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Itapema FM  | 04/07/2013 13h37min

Na abertura da Flip, Milton Hatoum conecta o Brasil atual e o vivido por Graciliano Ramos

Graciliano é o homenageado desta edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip)

Carlos Stegemann*  |  reportagem@diario.com.br

A cultura costuma surpreender. Vem de Quebrangulo, ainda hoje um pequeno município alagoano (menos de 15 mil habitantes), um dos maiores nomes da literatura brasileira. Filho de família de classe média, sem formação cultural extraordinária e com primeiro livro publicado apenas aos 41 anos, Graciliano Ramos de Oliveira produziu uma obra definitivamente contemporânea e digna da homenagem que recebe na 11ª Festa Literária Internacional de Paraty, na cidade do litoral sul do Rio de Janeiro.

Na conferência de abertura, na noite de quarta-feira, ao abordar o livro São Bernardo (1934), o escritor Milton Hatoum, conectou a realidade manca e inacabada do Brasil da década de 1930 com o Brasil de 2013. Hatoum tratou do trabalho e da personalidade de Graciliano, mas ressaltando que o escritor era avesso a cerimônias e solenidades. Mais do que isso, mostrou a complexidade do escrever de Ramos, suscitando muitas leituras acerca dos mesmos cenários e personagens — e citando outros autores célebres, como Antonio Cândido ou Rubem Braga.

— Graciliano tinha uma linguagem habilmente articulada entre o culto, o popular e o clássico — definiu Hatoum.

O que não o impedia de exercer uma autocrítica severa. Em uma carta a Cândido, observou que Angústia (1934), considerada por muitos críticos sua melhor obra (inclusive Hatoum), estava mal escrita, repetitiva e digna de ter suprimida pelo menos a terça parte.

A inevitável conexão entre o Brasil do homenageado desta edição da Flip está nas palavras do curador do evento, Miguel Conde, ao lembrar que "a cultura letrada muitas vezes segue também como símbolo de demarcação das diferenças sociais". E também no "olhar agudo contra as iniquidades, sem laivos ou sentimentalismos", de acordo com Hatoum.

Graciliano deixou Alagoas e exerceu o jornalismo no Rio de Janeiro, mas em 1915 estava novamente no estado natal, em Palmeira dos Índios, onde pai era comerciante e iniciou-se politicamente, elegendo-se prefeito, mas renunciando após dois anos de mandato. A importância da educação sobressai neste período. De São Bernardo, Hatoum extraiu a citação "como o povo aprende se os senhores não ensinam?" Todavia, o autor, que dominava o inglês e o francês (traduziu grandes clássicos), rejeitava a educação formal e mencionou em Infância (1945), um relato autobiográfico, que "não há prisão pior do que uma escola primária de interior".

A política foi seu algoz e o combustível para a obra mais notável (junto com Vidas Secas, 1938), Memórias do Cárcere, publicada postumamente, em 1953. Ingressara no Partido Comunista Brasileiro e elegera-se deputado federal em 1946, até o partido ser novamente proscrito.

Em Vidas Secas, aliás, há uma nova conexão identificada por Milton Hatoum, interligando as duas histórias. Fabiano, protagonista da trama, pergunta-se o que é o inferno. Para Graciliano, o inferno teria sido sua viagem como prisioneiro político entre Recife e Rio de Janeiro, confinado no porão de um navio. Ficou preso por 10 meses e 10 dias, sem acusação formal. Ainda assim, é dele a definição: "aprender a viver é que é viver mesmo".

Discreto e bem-sucedido Hatoum

Discreto e tranquilo, Milton Hatoum passava despercebido entre os milhares de frequentadores da 11ª Flip, no dia da abertura em Paraty (RJ). Mas esse manauense de quase 61 anos é considerado um dos grandes escritores vivos do Brasil — e, algo raro — sucesso de público e crítica. Tradutor e professor, Hatoum é descendente de libaneses, ensinou literatura na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Escreveu quatro romances: Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte — título que rendeu o Prêmio Portugal Telecom de Literatura e o Prêmio Jabuti (melhor romance) — e Órfãos do Eldorado.

Seus livros já venderam mais de 200 mil exemplares no Brasil e foram traduzidos em oito países, como Itália , Estados Unidos, França e Espanha . O curador da 11ª Flip, Miguel Conde, recordou que Relato de um Certo Oriente, primeira obra do autor, foi publicado em 1989, período político tão histórico quanto conturbado no Brasil, marcado pelo fim da ditadura, com a realização das primeiras eleições diretas no país. Para a decepção dos 800 assistentes da conferência, na Tenda dos Autores (e outros tantos na Tenda do telão), Hatoum não respondeu perguntas da plateia, retirando-se do palco com a mesma discrição que entrou.

*O jornalista catarinense está em Paraty e publicará diariamente suas impressões da feira no Variedades do DC. Carlos chegou à cidade na terça-feira, recebido por uma chuva torrencial que derrubou os sinais de telefone naquele dia. Carlos conta que a cidade estava vazia. Mas na quarta-feira o público começou a lotar Paraty.
Email: diretor@palavracom.com.br

Mais informações em www.flip.org.br

Carlos Stegemann / Divulgação

Escritor Milton Hatoum na conferência de abertura da Flip
Foto:  Carlos Stegemann  /  Divulgação


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