Quando entrou para a turma 11F, Thiago*, 16 anos, havia recém começado a trabalhar em um supermercado. Antes do segundo trimestre, trocou a carteira assinada pelo tráfico.

Sua colega, a operadora de telemarketing Andressa, 18 anos, repetia pela terceira vez o primeiro ano do Ensino Médio, confiante de que finalmente conseguiria passar. Sequer terminou o ano.

Na mesma sala, estudava o lateral esquerdo Guilherme, que veio do Interior para jogar no São José, em Porto Alegre, e assistia às aulas apostando na carreira nos gramados. Mesmo com foco no futebol, passou fácil nos exames escolares.

De todos, uma das mais concentradas era Jessica, 15 anos, beneficiária do Bolsa Família que devorava livros de literatura no intervalo das aulas e passava as tardes tocando violino. Ao lado de sua irmã gêmea, Luana, sonhava em passar no concurso Menina Fantástica.

Matriculados no primeiro ano do Ensino Médio em uma das escolas públicas mais tradicionais do Estado, o Colégio Julio de Castilhos, os quatro alunos e seus colegas tiveram a rotina acompanhada por Zero Hora desde o primeiro dia de aula, em 27 de fevereiro, até o encerramento do ano letivo, em 20 de dezembro. Para investigar o que está por trás das estatísticas da educação, a reportagem fez imersões semanais em cada trimestre na turma 11F, indicada pela direção da escola entre as 36 desse nível no Julinho. Dentro da sala de aula 106, nas disciplinas autorizadas pelos professores, testemunhou como fatores intra e extraclasse influenciaram o destino dos estudantes. A partir do microcosmo da turma 11F, ZH observou 10,5% do grupo abandonar os estudos – um percentual equivalente à média da rede estadual no país e inferior à gaúcha, de 11,7%. Constatou que a falta de professores é um problema recorrente mesmo quando o quadro está aparentemente completo – em uma escola em que é comum sete docentes faltarem por dia, no turno da manhã – o equivalente a 18% do total. Observou a flutuação de alunos em sala, o desafio dos professores de ensinar uma geração que passa o dia plugada em dispositivos tecnológicos. E acompanhou a controvérsia provocada pelo Ensino Médio Politécnico – visto pela maioria dos docentes como estratégia do governo para facilitar a aprovação, maquiando dados de evasão e repetência.

A seguir, o diário de classe da turma 11F e de seus protagonistas apresenta pistas para entender o que os números da educação pública apenas rascunham.

*O nome do adolescente, que não aparece na foto acima, foi trocado para preservar sua identidade, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente


Aulas acabam um mês antes do fim

– Vamos lá, pessoal, hoje é o último dia – diz a professora de literatura Jaqueline de Oliveira Gonçalves, 43 anos, incentivando os alunos a concluírem o trabalho de criação de um cordel a partir da história afro-brasileira, em 22 de novembro de 2013.

Apesar de estarem a quase um mês do final oficial do ano letivo, marcado para 20 de dezembro, o clima nesta sexta-feira é de despedida no Colégio Estadual Julio de Castilhos.

Como o novo Ensino Médio instituído nas escolas públicas gaúchas desde 2011 prevê que os alunos tenham mais oportunidades de recuperação, os pré-conselhos foram antecipados para fechamento das avaliações do terceiro trimestre. Na prática, o último mês de aula serviria apenas para provas e trabalhos finais, com horários reduzidos e sem novos conteúdos.

Dos 28 alunos da turma – que chegou a ter 39 na chamada no início do ano –, 17 estão presentes quando começa a aula de literatura. Oito deles formam uma roda ao lado da mesa da professora e começam a discutir o trabalho. No fundo da sala, perto da porta, os restantes conversam sobre outros assuntos, mexem no celular, ouvem rap e funk em fones de ouvido.

– Todos fizeram juntos o cordel? – questiona a professora, olhando para a aluna Mayara de Souza Franco escrevendo solitária em meio ao grupo disperso.

– A gente fez pelo Facebook, sôra, ela só tá passando a limpo – responde o colega Fabrício Siqueira Ramos, um dos mais extrovertidos da turma.

Assim que Mayara termina a transcrição, a professora de literatura lê o trabalho do grupo. Impressionada com o vocabulário bem construído, desconfia da autoria. A aluna admite que a mãe dela ajudou, mas a explicação não satisfaz.

– Vocês sabem como eu sei que não foi vocês que escreveram? Eu conheço o vocabulário de vocês – diz a professora.

– A senhora não sabe o que é internet? A gente pesquisa “como fazer um cordel” e depois só troca as palavras – explica Fabrício, abrindo o sorriso que deixa à mostra o aparelho metálico nos dentes.

– Ah, então foi um plágio? – indaga a professora, com ar de reprovação.

Na hora de apresentar para a turma, na frente da sala, representantes desse mesmo grupo travam. Não conseguem ler frases inteiras. Dizem que não entendem o que a colega Mayara escreveu na folha. Que a letra dela é incompreensível, que o “t” parece um “f”. Ao ler em voz alta o cordel que juram ter feito em conjunto sobre a história dos lanceiros negros, patinam em palavras comuns como traição e valorosos.

Ao avaliar os resultados de 2013, a professora de literatura admite frustração. Às vésperas de concluir o primeiro ano do Ensino Médio, a maioria dos alunos da turma 11F ainda não tem o domínio esperado de leitura. Nem interesse pelo aprendizado.

– Nunca vi turmas de primeiro ano tão fracas como neste ano, em rendimento, aproveitamento e desempenho. Foi um ano desgastante, os alunos não correspondem – avalia a professora, admitindo que pela primeira vez, depois de 10 anos de trabalho na rede estadual, sentiu desânimo para entrar em sala de aula.

Nem por isso os alunos vão deixar de passar – pelo contrário. Com as mudanças introduzidas no Ensino Médio – o Ensino Politécnico, apelidado pelos críticos de “politreco” –, há um consenso entre professores e alunos de que ficou mais fácil a aprovação, o que estaria levando as turmas a uma maior acomodação.

– Eles querem nos obrigar a passar os alunos a qualquer custo. Nós trabalhamos com pessoas, o governo trabalha com números. Eu temo por esses jovens que estão saindo daqui, porque eles não vão sair formados em nada – preocupa-se a professora de literatura.

"A gente não pode exigir muito"

Dois ventiladores de teto aliviam o calor de 27 de fevereiro – o primeiro dia de aula da turma 11F. Quando o sinal bate, às 7h25min, 10 alunos entram na sala verde-clara, iluminada pelo sol que atravessa três janelões que começam na altura das classes e atingem o teto na parede lateral. Outros colegas vão chegando, aproveitando a porta de metal entreaberta, e até o final da manhã somariam 27 – dos 35 listados na primeira chamada.

A professora de biologia, Ana Silva, é tolerante com os atrasos. Conhece a realidade dos estudantes. Apesar de o Julinho ser localizado em uma área central de Porto Alegre, no bairro Santana, são raros os que moram nas redondezas. Vindos de bairros da periferia, chegam a viajar mais de uma hora de ônibus até ali. Cristine Silveira, por exemplo, chacoalha uma hora e 20 minutos de ônibus desde Belém Novo. Não reclama. A aluna de 15 anos, com mechas azuis no cabelo preto, está ansiosa para estudar no Julinho porque “é um colégio grande”. Como ela, outros querem fazer parte da história da instituição de 113 anos, onde estudaram Leonel Brizola e Moacyr Scliar. Já Natiele Ramos, 14 anos, que veio do bairro São José, entra na sala apreensiva porque ouviu falar que na escola “só tem maloqueiro”. Na hora da matrícula, a aluna de olhos verdes realçados com rímel tinha colocado outras três opções preferenciais, mas, como outros colegas, acabou no Julinho por definição da Secretaria da Educação, diante da falta de vagas nas instituições desejadas.

Preocupada em impor disciplina, a professora Ana começa avisando que só vai trabalhar em sala de aula porque “não dava muito certo” a ida ao laboratório, já que os alunos “se perdiam” pelo caminho. Que também desistiu de levar as turmas à sala de informática porque “só queriam saber de rede social”. E que prefere não adotar o livro didático, porque o material “só chega às vezes”.

– Se eu colocar o conteúdo programático no quadro, vocês vão levar um susto tão grande, que vão para casa e não vão mais voltar. É muita coisa – anuncia.

A professora enche o quadro, se faz de durona diante da turma. Em voz baixa, admite preocupação com o nível dos estudantes.

– A gente não pode exigir muito... senão, na primeira prova, já tiram nota baixa e abandonam a escola – confessa a ZH na segunda semana de aula.
Primeiro dia: faltam dois professores

Antes do horário de intervalo do primeiro dia de aula, a turma é confrontada com uma lacuna histórica da rede pública estadual.

– Tavam dizendo que não tem mais aula porque não tem professor – explica um aluno, que, assim como os colegas, começa a juntar os materiais e deixar a sala.

O terceiro período seria de inglês, mas o professor não aparece, e os estudantes são liberados para o pátio. No quinto período, deveriam ter seminário de português – uma das novidades do Ensino Politécnico – mas ainda não havia titular designado para a disciplina. Como resultado, dos seis períodos que teria, a turma 11F teve apenas quatro no primeiro dia – brechas que se repetiriam nos próximos meses.

No pátio, o funk é a senha para integrar novos e velhos alunos durante o recreio. Enquanto ouvem hits como “Ela não anda, ela desfila, Ela é top, capa de revista... Ela é mais mais, ela arrasa no look, Tira foto no espelho pra postar no Facebook” – tocada pelo Grêmio Estudantil em volume alto –, as novas tribos começam a se reconhecer.

– Passou uma menina só com um pedaço de pano... eu não vim para um baile funk – espanta-se Natiele.

Egressa de uma escola privada, Caroline Vargas, 14 anos, surpreende-se com os novos códigos. Veio para o Julinho porque o colégio particular “estava muito caro” e estranha a ausência de vigilância. Sem aula, a turma tem liberdade para tomar suas próprias decisões.

– Eu era acostumada com uma rotina diferente, com regras rígidas. Aqui, se eu quiser ir embora, eu posso ir – constata.

Na aula de história, a liberdade que surpreende os novatos vira tema do professor Milton Wainstein. Em sua acolhida, o docente que há 21 anos leciona no Julinho alerta que a grandeza da escola – uma das maiores de Ensino Médio do Estado, com 1.985 alunos – traz vantagens e desvantagens.

– Quanto mais liberdade, maior também a responsabilidade – orienta.

Ao falar sobre a História, o professor lembra que não existe “uma só realidade”, mas diferentes versões. E usa o Gre-Nal do final de semana anterior para demonstrar como cada lance pode suscitar interpretações diferentes.

– E aquele lance do Bertoglio (atacante do Grêmio) com o Juan (zagueiro colorado): foi pênalti ou não? Todo mundo viu o mesmo lance, e se fica horas discutindo. Não tem certo ou errado, são diferentes visões sobre o acontecido. E, mesmo por mais neutro que eu quisesse ser... eu sou colorado. Vejo a realidade segundo este ângulo. A realidade não está fora da gente, está dentro da nossa cabeça – ensina, chamando atenção para um relativismo que precisa ser considerado quando se analisa qualquer fato (inclusive a realidade de uma sala de aula).


O Ensino Politécnico

A partir de uma diretriz do Ministério da Educação, começou a ser implantado no Rio Grande do Sul em 2012.

Uma das principais mudanças é a troca de notas por conceitos descritivos, que classificam o desempenho de alunos como satisfatório, parcial ou restrito.

As disciplinas tradicionais foram reunidas em quatro grandes áreas do conhecimento (linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas), e os professores desses grupos precisam chegar a um consenso no momento de definir o conceito do estudante.

Ao final do ano, mesmo com performance insatisfatória (restrita) em uma área, o aluno poderá passar para a série seguinte, em um regime de progressão parcial.

Segundo a Secretaria Estadual da Educação, entre os objetivos está o desenvolvimento do aluno e a redução da evasão e da repetência no Ensino Médio. A meta é trazer aos bancos escolares cerca de 70 mil jovens que estão fora da escola.

Primeiro livro aos 18 anos

No final do primeiro trimestre, a aluna número 3 na chamada da turma, Andressa dos Santos Souza, alcança uma conquista inédita.

Aos 18 anos, lê o primeiro livro da sua vida. Um livro inteirinho. Do começo ao fim. Incentivada pela professora de literatura, Jaqueline, que faz prova oral sobre os livros, compartilha suas impressões sobre o romance O Rio do Meio, de Lya Luft, na manhã de 6 de maio.

– O que mais te chamou atenção? – pergunta a professora, que elegeu como meta profissional fazer com que os alunos percam o medo da leitura, por isso anda com o porta-malas sempre cheio de livros para emprestar. E se emociona com cada descoberta feita por eles.

Meio sem jeito, a aluna que repete pela terceira vez o primeiro ano do Ensino Médio, depois de dois anos de evasão e repetência, admite que não entendeu muita coisa:

– O “Rio do Meio” não tem muito a ver... eu não entendi bem... se passa num sótão...

– Não seria uma metáfora? – incentiva a professora, que dá aula na sacada enquanto funcionárias providenciam a limpeza da sala, evacuada após um dos alunos ter vomitado.

Andressa hesita, confusa. Nunca teve tempo para metáforas em sua vida. Começou a estagiar aos 14 anos, empurrada pelas necessidades da casa. Não podia se dar ao luxo de esperar pela mãe, gerente de uma boate no centro de Porto Alegre, que tinha de dar prioridade para os três irmãos menores, nem depender da avó, doméstica aposentada.

Com a dupla jornada, o tempo de estudar foi sendo feito de sobras. Quase nunca sobrava. Morando na Vila Amapá, acostumou-se a acordar às 5h30min, caminhar 20 minutos até a parada de ônibus rumo à escola. No final da aula, ia direto para o serviço na Zona Norte, uma empresa de telemarketing. Retornava para casa às 22h30min.

– O tempo de estudar... não tinha, né? – diz.

Ela acreditava que neste ano tudo seria diferente. Pelo menos até o início de maio, quando comemorava sua superação literária. Só que, como Andressa aprendeu cedo, os finais nem sempre são como se espera. Antes do segundo trimestre, tudo mudou. A aluna não aguentava mais o telemarketing. Começou a distribuir currículos e foi chamada em uma loja de roupas, na Rua Dr. Flores. Emprego de turno integral. E aí decidiu trocar a perspectiva distante de um futuro melhor pela oportunidade instantânea de um salário melhor. Interrompeu o ano letivo pela metade mais uma vez.

No novo emprego, é reconhecida pela eficiência. Em seis meses, passou a ser a recordista de vendas. Em 31 de outubro, no intervalo de almoço, sorria, orgulhosa, falando da própria desenvoltura. A expressão só mudou quando ela voltou a falar da escola. Lembrou que seu sonho era ser médica. E chorou.

– Tinha esse sonho quando era pequena, aí depois vi que a vida não é fácil. Mas isso aqui não é futuro, né? Se eu tivesse me encarnado antes nos estudos, não estaria nessa vidinha – refletia, limpando as lágrimas com as mãos.

Apesar das dificuldades, garante que ainda vai voltar a estudar. Quer se inscrever em um supletivo, terminar o Ensino Médio e, quem sabe, chegar à faculdade. Adaptando a ambição do sonho a seu cotidiano, desistiu de ser médica. A aluna que se evadiu do Ensino Médio agora pensa em ser... professora.














A professora volta, mas não termina o ano letivo

Para os alunos que continuam na turma 11F, 12 de junho é um dia histórico. Não por ser o Dia dos Namorados, mas porque, quase quatro meses depois do início do ano letivo, têm a primeira aula de seminário de matemática.

Para a nova titular, Gilcéa da Rosa Oliveira, 56 anos, a data traz uma emoção adicional. Marca a sua volta à sala de aula, após três anos em funções administrativas. Estafada pela rotina, havia entrado em depressão. Precisou de ajuda psiquiátrica para retornar. E faz questão de contar isso aos alunos, em sua estreia.

– Vocês acham que pensar dói. Fiquei afastada três anos da sala de aula e eu simplesmente não conseguia mais dar aula. Eu gosto de ser questionada. Eu não quero chegar aqui pra vocês e dizer dois mais dois é cinco, e todo mundo vai ficar quietinho – discursa.

Encostada na parede, mascando chiclete, Milena olha para o vazio enquanto a professora fala. Yohan, Diego e Maurício estão deitados sobre a classe, apoiados sobre os braços. Outros mexem no celular, ouvem música com fone de ouvidos, conferem as últimas atualizações no Facebook.

Enquanto a turma toda assiste à aula conectada em smarthphones, a professora que há 24 anos trabalha no Julinho confessa em sua apresentação ser uma analógica convicta.

– Eu juro pra vocês... eu sou alérgica a computador, sou alérgica a celular. Porque nós, que estudamos matemática, nós queremos as coisas pensadas, não queremos as coisas dadas. Eu entro em pânico, nem mensagem eu mando, porque quando eu teclo uma letrinha errada tenho que apagar tudo aquilo, me dá um desespero – conta, provocando risos na classe.

Diferenças tecnológicas à parte, a professora está otimista com o recomeço. Acredita que a aula será uma experiência diferente, o início de uma nova etapa.

O plano tem curta duração. As aulas duram menos de quatro meses. No início de outubro, a professora de seminário de matemática começa a faltar. E não volta.

– Ela não apareceu mais – sintetiza Jessica Jantsch, que, como os colegas, não recebeu qualquer explicação.

A direção informa a ZH em novembro que a docente entrou em licença médica. Em 4 de outubro, fez uma operação no joelho, por rompimento de menisco. Até o final do ano, a turma 11F fica sem aula da disciplina. Outra vez.

– Sentia uma dor que ficou insuportável, doía até deitada. Por isso tive de me afastar. Mas foi um ano muito bom, a turma era excelente, muito afetiva – conta Gilcéa, no início de dezembro, ainda em recuperação.


“Sou alérgica a computador, a celular e a calculadora. Não consigo ficar 30 minutos. Nem (para) as notas dos alunos eu uso computador. Podem dizer: ‘ah, professora, a senhora já é velha, ultrapassada’. Eu digo: sim, mas foi assim que eu aprendi, e aquilo que é bom a gente tem que manter”.

Gilcéa da Rosa Oliveira

56 anos, professora de seminário de matemática

Thiago trocou a escola pelo tráfico

Thiago (nome fictício) nunca teve aula de seminário de matemática. Abandonou a escola no fim de maio, duas semanas antes da chegada da professora da disciplina.

Todo mundo na turma pensa que ele parou de ir à aula por causa de seu trabalho. Afinal, foi em razão do emprego em um supermercado que o adolescente entrou na turma 11F, vindo do turno da tarde, na última semana de março. Assim, podia conciliar seus horários.

Professores e colegas ignoram que foi um terceiro turno inesperado o responsável pela evasão. Dois meses depois de chegar, o aluno franzino que adorava usar boné e corrente prateada no pescoço parou de ir às aulas e ao trabalho. Aos 16 anos, virou operário do tráfico. Apanhado em flagrante com 26 pedras de crack e um revólver 38 carregado, em 30 de setembro, foi apreendido e internado na Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) para cumprimento de medida socioeducativa.

O abandono da escola foi progressivo. No início do ano, chegava na sala cansado por causa da jornada de trabalho. Às vezes, dormia sobre a classe. Achava tudo muito chato. Só gostava da aula de sociologia, com o professor fazendo piadas, contando histórias. Aí, sim, abria um sorrisão.

Nessa época, Thiago ainda estava entusiasmado com a rotina no supermercado. Os olhos brilharam quando recebeu o primeiro salário, R$ 600. E mais ainda quando foi promovido de empacotador a caixa, logo no final do primeiro mês de trabalho, engordando em R$ 150 o contracheque. Só que, quando a empolgação inicial passou, ele começou a achar tudo puxado demais. Certo dia, um amigo apareceu perguntando se ele não queria trabalhar para o tráfico. A oferta parecia vantajosa. Ganharia até R$ 4 mil por mês vendendo droga na vizinhança, no morro Santa Tereza. O adolescente topou na hora. Até continuou a frequentar a escola por mais uma semana, mas logo viu que não conseguia acordar tão cedo para estudar depois de ter ficado até uma ou duas da manhã vendendo pedras, pó.

Livre do compromisso de acordar cedo para ir à aula, consumia boa parte do dinheiro fazendo festa, de segunda a segunda, em bailes funk pela cidade. Chegou a gastar até R$ 2,5 mil numa única noite, baixando baldinhos com bebida a preços inflacionados.

– Isso aí é cadeia, caixão ou cadeira de rodas. O dia em que tu cair preso não conta comigo. Não admito isso – avisou o pai, quando descobriu o que Thiago fazia nas madrugadas.

Orgulhoso por sempre ter trabalhado honestamente como pintor, por ter conseguido juntar dinheiro para comprar duas casas para alugar, além do lugar onde vive, o pai não se conforma. Dos 10 filhos que gerou, em diferentes relacionamentos, já perdeu dois assassinados por ligação com o tráfico – e se ressente por Thiago ter caído na mesma armadilha.

Depois de ter sido apreendido na Fase, o adolescente garantiu estar arrependido.

– Esses R$ 4 mil agora eu rasgava e botava fogo – assegurou, em 1º de novembro.

Dizia sonhar com uma nova chance. Que iria voltar a batalhar dentro da lei, seguindo a profissão do pai. Um dos sinais da reabilitação era a volta à escola. Seguindo o programa obrigatório, Thiago acabou retomando os estudos dentro da Fase.

– Quem sabe não volto pro Julinho depois – cogitava, entre a brincadeira e o descrédito.

Duas semanas após contar seus planos a ZH dentro da Fase, eis que a nova chance apareceu. Em 11 de novembro, teve a liberdade concedida pela Justiça. Mas não retornou para a casa do pai. Nem para a escola.

– Quando fui buscar ele, nem olhou na minha cara. Me disseram que voltou a vender drogas. Não vou correr atrás de quem não quer ajuda. Não foi essa a educação que dei para ele – indigna-se o pai.





Falta estrutura para resgatar alunos ausentes

O principal instrumento para prevenir a evasão escolar no Estado é a Ficha de Comunicação do Aluno Infrequente (Ficai), criada há 16 anos em uma parceria entre Ministério Público, secretarias Estadual e municipais de Educação e Conselhos Tutelares.

Pela regra, escolas deveriam comunicar aos conselhos casos de alunos faltosos, buscando resgatá-los. E valeria para todos os casos de infrequência, dos seis aos 18 anos, assegura a coordenadora de demanda escolar da Secretaria Estadual da Educação, Mársia Sulzacher.

Na prática, não é bem assim.

– O Conselho Tutelar já nos falou que eles não dão conta nem do Ensino Fundamental. Fui numa reunião e disseram: “Ensino Médio nem era para estar aqui, a gente não tem pessoal para ir atrás”– contou no fim de setembro a orientadora educacional Gina Marques, que atuava havia 24 anos no Julinho e se aposentou em outubro, deixando o posto vazio.

Antes de sair, era ela quem ligava para as casas dos alunos quando começavam a faltar. Não era uma tarefa fácil. A começar pelos recursos essenciais. O telefone apto a fazer ligações externas só foi instalado em sua sala em agosto – cinco meses depois do início das aulas. Após conseguir a linha, seu desafio era ser atendida pelas famílias:

– Muitos alunos colocam um telefone que não existe, ou a ligação não completa.

Coordenador do Conselho Tutelar de Porto Alegre, Leandro Barbosa admite limitações:

– A prioridade é para o Ensino Fundamental, até porque o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê isso. Mas também atendemos adolescentes. Muitos param de estudar por falta de dinheiro para a passagem de ônibus.


A escola se democratizou, abriu as portas. Veio uma população pouco letrada e a gente não está sabendo o que fazer com ela. A escola não se preparou. Não adianta dizer que o aluno não quer aprender, se a gente não souber primeiro o que o aluno quer e precisa aprender.”


Gina Marques, orientadora educacional

Sociologia com o professor Heitor: a aula mais popular

A maioria dos professores reclama que a turma 11F é bagunceira. Que os alunos não largam o celular. Que não param de conversar.

Na disciplina de sociologia é diferente. A aula é tão popular que alunos de outras turmas aparecem para assistir. Com suas brincadeiras, o professor Carlos Heitor Rosa da Silva magnetiza a atenção dos alunos. Um dos segredos é que a matéria não é dada a partir de conceitos. Em vez de despejar teorias, cativa os alunos contando histórias. No dia 3 de maio, a escolhida foi a da Águia e da Galinha. Depois de contar o causo de uma águia que não havia aprendido a voar por ter sido criada como galinha, o professor pede que os alunos escrevam 10 linhas dizendo se identificam mais com a águia ou com a galinha. Para reforçar a identificação dos alunos com a história, o próprio professor dá um depoimento pessoal.

– Por muito tempo eu fui galinha. Perdi cinco anos numa série só... fiz EJA... hoje dou aula aqui e em mais quatro escolas particulares... hoje eu sou águia!

– conta o professor, que além de ser concursado pelo Estado leciona em dois pré-vestibulares e duas escolas particulares.

Apaixonado pelo trabalho, Heitor diz que não sai de casa se não for para se divertir.

– Minha relação com o trabalho não é só de dinheiro. Tenho prazer dando aula, sou feliz dando aula. Então tive que fazer duas escolhas na minha vida: ou eu ganhava dinheiro rindo, ou triste. E eu pensei: vou ganhar dinheiro rindo. E os alunos percebem. Porque para acontecer o aprendizado tem que ter um clima na sala de aula – analisa.
Tão iguais, tão diferentes

Em 24 de junho, a turma ganhou uma nova aluna. Mas nem parecia uma novidade, porque seu rosto era familiar.

Irmã gêmea de Jessica Jantsch, Luana chegou à 11F transferida da turma 11I, a pedido da mãe. Como o desempenho de Luana estava abaixo da média, com o pior conceito existente (Construção Restrita de Aprendizagem), a doméstica Lili Einsenbraun, 47 anos, pediu à escola para que as duas filhas pudessem estudar juntas. A estratégia era fazer Luana ser influenciada pelo bom comportamento da irmã, Jessica, que gosta tanto de ler, que passa os intervalos entre um período e outro entretida com obras literárias.

As duas são idênticas – com o mesmo cabelo loiro comprido, o mesmo corpo alto e esguio – e o fato de Jessica ter dois centímetros a mais, com 1m77cm, contra 1m75cm, é quase imperceptível para quem as vê juntas. São tão parecidas, que, quando estudavam na rede municipal de Viamão, chegaram a trocar um dia de sala para brincar. Mas basta uma conversa rápida para perceber que as semelhanças entre elas se restringem à aparência física. Como elas mesmas fazem questão de esclarecer.

– Ela é mais estudiosa. Ela é boa em qualquer matéria. Acho que por falta de interesse meu. A minha carreira não vai ter estudo no meio. Eu vou trabalhar em estética. Não precisa de estudo para isso – justificou Luana, em 2 de outubro, admitindo que matava aula no início do ano e “ficava na sacada, conversando com quem passasse”, por não ter paciência de ficar na sala.

– Eu... se perceberem, eu tô sempre lendo alguma coisa, porque eu gosto de ler... e o vocabulário é melhor se tu começa a ler, não só ficar ouvindo os outros. Porque os livros são diferentes do que a fala, tem uma fala diferente nos livros. E é bom também porque usa a imaginação, não fica parado, só conversando. Porque pra ler um livro tem que imaginar as cenas, o que tá acontecendo, como é o personagem. É bem legal – empolgava-se Jessica.

Órfãs de pai, vítima de um câncer de esôfago aos 49 anos, as irmãs estão entre os beneficiários do programa Bolsa Família. Três vezes por semana, frequentam juntas oficinas de pintura e esporte na Restinga – e à noite dividem um beliche em uma casa de madeira onde vivem com a mãe no bairro Planalto, em Viamão.

Apesar de percorrerem itinerários comuns, as gêmeas têm interesses distintos – numa mostra da complexidade dos perfis reunidos em uma sala de aula. Jessica, por exemplo, toca violino há três anos na Orquestra Infanto-Juvenil da ONG Ipdae (Instituto Popular de Arte e Educação), na Lomba do Pinheiro – e em outubro viajou para tocar com o grupo em Minas Gerais. Luana chegou a começar a frequentar o mesmo projeto, mas largou depois de seis meses porque achou “muito chato”. Prefere fazer faxina esporadicamente com a mãe a se render à disciplina exigida pela orquestra.

À noite, as duas brigam porque Jessica gosta de ler e praticar violino – Luana insiste para apagar a luz porque quer dormir depois de assistir à novela.

Na Feira do Livro de Porto Alegre, Jessica fez questão de participar: foi passear com seu namorado e comprou o livro O Dia da Guerra. Luana não se interessou pela programação.

– Já fui no ano passado – explicou.





Apesar de Luana dar menos valor aos estudos do que Jessica, a estratégia da mãe deu resultados. À medida que o segundo trimestre avança, a primeira começa a se recuperar. De tanto copiar a irmã, Luana acabou surpreendendo a si mesma. Semanas antes do final das aulas, começou a repensar seus planos para o futuro. Revendo a ideia de não fazer faculdade, decidiu fazer Engenharia Elétrica. Diz que pensou sozinha, depois de ver o namorado da irmã fazendo curso técnico. Chegou a tentar fazer a prova, não passou. Mas não desistiu.

– Eu já decidi a faculdade que eu vou fazer, então eu tenho que estudar, senão não dá. Antes eu pensava em ser manicure... mas manicure não dá futuro... e também é muita exploração. Então pensei em fazer faculdade de Engenharia Elétrica. Não é tão difícil. Só tem que ser muito estudiosa e inteligente – explicou, sorridente.

Fora do colégio, as duas sonham em se inscrever no concurso Menina Fantástica.

– Mas e aí, como vão escolher? As duas?

– Não, só uma. A que fala melhor... – brinca Jessica, pigarreando de propósito com “hã, hã”.

Mesmo com bons conceitos no fim do ano no boletim, Luana e Jessica concordam em um ponto: acham que o ensino é fraco.

– Eles empurram a pessoa para passar – repetem as duas.



Greve: dilema do diretor

Mantendo a tradição de décadas, o ano letivo de 2013 foi interrompido por greve do magistério, em 23 de agosto. Desta vez, além de protestarem contra os baixos salários, os professores bradaram contra a reforma do ensino nas três semanas em que cruzaram os braços.

De tradição combativa, o Julinho aderiu à greve – mas não integralmente. Cerca de metade dos 160 professores paralisou as atividades, segundo cálculo da direção da escola, enquanto o restante preferiu seguir trabalhando.

Grevista histórico, o diretor da escola, Antonio Esperança, que assumiu o cargo no início do ano, viu-se diante do desafio de ter que gerenciar um conflito estabelecido entre o quadro docente: de um lado, os companheiros de outras tantas lutas – que esperavam seu apoio para fechar a escola e dar respaldo ao movimento. De outro, os professores descrentes da greve como instrumento de pressão, que reivindicavam o direito de lecionar.

Desgastado com os dois grupos, o diretor eleito para um mandato de três anos já sonhava em largar o cargo para voltar à sala de aula.

– Os grevistas me acusavam de apoiar os não grevistas, os não grevistas me acusavam de apoiar os grevistas. Ninguém ficou contente. Virei vidraça para todos os lados – desabafou, em 30 de setembro.



As principais reivindicações dos grevistas eram a implementação imediata do piso como básico salarial e a suspensão da reforma do Ensino Médio. O único consolo ao final do movimento foi a garantia de que não teriam corte do ponto pelos dias parados.

A recuperação das aulas foi feita em oito sábados, com baixa adesão dos alunos.

Ele quer dominar a bola

Faltando dois meses para o fim do ano letivo, em 3 de outubro, Guilherme faz uma confissão em voz alta na sala de aula.

– Acho que a primeira vez que eu peguei o livro de história foi ontem – diz o garoto, sorridente.

– E eu não achei meu livro de história – completa Milena.

Experiente no trato com adolescentes, o professor de história prefere o deboche à crítica:

– O livro é muito pequeno, difícil de achar – ironiza, prosseguindo com a explicação sobre o Egito Antigo.

Sentado no fundo da sala, Guilherme é da turma dos “conversadores”. Está sempre rindo de alguma piada feita pelos colegas.

A concentração que falta na aula sobra no campo do time do São José, onde Guilherme joga desde o início do ano. Em um amistoso contra o time do Dom Bosco, em 30 de outubro, entra no segundo tempo, aperta na marcação, cobra atenção dos colegas e bate três faltas para o time, em direção ao gol. Apesar de ter ganho peso depois de uma cirurgia no joelho e ficado cinco meses sem jogar, é considerado promissor. Natural de Seberi, veio do Passo Fundo para atuar no São José. E ali despertou a atenção de outros times.

Na metade do ano, começou a ser sondado pela Chapecoense, depois que um olheiro o viu jogando. Empolgado com a chance de jogar em Santa Catarina, estava disposto a abandonar a escola para crescer na carreira.

– Eu na verdade dou mais prioridade para o jogo. Estudar só quando é necessário, quando tem prova. O que eu prefiro é jogar – explicou Guilherme, no fim do segundo trimestre.




Mesmo que Guilherme quisesse largar os estudos para jogar futebol, não seria tão fácil. Primeiro, porque os pais não deixariam. Segundo, porque hoje os próprios clubes exigem que os atletas continuem estudando. No São José, por exemplo, fazem controle trimestral.

– Se o aluno não está estudando, não pode jogar. E os que reprovam não viajam para os treinamentos no verão. A maioria passa arranhando, mas passa – define Giuiliano Moreira, coordenador técnico da base do São José.

Preocupados com o futuro do filho, o caminhoneiro Anildo Reis da Silva, 46 anos, e a mulher Vera, 42 anos, proprietária de uma loja de roupas, empenham-se para garantir a continuidade dos estudos. Apesar de o clube insistir desde julho para que o adolescente fosse para Chapecó, o pai negociou para só levá-lo em dezembro, após o fim das aulas.

– Ser jogador de futebol é muito difícil, vai que um dia não dê certo... tem que ter estudo. Então a gente negociou, pediu mais um mês para ele terminar a aula – contou o pai.

Embora não estivesse focado nos estudos, Guilherme se saiu bem. Ficou com conceito satisfatório em todas as disciplinas. Com o adiantamento do fim do ano letivo, conseguiu embarcar antes do que previa para Chapecó. Em 1º de dezembro, já estava em solo catarinense. De lá, recebeu a confirmação de que havia sido passado de ano, ao ver a lista de aprovados compartilhada por uma colega na página da turma pelo Facebook.

Três semanas depois de chegar em Santa Catarina, reviu seus planos. Disse não ter gostado da cidade e voltou para o Rio Grande do Sul. Se não mudar de ideia outra vez, voltará ao Julinho em fevereiro, para iniciar o segundo ano do Ensino Médio, e para os gramados do São José.


Até sete professores faltam por dia

O desencanto com a carreira do magistério não aparece apenas nos discursos recorrentes da categoria contra os baixos salários. Materializa-se também em sintomas menos óbvios, revestidos de ausências.

Embora a escola não tenha uma estatística, o diretor do Julinho diz que é comum sete professores faltarem por dia somente no turno da manhã – amparados por uma norma do Estatuto do Magistério que dá ao docente o direito de “faltar, por motivo de força maior, até 10 dias por ano”. O estatuto fala que o professor deve fazer a “comprovação perante autoridade competente”, mas a cultura consolidada no Julinho é de que o professor simplesmente tem o direito de faltar, bastando avisar por telefone seus imprevistos. E não há controle sobre isso. A vice-diretora Daniela Gonçalves afirmou, em novembro, que a justificativa por escrito ainda não havia sido instituída porque a gestão atual ainda era recente e havia outras demandas prioritárias.


“Os alunos sabem que não acontece nada”

Ao chegar para o terceiro período, em 1º de outubro, o professor de inglês Werner Alves fecha a porta. Ficam só 13 alunos na sala.

– Professor, posso entrar? – repetem insistentemente os alunos que ficaram no corredor, atrasando-se para o retorno no intervalo.

– Não! Saiam – responde o professor.

Os estudantes que permanecem na sala riem. Exaltado, o professor se dirige em voz alta à repórter, sentada no fundo da sala:

– Não sei qual é o objetivo da tua pesquisa, mas isso tu poderias relatar, que é impossível tu fazer um bom trabalho num ambiente, que tu tá vendo como é que funciona. Eu só tenho 50 minutos. Tenho que fazer a chamada, entregar as notas, fazer correção de exercícios, continuar meu trabalho... em uma sala de aula totalmente desorganizada. A direção da escola não dá aparato nenhum, os alunos fazem isso porque sabem que realmente não acontece nada – desabafa Werner.



Um caso de amor

Em vez de cansaço, a professora Imara Ungaretti, 64 anos, circulava pelos corredores do Julinho exalando orgulho no último dia letivo, em 20 de dezembro.

Professora de desenho, uma das opções oferecidas aos alunos na disciplina de artes – entre outras alternativas, como escultura e teatro –, a docente de cabelos brancos falava com empolgação sobre as criações produzidas pelos estudantes em sala de aula.

– O aluno nunca é ouvido, mas pelo menos na aula de artes ele pode escolher. É a arte que tira a miséria do mundo, a arte e o esporte. Na aula de arte, eles sonham, é uma terapia – empolgava-se, entre elogios aos talentos revelados ao longo do ano, de alunos como Stefhani Ribas Letha, a líder da turma 11F, que tinha como um dos temas preferidos os mangás, as histórias em quadrinho japonesas.

Apesar de trabalhar em outras duas escolas municipais, contabilizando cerca de 800 alunos no total, a professora não esconde sua preferência pelo colégio Julio de Castilhos.

– Eu tenho um caso de amor com o Julinho, a minha paixão é eterna. Meu aluno aqui é igual ao de outras escolas particulares, nos sonhos e nas expectativas. Aqui tem liberdade, e é de onde saem os melhores alunos – elogia.

Agitado no início do ano, o grupo de 12 alunos que reunia integrantes das turmas 11E e 11F na aula de desenho aos poucos se deixou envolver pelos contornos e sombras traçados a lápis, hipnotizados pelo bom humor misturado a um discurso firme da professora Imara.

– Como sou velha, no começo do ano ficam com pé atrás, acham que sou uma múmia. Mas, depois, eles percebem que eu sou meio louca, também falo a língua deles, e eles vão entrando no ritmo – brinca a professora.
O ano que não terminou

No fim do terceiro trimestre, alunos que passaram o ano matando aulas começam a correr atrás do prejuízo.

– Agora a gente entra em todas as aulas. Tem que passar, né, senão o castigo pega. As professoras disseram que a gente tem chance de passar, então vamos tentar – sorri Giovana, integrante de um trio famoso pelo “turismo”.

Garantir a aprovação virou um mantra no novo currículo. O nome oficial dos exames adicionais para melhorar o desempenho dos estudantes é Plano Pedagógico Didático de Apoio (PPDA), mas na escola todos chamam de “a recuperação da recuperação”. Uma das consequências da reorganização do calendário foi a perda de conteúdos no terceiro trimestre. A história da Grécia Antiga, por exemplo, que normalmente consumiria um mês de aulas, com todo o seu legado sobre a democracia, os deuses, a organização social na pólis – acabou condensada em menos de 50 minutos de aula na turma 11F.

– Este ano foi absolutamente atípico. Mesmo com uma greve... por um milagre este é o ano que está acabando mais cedo desde que comecei. Se já era difícil vencer todo o conteúdo antes, neste ano ficou mais complicado – desabafou diante da classe o professor Milton, em 21 de novembro.

Três semanas depois, em 13 de dezembro, os professores se reúnem para os conselhos finais. O clima é de contrariedade. Professores reclamam de pressão por aprovações.

– Agora é na base da ameaça: se você não aprovar, vai ser processado – diz uma das participantes, descontente após uma divergência sobre um aluno com necessidades especiais de outra turma que foi aprovado pelo conselho.

A conselheira da 11F, Ana Xavier, garante que em relação à classe não houve maiores divergências. Dos 28 que concluíram o ano, 15 foram aprovados. Nove passaram com algum tipo de restrição e terão de fazer recuperações durante o próximo ano para progredirem. E quatro reprovaram. Um desses era famoso por não entregar trabalhos – nem os de recuperação. Outros dois eram contumazes gazeteiros. Em história, por exemplo, um dos reprovados faltou a 20 das 28 aulas. O outro só compareceu em dois dias.

– Essas reprovações são quase um abandono, uma evasão de alunos que continuam na escola – definiu o professor Milton, de história.

Mas reprovação agora não significa necessariamente repetir de ano. Pelo novo modelo de ensino, os repetentes poderão fazer atividades durante as férias – como provas ou trabalhos, conforme definido pelo professor – para buscar uma nova avaliação. Dois dias antes do recomeço das aulas em 2014, serão chamados para apresentar suas atividades e submetidos a uma “reclassificação” – a nova expressão cunhada para poder aprovar quem havia repetido.

– É uma exigência do Ensino Politécnico, que precisamos cumprir. Querem melhorar os índices de aprovação. O problema é que não estamos melhorando a qualidade do ensino para diminuir a reprovação... Só estão melhorando os índices de reprovação – preocupa-se o diretor do Julinho, Antonio Esperança.

Nem sempre foi assim. Fundada em 1900, como Gymnasio do Rio Grande do Sul, a instituição testemunhou diferentes fases do ensino. Esperança lembra com saudosismo que o Julinho já foi uma escola padrão, modelo “inclusive para as escolas particulares”, na década de 1940.

“Guria não entra, uniforme somente nas Casas Carvalho, as aulas começam às oito em ponto, depois ninguém pode entrar... A maior distinção da época era ser Juliano, tocar na banda do Colégio, carregando a bandeira na parada de Sete de Setembro”, registrou o ex-aluno Tatata Pimentel, no prefácio do livro Eu vivi esta história no Julinho (1900-2000). Os tempos mudaram, mas o diretor do Julinho acredita que a instituição se mantém como referência.

– Com todos os problemas, o que a gente faz aqui continua sendo o que norteia a educação pública no Estado – avalia o diretor, reconhecendo que o colégio hoje espelha uma crise.

Contando os dias para sua aposentadoria, depois de 22 anos no Julinho, a conselheira da 11F cumpria aliviada suas últimas tarefas, em dezembro. Poderia ter saído em setembro, mas preferiu esperar o fim das aulas para não deixar os alunos na mão. Apesar do cansaço e do salário achatado, Ana não se arrepende de ter escolhido o magistério. Diz que adora os alunos, “voltaria tudo de novo”. Mas, vendo tanto estudante fraco ser empurrado para frente, sai descrente quanto ao futuro.

– É uma hipocrisia, né... Por isso tô caindo fora – despediu-se.





Contraponto

O que diz o secretário estadual da educação, Jose Clovis de Azevedo:

Falta de professores

“A falta de professores na escola não é falta de professores no quadro. Geralmente, ocorrem faltas quando o professor entra em licença médica ou pede demissão. Mas uma escola com boa gestão procura resolver com redirecionamento de seus profissionais. Os contratos provocam muita instabilidade. Quando alguém sai, levamos 15, 20 dias para contratar outro. Hoje são 21 mil contratos, mas já nomeamos 8 mil professores. E temos mais 13 mil aprovados em concurso.”


Críticas ao Ensino Politécnico

“As resistências às mudanças podem ser ideologicamente mapeadas, geralmente vêm de setores ligados a partidos radicais de esquerda, ou de grupos conservadores. É um equívoco dizer que o governo quer maquiar os números, porque os índices de evasão e reprovação, mesmo tendo melhorado um pouco, ainda são muito ruins e depõem contra todos os que trabalham com educação, não só contra o governo. O objetivo do Ensino Politécnico é que o aluno aplique seus conhecimentos na vida real. E têm muitas correntes entusiasmadas.”


Pressão por aprovações

“Não mandamos aprovar alunos que não tenham capacidade. O que orientamos é que se ofereçam oportunidades permanentes para que o aluno possa ser desafiado a aprender. Mas quem decide é o professor. A escola existe para ensinar, não para reprovar.”










Textos: Letícia Duarte
leticia.duarte@zerohora.com.br

Imagens: Félix Zucco
felix.zucco@zerohora.com.br

Edição de vídeo: Raquel Saliba
raquel.saliba@zerohora.com.br

Arte: Guilherme Gonçalves / Michel Fontes
guilherme.goncalves@zerohora.com.br
michel.fontes@zerohora.com.br



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