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Política  | 03/06/2010 04h05min

Como pequenos delitos vão parar no tribunal mais importante do país

Sacoleiro catarinense preso com mercadorias contrabandeadas foi absolvido pelo STF

Mais do que a sentença, a absolvição, na última segunda-feira, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de um sacoleiro catarinense preso com mercadorias contrabandeadas do Paraguai, chamou a atenção pela natureza da ação. Julgar casos envolvendo muambeiros está longe de ser uma exceção para os ministros do Supremo.

Na sua rotina diária, a maior Corte do país, que deveria tratar apenas da aplicação da Constituição, gasta horas analisando processos de aposentadorias, reclamatórias trabalhistas, golpes de estelionatários, crimes de batedores de carteiras e até acidentes de trânsito – ações privadas, que dizem respeito somente às partes envolvidas e, teoricamente, poderiam tranquilidade ser resolvidas em instâncias inferiores da Justiça.

– O STF é uma Corte constitucional. A Constituição de 1988 sacramentou esse princípio, com a criação do Superior Tribunal de Justiça, o STJ, para apreciar os casos comuns – explica Mário Sarrubo, promotor de Justiça e professor de Direito Penal da Fundação Armando Alves Penteado, de São Paulo.

Na prática, o STJ acabou duplicando as esferas superiores da Justiça. Questões regimentais, recursos especiais e arguições de constitucionalidade permitem que tanto a acusação quanto a defesa recorram quase sempre à Corte superior – no caso da defesa, uma manobra que muitas vezes tem a finalidade de protelar a sentença e fazer o processo prescrever por decurso de prazo. Basta achar uma brecha que transforme o caso em uma “questão constitucional”.

OAB gaúcha defende prática de recorrer ao Supremo

O caso do sacoleiro Rossano Tischner, de Pouso Redondo (SC), é típico. Absolvido nas duas primeiras instâncias, ele acabou condenado pelo crime de descaminho pelo STJ depois de um recurso especial do Ministério Público – e o caso foi parar no Supremo.

– Nesse caso, especificamente, faz sentido o recurso ao STF, porque a insignificância é um princípio implícito da Constituição – alega o professor Sarrubo.

Como os tributos devidos à Receita Federal ficaram abaixo de R$ 10 mil, o ministro Dias Toffoli concedeu habeas corpus considerando que a lei enquadra o caso como insignificante – preceito jurídico que anistia autores de crimes considerados de potencial lesivo ínfimo.

Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Sul, Claudio Lamachia, a ampla possibilidade de recursos permitida pelo sistema jurídico brasileiro é positiva.

– Se não fosse essa possibilidade de recorrer a todas as esferas, hoje esse rapaz (Tischner) estaria preso. Considerando a situação das penitenciárias brasileiras, talvez fosse uma punição excessiva – afirma.

No entanto, observa Sarrubo, mesmo que a legislação processual brasileira permita todo tipo de recurso, casos como o do sacoleiro não precisariam chegar ao Supremo. Para isso, bastaria a adoção, na esfera penal, da súmula vinculante – uma jurisprudência firmada pelo próprio STF com base em vários julgamentos de casos semelhantes. A súmula vinculante daria celeridade aos processos, garantiria a interpretação idêntica da lei para casos parecidos e liberaria o STF de apreciar recursos judiciais que só se repetem.

Com o que se ocupam os magistrados
WALKMAN RECEPTADO
Criado para cuidar da aplicação da Constituição, o Supremo Tribunal Federal (STF) gasta boa parte de seu tempo tratando de processos comuns, que só dizem respeito às partes envolvidas. Confira alguns casos julgados pela Corte, apenas em 2010:
- Ação foi trancada de acordo com o princípio da insignificância: trata de um walkman, avaliado em R$ 94, comprado diretamente do autor do roubo, por R$ 20.
R$ 10,95 EM ROUPAS FURTADAS
- O autor de furto de cinco blusas infantis, condenado a um ano e seis meses de prisão, teve pedido de habeas corpus rejeitado pelo Supremo. As peças de roupa foram devolvidas à vítima.
25 METROS DE FIO DE LUZ
- STF negou hábeas a denunciado por ter subtraído 25 metros de fios condutores de energia elétrica de uma propriedade particular, avaliados em R$ 125.
ROUBO DE PAPEL DA MARINHA
- Incitado pela defesa, o STF negou hábeas a militar denunciado por supostamente furtar 76 caixas de papel A4, com 10 resmas cada uma, de dentro das instalações da Marinha do Brasil.
FURTO DE ROUPAS NO RS
- A Defensoria Pública do Rio Grande do Sul teve pedido de hábeas negado para o autor de furtos em duas lojas, de bens avaliados em R$ 213. Foram furtados um moletom e uma calça, em estabelecimentos diferentes.
FRASCO DE PERFUME USADO E R$ 17
- A pedido da defesa, o STF concedeu hábeas a denunciado por furto de R$ 17 e um frasco de perfume usado.
BOLSA DE COURO ROUBADA NA CAPITAL
- Hábeas negado para condenado por tentativa de roubo de uma bolsa feminina de couro, uma agenda e objetos pessoais da vítima, uma senhora de 63 anos, além de R$ 49. O crime ocorreu em 2006, em Porto Alegre.
ROUBO DE FIOS DE R$ 14,80
- A defesa pediu hábeas ao STF para denunciado por furto de fios de cobre avaliados em R$ 14,80.

Muamba levou sacoleiro de SC à mais alta Corte

Rossano Tischner, 29 anos, não sabe nem onde fica o Supremo Tribunal Federal, mas o nome dele esteve na pauta de terça-feira da Corte mais importante da Justiça brasileira. Os ministros analisaram um processo aberto quando o rapaz trouxe jaquetas do Paraguai para vender nas lojas de confecções que ele e a mãe têm no interior de Santa Catarina.

O caso faz tanto tempo que Rossano nem recorda o ano em que se deu. Também nunca se interessou pelos detalhes. Conta que pagou um advogado “para não se incomodar”. Em nenhum momento perguntou como ia o processo, compareceu às audiências ou aos julgamentos nas diferentes instâncias.

–Não me preocupava porque tenho a consciência limpa e sei que não sou bandido.

Enquanto o advogado trabalhava na defesa, Rossano se dedicava aos negócios de roupas e à loja de carros usados que abriu há três anos. Ele sabe que não estava certo, mas estranha por que um caso simplório chegou a gente tão alta da Justiça. Como nunca se importou com o assunto, diz que a absolvição não muda em nada sua vida. O rapaz não sabe o que aconteceu com as outras pessoas que estavam na excursão interceptada pela Polícia Rodoviária Federal. Gostaria mesmo é de saber se o caso delas também foi parar no STF.

ZERO HORA
 

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