Atualmente o Chávez já afirmou que irá sair da Comunidade em face do acordo da Colômbia e do Peru com os Estados Unidos. No caso do Mercosul, o próprio Uruguai tem cogitado sair, a Argentina está desconfortável já algum tempo. A entrada da Venezuela no bloco pode significar o beijo da morte nesse projeto que nasceu tão bonito.

clicRBS:  Em quanto a decisão boliviana interfere em outros países do continente, como Peru, Chile, Uruguai e Paraguai?

Paulo Caliendo: O continente tem se dividido em países que adotam o respeito à democracia representativa e a uma forma de mercado regulado, de massas e social, que inclua as classes mais desfavorecidas e que tenham políticas públicas responsáveis (Brasil, Chile, Uruguai, entre outros) e de outro países com democracia frágil (plebiscitária e autoritária), com mercado fechado e elevada intervenção estatal e com elevado nível de populismo (Venezuela, Equador, Bolívia), entre outros.

clicRBS: Qual é a verdadeira importância da nacionalização? O assunto não tomou proporções maiores do que os fatos?

Paulo Caliendo: No Brasil o assunto tomou uma proporção gigantesca em face de três fatos: 1) o Brasil alegava eleitoralmente (governo) a conquista da tão falada auto-suficiência energética, o que se demonstrou uma falsidade; 2) o mercado gaúcho e brasileiro se tornou intencionalmente dependente da Bolívia, investimos lá e não aqui, no Rio de janeiro e 3) era necessário dar um basta aos ataques bolivianos aos interesses brasileiros (vide EBX) e nos desmoralizarmos e deixar a impunidade encorajar ações em outros países do continente.

clicRBS: Muitas pessoas estão assustadas e acham que serão afetadas pela nacionalização pois confundem o gás natural com o GLP, que é o gás de botijão. Quem é que compra e utiliza o gás natural? Como a medida vai atingir o consumidor brasileiro e o gaúcho, especificamente?
 
Paulo Caliendo:
Provavelmente essa turbulência irá se refletir nos preços ao consumidor, visto que esse risco será internalizado e irá implicar em aumentos. As proporções dos aumentos e dos reflexos ainda não estão claras.

clicRBS: Mais investimentos no setor, a exemplo do que é feito na Bacia de Campos, não reverteria o quadro de dependência? Mas a Bolívia também é dependente do mercado brasileiro, principalmente por causa da maneira como ocorre o abastecimento, através do gasoduto...

Paulo Caliendo: Realmente podíamos e podemos investir no Rio de Janeiro. Claro que esse investimento irá demorar e terá um custo, além do que possuímos uma infraestrutura pronta no gasoduto. Por outro lado, a Bolívia é dependente do Brasil e irá continuar. Os custos para eles certamente irão crescer e os investimentos sumir. Eles certamente sairão perdendo, mesmo que substituam o nosso relacionamento comercial pela Venezuela ou Cuba ou China.

 

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