Sete jovens aproximam-se uns dos outros e abrem o sorriso para a lente do fotógrafo. São 3h de 27 de janeiro de 2013. No palco, agitam-se os músicos da banda Gurizada Fandangueira. O incêndio já vai começar.

Jovani, Delvani, Renan, Cássio, Henrique, Jacob e Charles, os amigos reunidos na área VIP, levantam os copos abastecidos de vodca com energético. Cássio pousa a cabeça no ombro de Jovani. O fotógrafo da boate aciona o clique.

Jovani e Delvani Rosso são irmãos e sonham há quatro meses com este momento. Lavradores no interior de Manoel Viana, no oeste gaúcho, abrandam as agruras do trabalho de sol a sol com o planejamento de uma noitada entre amigos na movimentada Santa Maria. Jovani tem 26 anos. Delvani, 20.

Renan e Cássio Biscaino também são irmãos. Renan, o mais velho, 25 anos, reside em Manoel Viana. Cássio, 20, vive no Alegrete. Na manhã do sábado, 26 de janeiro, o carro dos Rosso estaciona diante da casa de Renan para o início da jornada. Quando o irmão e os amigos chamam pelo interfone do apartamento, Cássio fica contrariado. Não quer saber de festa. Diz que não tem dinheiro.

Enfia-se na cama para deixar claro que não vai. Os outros três puxam os lençóis, empurram Cássio.

- Vamos! Vamos!

- Imagina as gurias lá em Santa Maria, só te esperando.

- Está bem. Vamos - assente Cássio.

Henrique Nemitz, 25 anos, o quinto na foto, também é da turma de Manoel Viana. Mas agora está em Santa Maria, para as aulas de Medicina Veterinária na UFSM. Aceita o convite dos Rosso. Ele é o elo da turma com o amigo Jacob Thiele, 22 anos, colega de curso. Jacob leva junto o camarada com quem divide apartamento, Charles Weschenfelder, 25 anos, da Engenharia Elétrica.

O rumo inicial do septeto é a danceteria Absinto. Mas ela está fechada. Resta a Kiss. Compram ingresso, furam a fila que dobra o quarteirão e entram à 1h. Movem-se com dificuldade no mar de gente.

Depois da foto, eles se dispersam. Jovani e Charles vão ao bar. Renan dança. Delvani, Cássio, Henrique e Jacob olham as moças bonitas nos fundos da área VIP.

Depois de esvaziar os copos de tequila, Jovani e Charles passam diante do palco, onde o vocalista entoa o hit Amor de Chocolate.

Horas depois, a câmera está no piso da Kiss, perto do corpo do fotógrafo. Dentro dela, no cartão de memória, Jovani, Delvani, Cássio, Renan, Henrique, Jacob e Charles sorriem, em seu último momento juntos. Três estão mortos. Dois lutam pela vida no hospital - um deles com queimaduras em metade do corpo. Outro vira herói no meio da tragédia. Um sai quase ileso, mas só fisicamente. Durante um ano, os sobreviventes enfrentam as dores compartilhadas por uma cidade que chora 242 vítimas.

Jovani vasculha a Rua dos Andradas em busca do irmão e dos amigos. Vê gente a correr e a gritar. Atordoado do lado de fora, ainda não entende o que acaba de acontecer na boate.

Sobre uma calçada, seus olhos finalmente encontram Renan, prostrado e chamuscado. Olha em volta dele, convencido de que vai achar os outros. Mas o amigo está sozinho. Também se perdeu da turma.

Jovani decide continuar sua busca dentro da Kiss. Tira a camisa, molha-a, cobre o rosto e avança. Dentro da danceteria, uma nuvem preta impede que enxergue sequer dois metros à frente.

Passa a rastejar. Não pensa. Não sente o calor. Não escuta gritos. É como se estivesse anestesiado. O lavrador de 1m76cm, trabalhado pelas lides do campo, começa a colher gente. Corre sem parar de dentro para fora e de fora para dentro, tateando corpos.

De tanto rastejar, Jovani já está com cotovelos e joelhos arranhados, cortados com cacos de vidros. Mal vê os rostos de quem tira. Exauridos, outros voluntários começam a desistir. Jovani insiste.

- Só mais uma.

O dia amanhece, e as pilhas de corpos parecem não diminuir dentro da Kiss.

- Ah, não adianta, tu só estás tirando cadáver - diz um bombeiro.

Desatinado, Jovani sai da Kiss às 8h.

Jovani fica parado em frente à Kiss, sem saber o que fazer. Com capacidade respiratória reduzida, se surpreende com o fôlego que resistia à madrugada. Há seis anos, seu pulmão direito ficou lesionado após um acidente que quase o matou. Um dos eixos do trator enganchou na sua jaqueta e o prensou contra os ferros. Esmagou parte de seu pulmão, perfurou seu diafragma, provocou um derrame interno que o deixou um mês em coma. Jovani sobreviveu, mas o fôlego nunca mais foi o mesmo. Pelo menos até aquele dia, quando a força ressurgia convertida em missão.

Delvani acorda na calçada em frente à Kiss. Tenta levantar. O corpo não responde. Respira e sente o ar queimar por dentro. Não entende a extensão de seus ferimentos até que duas gurias loiras se aproximam. Quando veem seu corpo estendido na pedra, começam a gritar. E a chorar.

"O que tá acontecendo? O que eu tenho", pergunta-se o jovem de 21 anos, que faz estágio em agropecuária no Instituto Federal Farroupilha, em Alegrete, e sonha cursar Agronomia na UFSM

Delvani segue para o Hospital de Caridade de Santa Maria. No caminho, um socorrista tenta mantê-lo acordado:

- Fala comigo, fala comigo.

Delvani não consegue. Apaga outra vez. Acorda gritando no hospital. Quando abre os olhos, vê suas mãos retorcidas, em carne viva. Tem quase 50% do corpo queimado.

Nas suas últimas lembranças do interior da Kiss, se vê correndo de mãos dadas com o amigo Cássio, em fuga. No tumulto, as mãos se soltam, fazendo com que Cássio seja empurrado pela multidão em direção ao banheiro. Delvani segue rumo à porta. Coloca as mãos no rosto e pressente que vai morrer. Enquanto reza pedindo salvação a Deus, desmaia.

As recordações vêm misturadas com a dor. Antes de descobrir o que aconteceu com Cássio e com os outros amigos, perde outra vez a consciência no hospital. Entra em coma induzido. Em 11 de fevereiro, é transferido de helicóptero para Hospital de Pronto Socorro em Porto Alegre. Só acorda semanas depois.

- Tu sabe o que aconteceu? - pergunta um enfermeiro.

Delvani mexe a cabeça em sinal de negação.

- Pegou fogo numa boate e algumas pessoas se machucaram.

Uma psicóloga aconselha a família a contar os detalhes do ocorrido antes que Delvani descobrisse pela televisão. Jovani é o encarregado de dar a notícia.

Imóvel na cama da UTI, com a fala trancada pela traqueostomia e o corpo revestido com transplantes do banco de pele da Argentina, Delvani explode em silêncio. Têm vontade de sair correndo, arrancar todos os aparelhos, gritar. Só consegue mexer os olhos, que escorrem em lágrimas.

Em 15 de março, tem alta do HPS e volta para a cidade natal, Rosário do Sul, onde é cuidado pela família. Não consegue abrir uma porta sozinho. Nem levantar uma jarra de suco. Para dar sequência às sessões diárias de fisioterapia de que necessita para recuperar os movimentos, muda-se para Santa Maria. No início não consegue encostar sequer o polegar na palma da mão.

Os nomes de Henrique e Jacob, os alunos de veterinária na foto dos sete amigos, figuram na lista que o professor João Cesar Oliveira tem em mãos ao ingressar no Centro Desportivo Municipal de Santa Maria, às 13h do dia 27.

Enquanto avança para as fileiras de corpos que ocupam de uma ponta à outra a quadra do ginásio, ele tenta não pensar. Diante de si, duas centenas de vítimas estão estendidas sobre lonas pretas.

Coordenador da faculdade de Medicina Veterinária da UFSM, Oliveira é acompanhado pelo secretário do curso, Paulo Roberto Modesto, e por uma policial. Munidos de pastas com endereços e telefones das famílias, compiladas durante a manhã, os dois estão no ginásio para auxiliar na identificação dos corpos. Além de Henrique e Jacob, a lista nas mãos de Oliveira inclui outros três nomes. Os cinco estudantes de veterinária estão sumidos desde a madrugada. O professor se aferra à ideia de que seguem vivos.

Enquanto avança para a fileira de corpos, tem a impressão de estar dentro de alguma obra de teatro. É como se os jovens sobre a lona, os rostos sujos de fuligem, fossem levantar a qualquer momento.

O professor João identifica o corpo de Henrique antes que a família pudesse chegar a Santa Maria. Na estrada desde Manoel Viana, acompanhada de parentes, a professora Marlei Nemitz lembra da última vez em que falou com o filho, na noite anterior. Estava no hospital em Alegrete, cuidando da mãe em estado grave. Pensava que a avó não resistiria aos próximos dias. Em sua última mensagem, Henrique a consolava.

"Não se preocupa que Deus cuida da vó".

No início da tarde de domingo, enquanto a família de Henrique já vive o luto, Charles, que estava com ele na Kiss, continua percorrendo os hospitais. Não se conforma com o sumiço de Jacob, melhor amigo e conterrâneo de Santo Cristo. Dentro da boate, quando começou a sentir cheiro de queimado, cruza com seu parceiro de torneios de laço. Diz para saírem dali, fugirem da fumaça. Jacob responde que antes precisava ir ao banheiro.

- Meu, que banheiro nada. Vamos sair. Vai lá fora - insiste, sem conseguir convencê-lo.

Por volta das 17h, em frente ao Farrezão, Charles descobre que aqueles minutos a mais foram decisivos para Jacob.

Em 4 de fevereiro, quando as aulas recomeçam, Izaura de Vargas Scherer olha para as cadeiras vazias. São 15 ausências permanentes no curso de veterinária - entre eles, Henrique e Jacob.

Integrante de uma das seis turmas organizadoras da festa na Kiss, Izaura passa os primeiros dias preocupada em consolar os colegas. Agradece especialmente a cada um que não tinha ido na festa. Ressente-se por ter vendido ingressos para quatro vítimas, alguns de última hora. Na semana da véspera, os organizadores ainda tinham dúvida se conseguiriam encher a Kiss. Menos da metade dos ingressos havia sido vendida. Para mobilizar os compradores, as turmas seguiam em grupo para o calçadão nos últimos dias, abordando quem passava.

- Tem festa na Kiss, compra, vai tá bom, tu não vais te arrepender - anunciavam.

E agora estão ali, diante de tantos lugares vazios.

O conteúdo das aulas fica em segundo plano. Com apoio de psicólogos, as salas de aula cedem lugar ao aprendizado emocional.

Em abril de 2013, quando as aulas recomeçaram, as turmas se veem diante de um novo dilema. Fazer ou não festa para recepção dos calouros? A turma de Izaura opta por manter a tradição.

- Temos que fazer por eles - repetem.

O lugar escolhido para a festa é a Balare, a única que está com a vistoria em dia depois da sequência de fechamentos de boates por falhas no sistema de segurança. Para que nada dê errado, a turma deixa bem claro que não quer lotar a casa. Os alunos cuidam para limitar o número de ingressos, para averiguar se tudo está em ordem. E aquela festa acaba rompendo o primeiro tabu.

Outras festas são realizadas, e os alunos aprendem que celebrar é a melhor forma de homenagear os colegas, relembrando os bons momentos. O burburinho é retomado gradativamente nos corredores das turmas do Centro de Ciências Rurais, assim como os jogos de truco nos intervalos, nas rodinhas embaixo das árvores do campus.

No próximo dia 7, ocorre a formatura da turma de Henrique. No convite, a foto dele ocupa lugar de honra. A mãe do jovem já confirmou que estará presente. Quer aplaudir os colegas que vão realizar o sonho interrompido de seu filho.

Na sala de espera da CTI do Hospital de Caridade, a funcionária pública Rosmeri Garaz Biscaino, 50 anos, acompanha o socorro a Renan e chora abraçada a um dos melhores amigos do filho caçula. O corpo de Cássio é encontrado intacto, com a comanda da boate preservada no bolso da frente e os documentos chamuscados no bolso de trás. A família imagina que ele tenha caído de costas, junto ao banheiro, para onde seguiram tantos jovens guiados por luminosos de propaganda confundidos com portas de saída pela ausência de sinalização de emergência.

Seu último sorriso fica registrado na foto tirada com os outros seis amigos na Kiss. A imagem é resgatada pelos familiares na polícia, em 12 de julho. É o dia da vigília de Cássio e Henrique na praça Saldanha Marinho, adotada pelas famílias como centro de sua luta por Justiça.