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 | 18/04/2009 06h12min

Bola Dividida: As sólidas raízes do passado

Mário Marcos de Souza

Nas rápidas visitas ou nas férias com a família, quando a temporada europeia faz sua pausa, o volante Tinga cumpre invariavelmente um roteiro em Porto Alegre. Acomoda a família e toma o rumo do bairro Restinga, quase uma outra cidade no sul da Capital. Lá, estaciona seu carro de luxo diante de um antigo salão de cabeleireiros, ajeita o penteado e dedica horas às conversas com velhos amigos. São os conhecidos que acompanharam sua vida, vibraram com seus avanços nas categorias de base do Grêmio e ficavam por perto nas longas viagens que ele fazia de ônibus para ir e voltar dos treinos. São suas origens. Ele investe na Restinga, não apenas na valorização destas relações, mas também em atividades beneficentes. Entre aqueles amigos, Tinga fica em segurança. No bairro, nunca teria a crise emocional que o abalou nos tempos de Japão, antes de encontrar forças e dar novo rumo à carreira. A Restinga é para ele, que carrega o bairro no próprio nome, o que a Vila Cruzeiro, no Rio, significa para Adriano (foto), o atacante que surpreendeu ao decidir dar uma pausa de três meses na carreira e repensar a vida. São as raízes.

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Ronaldinho também faz assim. Não chega a circular pela cidade com a desenvoltura de Tinga, nem se esconde nos barracões de alguma favela como fez Adriano, mas mergulha no seu próprio mundo quando vem a Porto Alegre. Pelo prestígio e notoriedade, já não consegue disputar as peladas na Vila Nova, mas trata de manter os amigos por perto. Passa os dias em animadas reuniões em uma de suas propriedades, cercado pelos parceiros de muito tempo, em rodas intermináveis de pagode. Ronaldinho volta a ser o sujeito sorridente e alegre do início da carreira, sem preocupações com forma física ou eventuais crises técnicas. O que importa é estar entre os parceiros. Quando está longe e a saudade aperta, patrocina as viagens dos amigos para a Europa.

É o lado Adriano de Ronaldinho.

A nostalgia não poupa nem aqueles personagens que passam a sensação de serem durões. Sempre que surge a chance, o técnico Luiz Felipe, ele mesmo, o Felipão, estende alguma viagem e faz escala nos portos seguros do Estado. Revê amigos em Canoas, Caxias e Porto Alegre, mata a saudade do ambiente e passa longos períodos em conversas no barzinho que o amigo Walmir Louruz mantém em Caxias. Atrás de uma mesinha, ele ri, troca ideias, lembra histórias. Nada que pareça o ambiente por onde tem circulado nos últimos anos. Na Europa, ele recebe pelo trabalho que faz. No barzinho, ele busca a paz dos velhos tempos. Nada tão radical como Adriano, mas também é uma busca do ambiente seguro dos amigos.

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Em algum momento dos últimos anos, desde que os brasileiros começaram a tomar o rumo do Exterior, você deve ter se perguntado por que eles sempre vêm passar as férias nos mesmos lugares. Vivem em Paris, circulam por Londres, caminham pelo chamado quadrilátero das lojas de luxo de Milão, estão a viagens curtas de trem de alguns dos paraísos do turismo mundial, mas assim que podem arrumam as malas, tomam o avião e desembarcam felizes em suas cidades. Todos buscam o reencontro – e às vezes até o sabor inesquecível da comida caseira. Foi uma das razões para Souza trocar o Paris SG pelo Grêmio – ele não se adaptou à sofisticada cozinha francesa. Antes, jogadores assim nem podiam sonhar em ir para longe. Todos aqueles lugares pareciam distantes demais. Hoje, conquistaram prestígio e dinheiro, podem encurtar distâncias – e tratam de fazer o caminho inverso. Mantêm, a exemplo do surpreendente Adriano, o cordão umbilical fortemente ligado às raízes.

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Mesmo os que parecem perfeitamente adaptados, alguns até com dupla cidadania, sabem que sempre serão estrangeiros, por mais que entrem na rotina do país em que vivem. São como a personagem Taslima do filme Território Restrito, em exibição em Porto Alegre. Apesar de viver desde os três anos de idade nos Estados Unidos e de ter irmãos americanos, ela é desprezada, humilhada e cruelmente deportada por agir e pensar diferente. É a hora em que a liberdade de expressão, tão cara à democracia, vira apenas um lema sem significado.

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Os jogadores sentem isso no dia a dia. Apesar de serem bajulados sabem que estão cumprindo uma tarefa profissional. Bem paga, mas uma tarefa. As ligações afetivas estão em outros lugares. Adriano chegou a um ponto em que a saudade foi incontrolável. A diferença entre ele e os outros é que seu equilíbrio emocional sempre foi mais frágil. Rompe fácil demais. Adriano teve sucessivas crises ao longo da carreira, recebeu ajuda no Brasil e na Itália, teve inúmeras chances de recomeço, mas atingiu um ponto aparentemente irreversível. Seu maior erro é romper um compromisso no meio. Deveria esperar mais alguns meses e então tomar o rumo que quisesse, abrindo mão de impressionantes R$ 18 milhões em salários por ano, sem causar prejuízos ao clube – mas não teve forças para isso.

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Voltou a sonhar com caminhadas descalço pelas ruas de sua cidade, sem receber olhares de reprovação, e tomou o rumo do Rio. Vivia pensando nos dias em que vestia um calção surrado, trocava os sapatos por aqueles velhos chinelos bem ajustados aos pés e buscava os amigos para conversas sem fim. Há aqueles que se deslumbram com a Daslu, claro, apesar de todos os processos. Adriano prefere a Daspu e sua autenticidade honesta e criativa. Atire a primeira pedra quem nunca pensou um dia em jogar tudo para cima e sumir. Teve coragem (ou loucura, dirão alguns) de trocar alguns milhões de euros pelo direito de ser feliz. Certo ou errado, ele tem a coragem de tentar.

ZERO HORA
 

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