Cercado de colaboradores, o governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda (C), sai à rua no Rio em 1o de abril de 1964 para festejar derrota de Jango. Lacerda foi o principal conspirador civil em favor do golpe.
Casacas do golpe
Introdução
Em abril de 1964, o clima era de festa nas ruas do Rio. Nascia ali, com vivas ao "regime democrático" e à esperança de um novo Brasil, uma ditadura que se prolongaria por 21 anos e que mudaria os rumos do país. Passados 50 anos, porém, uma revisão histórica dos fatos não deixa dúvida sobre o papel dos civis no processo. Nesta reportagem especial, ZH mostra quem foram, como pensavam e como atuaram os protagonistas sem farda do golpe.
Abril de 1964 começou com festa nas ruas e avenidas do Rio de Janeiro. Às 16h do dia 2, milhares de pessoas aglomeradas em frente à Candelária, no coração da capital carioca, deram início ao ato que ficaria conhecido como Marcha da Vitória.
Por todos os lados, o tom anticomunista latejava. Em mãos anônimas, faixas e cartazes exibiam frases como "vermelho bom, só no batom" e "verde e amarelo, sem foice e sem martelo". A sensação era de alívio.
Com a legalidade violada, o presidente João Goulart fora expurgado do cargo. Sob as ordens do marechal Humberto de Alencar Castello Branco, os novos donos do poder deflagrariam a Operação Limpeza, promovendo cassações, perseguições e prisões. Tudo em nome da "democracia" e com o apoio de uma parcela significativa da população.
Religiosos, estudantes, profissionais liberais, donas de casa, empresários e políticos, todos estavam representados. Nas janelas dos prédios, lenços brancos e papel picado coroavam o regozijo.
Nascia assim, com vivas ao "regime democrático" e à esperança de um novo Brasil, uma ditadura que se prolongaria por 21 anos e que mudaria os rumos do país, deixando um saldo de 214 mortos e 148 desaparecidos, segundo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República — além de milhares de cassados, exilados, perseguidos e torturados. O legado incluiria fechamenteo do Congresso Nacional, cassação de mandatos, suspensão dos direitos políticos de qualquer cidadão, descontrole inflacionário, explosão de favelas e violência nos centros urbanos, arrocho salarial, endividamento externo e corrupção institucionalizada — que a censura se encarregou de manter bem longe das manchetes dos jornais.
[-imagens/foto_ilustra_39.jpg|Jango, acompanhado de Brizola (à esquerda) e do general Ladário, deixa Porto Alegre rumo ao exílio no Uruguai.-]
Nesta segunda-feira, o golpe de Estado que derrubou Jango completa cinco décadas. O Brasil vive uma nova fase. É governado por Dilma Rousseff, ex-guerrilheira que sentiu na carne as sevícias praticadas nos porões do regime. Seus antecessores, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, também padeceram — o primeiro, exilado e cassado; o segundo, no auge da atuação sindical, preso.
Passados 50 anos, o país é testemunha do trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que se propõe a investigar fatos ainda obscuros daqueles anos incertos. Temas incômodos, apagados da memória nacional, são revistos, rediscutidos, relembrados. Entre eles, o papel da elite política civil — os "casacas", no jargão da geração de oficiais que marcara a história brasileira desde 1922 — na ofensiva militar de 1964. E ele não foi insignificante.
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O cimento capaz de colar homens como Brossard, Lacerda e tantos outros à conspiração contra Jango, na avaliação do historiador e ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis, foi o medo. O temor era de que um processo radical de distribuição de renda — calcado nas reformas de base — pudesse sair do controle e levar o país à desordem e ao caos, ameaçando instituições e valores cristãos.
Os receios foram potencializados por uma eficaz propaganda anticomunista. Se o governo era considerado bom e ótimo por 42% da população, segundo pesquisa Ibope realizada em março de 1964, as circunstâncias mudaram em questão de dias.
O contexto de acirramento da Guerra Fria e os desdobramentos da Revolução Cubana amplificaram a crise. A classe média se apavorava com o avanço das Ligas Camponesas no Nordeste. Cada discurso violento de Leonel Brizola, cunhado de Jango, causava arrepios nos segmentos dominantes. O gaúcho causou assombro ao pregar a reforma "na marra" — discurso radical endossado por Jango na reta final — e ao incentivar a criação de grupos prontos a guerrear pelas mudanças sociais.
A "quebra de hierarquia" nas Forças Armadas também causou desconforto. Na véspera do golpe, Jango discursou no Automóvel Clube do Brasil, no Rio, e incentivou a insubordinação no Exército. As frequentes greves gerais e a radicalização da esquerda — diminuta, mas barulhenta — completaram o cenário de recrudescimento político e ideológico.
[-imagens/foto_ilustra_41.jpg|Presidente Castello Branco visita o Rio Grande do Sul e recebe apoio civil, em maio de 1964.-]
Com o distanciamento que só o tempo proporciona, a revisão histórica dos fatos ocorridos há 50 anos não deixa dúvida sobre o papel desempenhado pelos civis no processo. Uma corrente de historiadores e pensadores se mostra disposta a reavaliar a participação de cada setor no episódio, com o objetivo de superar os resquícios do autoritarismo e de consolidar, definitivamente, o sistema democrático.
— Não há dúvidas de que houve apoio civil, mas isso não pode servir para justificar a ditadura. Discutir a questão é importante para que os erros jamais se repitam — ressalta a historiadora Carla Rodeghero.
Mais do que uma aquarela na qual predomina o verde-oliva, o processo que culminou na queda de Jango assemelha-se a um gigantesco painel de múltiplas cores e tons. Quem limita a ofensiva de 1964 à atuação dos militares terá dificuldade para explicar, por exemplo, por que milhares de gaúchos se reuniram no centro de Porto Alegre, em dezembro de 1963, para ver e ouvir o padre irlandês radicado nos EUA Patrick Peyton pregar o anticomunismo.
Ficará surpreso ao saber que o movimento estudantil de direita aplaudiu a derrocada de Jango, que o empresariado contribuiu abertamente para desestabilizar o seu mandato e que, no Rio Grande do Sul, tradicionalistas conhecidos se aliaram à ditadura. Isso sem falar na adesão quase unânime da imprensa e na participação de artistas e intelectuais no processo.
Políticos
Governador da Guanabara, Carlos Lacerda foi o principal líder político da conspiração que derrubou Jango.
Na política brasileira, os oficiais que desencadearam golpe de 1964 encontraram parceiros e aliados civis. A figura mais emblemática nesse grupo foi Carlos Lacerda, governador da Guanabara. Além dele, destacaram-se na defesa da intervenção militar os governadores de São Paulo, Adhemar de Barros, e de Minas, Magalhães Pinto. No Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti também fez sua parte.
Por volta das 6h, tocou o telefone do Palácio Guanabara, no Rio. O governador Carlos Frederico Werneck de Lacerda, estirado em uma cama de campanha ao lado do gabinete, recebia a notícia mais esperada daquela vigília. Foi um dos primeiros a saber da ofensiva do Exército para arrancar do poder pela força das armas o presidente João Goulart, o Jango.
Com uma submetralhadora INA calibre .45 a tiracolo, Lacerda estava entrincheirado havia quatro dias na sede do governo carioca e comemorava a queda de Jango já no alvorecer de 31 de março de 1964.
Conspirador dos quatro costados, Lacerda era o líder civil do golpe militar que mergulharia o Brasil em 21 anos de ditadura com o aval de governadores de peso como Magalhães Pinto, de Minas Gerais, Adhemar de Barros, de São Paulo e Ildo Meneghetti, do Rio Grande do Sul.
[-imagens/foto_ilustra_12.jpg|Governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda fez do Palácio Guanabara uma trincheira pró-golpe em 31 de março de 1964.-]
Conquistara o protagonismo do levante sem a farda verde-oliva após três décadas em que foi, como jornalista e político, uma pedra no sapato de todos que mandaram no país. Por causa disso, ganhou fama como "derrubador de presidentes".
Um dos personagens mais controvertidos da imprensa e da política brasileira, orador brilhante, Lacerda tinha a língua afiada como uma espada de samurai. Gostava de duelar com as palavras. Agredia com violentos desaforos quem quer que fosse, mas se ofendia com o revide.
Quando foi trabalhar no grupo Diários e Emissoras Associados fez só uma exigência a Assis Chateaubriand, o dono do grupo:
— O senhor não pode me chamar de filho da puta.
Nascido em berço de notórios comunistas, ganhou o nome em homenagem aos alemães Karl (Carlos) Marx e Friedrich (Frederico) Engels, os papas da doutrina que a família Lacerda pregava.
Como estudante de Direito, aos 21 anos, em 1935, foi o orador da solenidade de lançamento da Aliança Nacional Libertadora e do manifesto que indicou Luís Carlos Prestes para a presidência do movimento que mobilizava de operários a intelectuais contra o governo de Getúlio Vargas.
Logo no início da carreira de jornalista, Lacerda caiu em desgraça com os camaradas por causa de uma polêmica reportagem sobre o anticomunismo, encomendada pelo governo de Getúlio Vargas à revista Observador Econômico, na qual Lacerda trabalhava. Execrado por Prestes, alimentou um ódio doentio contra a ideologia e antigos camaradas pelo resto da vida.
Furando o bloqueio da censura
Em fevereiro de 1945, sacudiu o Palácio do Catete, sede do governo Federal, ao entrevistar o ressentido José Américo de Almeida, que, corajosamente, mandou a ditadura de Vargas às favas.
Oito anos antes, em 1937, José Américo tinha sido escolhido como candidato a presidente pelos governistas, mas foi ludibriado por Vargas, que se manteve no poder, decretando o Estado Novo. A reportagem ajudou a furar o bloqueio da censura, eleições foram marcadas, e Vargas acabou deposto sete meses depois.
Contrário à candidatura de Eurico Gaspar Dutra, apoiado por Vargas, Lacerda disparou:
— Votar em Dutra é votar no fantasma de Adolf Hitler.
[-imagens/foto_ilustra_14.jpg|Lacerda é carregado após ser ferido no pé em um atentado em frente a sua casa-]
Em 1954, com Vargas de volta ao poder pelo voto popular, Lacerda arrebanhou próceres da política antigetulista e até o vice-presidente Café Filho para a cruzada que derrubaria o presidente.
Naquele agosto trágico, Lacerda foi ferido no pé em um atentado em frente de casa, na Rua Tonelero, em Copacabana, que resultou na morte do segurança dele, o major da Aeronáutica Rubem Vaz.
Lacerda explorou o episódio, insuflando o país contra Vargas — imprimindo, inclusive, uma manchete falsa no seu jornal Tribuna da Imprensa — elevando a crise no Catete, até Vargas cometer suicídio.
Nessa época, ganhou dos inimigos o apelido de Corvo, a ave de mau agouro. Ameaçado, Lacerda fugiu para Europa, mas voltou para se eleger em outubro deputado federal pela União Democrática Nacional (UDN), que ajudara a fundar.
No final de 1955, às vésperas da sucessão presidencial, rompeu com o presidente Café Filho. Certo de que o fenômeno Vargas iria pesar nas urnas em favor dos herdeiros políticos do presidente suicida, Lacerda queria virar a mesa.
O seu temor era a vitória de Juscelino Kubitschek, o JK. Lacerda defendia o adiamento das eleições para um momento politicamente menos emotivo. Café adoeceu e se afastou do Catete. Emergiu ao posto interino Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados.
Lacerda convenceu Luz a se aliar em uma conspiração para empurrar o pleito com a barriga. Mas o general Henrique Teixeira Lott foi mais esperto. Ministro da Guerra, Lott comandou o chamado Movimento de 11 de Novembro, deu uma rasteira em Luz e empossou no Palácio do Catete, provisoriamente, o então presidente da Câmara, o catarinense Nereu Ramos.
Luz, Lacerda e companhia saíram corridos do Rio de Janeiro em um navio sob tiros de advertência, disparados pela artilharia do Exército na Baía da Guanabara. Foram para São Paulo, chorar no ombro do governador Jânio Quadros. Nereu Ramos esquentou a cadeira para o presidente eleito, JK, com Jango como vice (na época, os eleitores votavam em presidente e vice em chapas separadas).
[-imagens/foto_ilustra_16.jpg|Reprodução da revista Manchete, de setembro de 1961, cuja capa mostra o então presidente Jânio Quadros condecorando Che Guevara, em Cuba.-]
Restou a Lacerda virar líder da oposição. Seu maior rival era o deputado federal cearense Armando Falcão, um ex-aliado dos tempos da guerra contra Vargas. Escolhido a dedo para defender o governo JK, Falcão era um dos poucos que conseguia controlar a fúria lacerdista.
Em 1960, Lacerda elegeu-se pela UDN governador do Estado da Guanabara (criado naquele ano, composto apenas pela cidade do Rio de Janeiro e extinto em 1975).
Realizou obras importantes de melhorias no abastecimento de água, abriu túneis, ergueu o Aterro do Flamengo e traçou as futuras linhas Amarela e Vermelha, que só sairiam do papel três décadas depois.
Mas também se meteu em confusão ao remover centenas de famílias de favelas para bem longe de áreas nobres da cidade e ganhou outro apelido: mata-mendigos por causa de sumiços de sem-teto.
Até então, achava que não era hora de disputar a faixa presidencial. Brigou com seus correligionários para impor goela abaixo o apoio a Jânio, a quem detestava. Jânio ganhou a eleição e Lacerda sentiu o gostinho da vitória, mas por pouco tempo.
Perseguido pelo dragão da inflação, Jânio parecia mais preocupado em proibir rinhas de galo, corridas de cavalo e cenas de mulheres de biquíni na TV. Solidário à Cuba em um embate contra os Estados Unidos, paparicou Ernesto Che Guevara com medalha e rompeu com a UDN. Não dava mais ouvidos para Lacerda, e chegou a comprar uma arma pensando em matá-lo.
Da decepção com Jânio à rivalidade com Jango
[-imagens/foto_ilustra_17.jpg|Jornalista Carlos Lacerda-]
Em 24 de agosto de 1961, em cadeia nacional de rádio e TV, Lacerda afirmou que Jânio tramava um golpe de Estado e viraria ditador. Na manhã seguinte, menos de oito meses depois de assumir, Jânio renunciou, alegando sofrer pressões de forças terríveis. Planejava voltar ao poder nos braços do povo como fizeram seus ídolos Fidel Castro, em Cuba, e Juan Domingo Perón, na Argentina. Mas o tiro saiu pela culatra.
O governo ficou à feição ao vice: Jango, um velho adversário de Lacerda, principal herdeiro político de Vargas. A ascensão de mais um gaúcho de São Borja soou como deboche para o governador carioca.
Ele também suspeitava de que Jango tramava um golpe e passou a espionar o presidente. A polícia-política do governador carioca instalou uma escuta no telefone do apartamento do presidente, no Rio de Janeiro. O grampo durou apenas 15 dias. Nas conversas de Jango, pouca coisa de política e muito sobre mulheres.
Em uma das viagens aos Estados Unidos, responsável por generosos empréstimos a governadores hostis a Jango, Lacerda afirmou que militares já discutiam a data para derrubar o presidente do Brasil.
Ameaçado de morte por tropas militares leais a Jango nos estertores daquele convulsionado março de 1964, Lacerda sobreviveu para aplaudir o general Humberto de Alencar Castello Branco ser aclamado chefe da nação.
Um porta-voz do governo militar
Escalado como porta-voz do governo militar, Lacerda percorreu o mundo a fim de explicar a "revolução" à imprensa internacional e flertou com o poder para ser indicado sucessor de Castello, em 1965, como candidato chapa-branca.
Estava convicto de que haveria eleições presidenciais. Acreditava na promessa de Castello e nas previsões do astrólogo Francesco Waldner, após uma visita a Roma. Guru de personalidades internacionais, o vidente consultou os astros e enxergou Lacerda sentado no Palácio do Planalto.
Mas surgiram obstáculos indigestos. Generais do Serviço Nacional de Informações (SNI) não engoliam o estilo Lacerda. Nos bastidores, minavam a relação dele com Castello. Lacerda chegou a comemorar a cassação de JK, pensando que estaria mais curto o caminho para Brasília, mas torceu o nariz quando Castello tentou jogá-lo para escanteio, com um convite para ser embaixador. Aí, reagiu com crítica feroz:
— A política do governo conduz o país a um desastre nacional e internacional. No passo que vai, não tarda a se converter numa triste piada.
O fim do “namoro” com Castello
Lacerda tinha uma capacidade incomum de fazer amigos e dom ainda maior para transformá-los em inimigos. Quando soube que Roberto Marinho, dono das Organizações Globo, com quem estava brigado, não o apoiaria, se enfureceu. Agrediu Marinho com ofensas pessoais e desapropriou terrenos comprados pelo empresário em área junto a um parque, no Rio.
Enfurecido, Marinho enfiou um revólver na cintura e foi até o apartamento de Lacerda disposto a matá-lo. Mas minutos antes, o governador fugiu do apartamento, escapando de mais um atentado na Rua Tonelero. Tinha sido alertado por um amigo comum, o deputado federal Armando Falcão.
Aliás, Falcão pajeou o namoro de Lacerda com Castello, que terminou quando o governador teve certeza que os generais não iam soltar as rédeas tão cedo. Em uma reação inesperada, Lacerda não moveu um músculo para interferir na votação no Congresso que prorrogou o mandato de Castello. Entrou madrugada adentro no cinema do Palácio Guanabara, vendo o filme Moscou Contra 007. Castello ganhou um ano a mais no poder por um voto de diferença.
Aí, de súbito, Lacerda perdeu a estribeiras com Castello. Em uma entrevista, chamou o presidente, que era baixinho, de pescoço curto e orelhudo, de "Napoleanão" e "anjo da Conde Lages", numa referência a uma das ruas do meretrício na Lapa, centro do Rio. E completou:
— O presidente é mais feio por dentro do que por fora.
Frente Ampla e a união com desafetos
[-imagens/foto_ilustra_20.jpg|Em 24 de Setembro de 1967, Lacerda se encontra com o ex-presidente João Goulart em Montevidéu, no Uruguai.-]
Desiludido, articulou o movimento Frente Ampla para tentar virar o jogo. Em 1966, não se constrangeu em procurar antigos desafetos no exílio em busca de apoio político. Com JK, a quem chamara de corrupto-mor, almoçou em Lisboa. Com Jango, que acusou de gatuno e covarde, jantou em Montevidéu. Questionado pela atitude, Lacerda respondeu:
— Se em 1964 o perigo era o comunismo, agora é ficar passando de general para general e entregar o Brasil a grupos econômicos americanos.
A Frente Ampla só serviu para despertar desconfianças entre os ex-aliados de farda. Em dezembro de 1968 adveio o famigerado AI-5, e Lacerda foi preso durante uma semana como subversivo. Dias depois, teve os direitos políticos cassados por 10 anos.
Em 21 de maio de 1977, morreu de forma suspeita, aos 63 anos, em uma clínica do Rio, onde havia sido internado 24 horas antes por causa de uma gripe.
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Como a senhora define Carlos Lacerda?
Foi um grande político, orador, articulador de golpes. Aliou-se aos militares, tornando-se o maior líder civil de oposição ao projeto varguista e, depois, aos projetos populistas de Juscelino Kubitschek e João Goulart. Como governador, ao mesmo tempo em que fez obras importantes do ponto de vista urbanístico, como túneis e o Aterro do Flamengo, fez coisas lamentáveis, tratando de forma deplorável as favelas, algumas incendiadas e com moradores levados para conjuntos habitacionais distantes. Um projeto que não deu certo.
Como ele se enquadraria na política atual?
Teria habilidade suficiente para se destacar. Seria um oposicionista radical aos governos Lula e Dilma.
Derrubaria presidentes?
Atualmente, não. As instituições no Brasil estão estáveis, estão consolidadas. Existe outra concepção de democracia.
Empresários
Jango costumava fazer reuniões com empresários gaúchos, como a desta foto, ocorrida cerca de um ano antes do golpe.
Engrenagem fundamental na consolidação do golpe, o empresariado teve atuação decisiva na desestabilização do governo João Goulart. Alegando medo do comunismo e do fim do direito de propriedade, sobretudo após algumas estatizações, grandes empresários se aliaram a líderes militares e criaram instituições como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipês) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) para produzir propaganda contra Jango.Pouco antes do golpe, o presidente João Goulart recebeu em seu gabinete, no Palácio Laranjeiras, no Rio, uma comitiva de empresários do Rio Grande do Sul. O dia era 30 de março, duas semanas após o comício da Central do Brasil, e os interlocutores estavam alarmados com as últimas medidas do líder trabalhista.
Uma delas, assinada no histórico comício, estatizava pequenas refinarias privadas, ameaçando o futuro da gaúcha Ipiranga, de propriedade da família Bastos Tellechea. Ao final da audiência, depois de manifestarem o "desespero com o risco de o país cair no comunismo", os empresários questionaram Jango sobre boatos de uma crise no Exército. O presidente chamou o chefe do Gabinete Militar, general Argemiro de Assis Brasil, para acalmar os ânimos.
— Conversei com todos os comandos. O Exército continua fiel — assegurou Assis Brasil.
No dia seguinte, 31 de março, Paulo Vellinho e Jorge Gerdau, dois dos líderes da comitiva, foram até a recepção do hotel e pediram jornais. A resposta do balconista os surpreendeu. Os periódicos não haviam chegado naquela manhã. Em curso, o golpe já paralisava o país.
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O protagonismo dos capitalistas, que ajudaram a fornecer base social à ação militar, começou a tomar corpo em 1961. Dois órgãos assumiram a linha de frente da campanha anticomunista e de desestabilização de Jango: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipês) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad).
Nas eleições de 1962, o complexo Ipês/Ibad investiu US$ 12,5 milhões nas campanhas de mais de 900 candidatos a cargos públicos. Tudo para aproximar políticos de perfil conservador de suas trincheiras. Muitos deles se elegeram e, posteriormente, apoiaram o golpe.
O Ibad atuou até 1963, encerrando as atividades depois de uma CPI ter investigado a origem do seu dinheiro — a maior parte de empresas nacionais e estrangeiras e da CIA. Com isso, os Ipês seguiram sozinhos na tarefa de combater a "ameaça comunista". E não decepcionaram.
Consolidado o golpe, líderes do instituto foram protagonistas de um fenômeno que o historiador uruguaio Hernán Ramírez definiu como a "colonização dos aparelhos de Estado". O processo se deu aos poucos, com membros do Ipês assumindo funções-chave em órgãos como o Incra e os ministérios do Planejamento e da Fazenda.
O complexo Ipês/Ibad
• Imprimiu e distribuiu 182 mil livros e panfletos de cunho anticomunista em 1963, entre eles obras como UNE — Instrumento de Subversão, de Sônia Seganfredo, os clássicos A Revolução dos Bichos e 1984, de George Orwell.
• Criou uma agência própria de notícias e patrocinou 300 programas de rádio.
• Produziu 14 filmes de curta metragem, que passaram a ser exibidas em todo o país em uma espécie de cinema ambulante, improvisado em ônibus e caminhões.
• Embora contasse com empresários civis, os Ipês sempre conviveram com a participação decisiva de militares. Em 1962, o general Goubery do Couto e Silva, responsável também pela criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), foi um dos fundadores do Ipês.
A consolidação do braço gaúcho
[-imagens/foto_ilustra_2a.jpg|Capa e reportagem da revista Democracia e Emprêsa, edição de dezembro/janeiro de 1965.-]
No Rio Grande do Sul, a entidade encabeçada por empresários surgiu em agosto de 1962 e ganhou o nome de Ipesul, tendo Paulo Vellinho e A. J. Renner entre os seus 29 sócios-fundadores. Um dos pontos altos do instituto — declarado órgão de utilidade pública pelo governador Ildo Meneghetti em 1963 — foi a edição da revista Democracia e Emprêsa.
O objetivo da publicação, segundo o historiador Thiago Aguiar de Moraes, especialista no tema, era difundir ideias "vanguardistas" de modernização das empresas e do capital para tornar as relações de trabalho mais humanas e justas. Em outras palavras, o Ipesul apresentava "tecnicamente" uma proposta de terceira via, situada entre os radicalismos do comunismo e do capitalismo selvagem.
— A verdade é que nunca se discutiu derrubar o governo. Nós discutíamos idéias sobre o Brasil que queríamos — diz Vellinho, aos 86 anos.
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O que a comitiva de empresários gaúchos, da qual o senhor fazia parte, disse a Jango na audiência de 30 de março de 64?
Havia uma preocupação com a esquerdização do Brasil. Jango tinha acabado de nacionalizar as refinarias. Era o fim do direito de propriedade, e esse era o nosso medo. Antes disso, nos encontramos no Country Club, em Porto Alegre, com o Valdir Borges, que era um auxiliar próximo de Jango no governo, e dissemos que estávamos desesperados com o risco de comunismo. Jango não era comunista, mas estava envolvido pela esquerda.
Como foi o clima? Jango realmente parecia acreditar que as forças golpistas estavam sob controle?
Acho que o Jango não tinha noção da situação. Ele estava convencido de que o Exército estava com ele. Recomendou que voltássemos para nossas cidades para dizer que o país estava em paz e que ele ficaria até o final do mandato. A reunião foi tensa. Houve um momento em que eu me exaltei um pouco. Atrás do Jango, um assessor dele fazia gestos bruscos pedindo calma.
Estudantes
Líder estudantil Paulo Gouvêa da Costa, ao lado do ministro Moniz de Aragão (de pé), em congresso do Diretório Nacional dos Estudantes em Curitiba, em 1966.
Cristalizada ao longo da história, a versão de que os estudantes secundaristas e universitários formaram uma massa única e homogênea de oposição ao golpe civil-militar de 1964 não passa de mito. Bolsões de jovens não apenas aplaudiram a deposição de Jango, mas também publicaram manifestos de apoio, disputaram e venceram eleições em centros acadêmicos e formaram uma base de sustentação social nos primeiros anos do regime.
O apoio dos estudantes
As manifestações estudantis no início de abril de 1964 não deixam dúvida a respeito da aliança informal de parte deles com os militares. A Federação dos Estudantes Universitários Particulares do Rio Grande do Sul (Feup) publicou nota em jornal afirmando que o "mal estava sanado". Os estudantes de Engenharia da UFRGS escreveram texto garantindo "integral apoio a todos que se rebelaram contra a implantação do comunismo".
[-imagens/foto_ilustra_5.jpg|Manifestado publicado pela Federação dos Estudantes Universitários Particulares do RS (Feup) em 2 de abril de 1964.-]
O Manifesto de Universitários Democratas, de autoria de alunos de UFRGS e PUCRS e de um secundarista, foi ainda mais direto: "Aplaudimos entusiasticamente as forças armadas", diz o texto, que ainda registrou apoio à Operação Limpeza, responsável por prisões e cassações após o golpe.
Na sequência, as forças conservadoras gaúchas receberam um comunicado de São Paulo — onde se destacava o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), sobretudo na Universidade Mackenzie —, propondo uma frente de atuação conjunta.
Sustentação social ao regime
Junto com Vitor Della Mea — considerado o principal líder dos estudantes anticomunistas no Estado —, Paulo Gouvêa da Costa foi um dos protagonistas do movimento que impôs derrotas à esquerda e deu sustentação social ao regime no seu período inicial.
— Achamos que foi uma solução para tudo que ocorria no momento, no contexto da Guerra Fria e da disputa de poder no mundo. Havia um temor generalizado, o Brasil estava caminhando celeremente para um regime comunista. Jango estava sendo manipulado — analisa Gouvêa.
Além de fundar a Feup, Della Mea venceu em 1962 a eleição para o diretório do curso de Direito da PUCRS. Em 1965, Gouvêa foi eleito presidente do Diretório Estadual dos Estudantes (DEE) com folgada vantagem sobre o candidato da esquerda, Gilberto Bossle. Ele ainda assumiu o Diretório Nacional dos Estudantes (DNE).
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Em 1966, após a fundação do Movimento Decisão, abrigo dos estudantes conservadores, nova vitória: Gouvêa e Della Mea e outros líderes estudantis, como Cesar Saldanha Souza Junior, elegeram um sucessor do grupo para o DEE.
O apoio das frações conservadoras ao regime foi minguando a partir do governo Costa e Silva. Algumas divergências surgiram, mas não a ponto de se tornarem maiores do que as afinidades.
— A gente confiava que Castello Branco iria conduzir o país ao regime democrático. Nosso desejo era eleger Carlos Lacerda. O erro do regime foi ter permanecido depois de 1967. Poderia ter acontecido uma solução democrática bem antes — diz Gouvêa.
Fenômeno semelhante ocorreu em Santa Maria, segundo maior ponto de concentração de militares do país depois do Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, sede de importantes bastiões trabalhistas e de esquerda, como o movimento sindical dos ferroviários.
Estudos do historiador Mateus da Fonseca Capssa Lima mostram que, entre 1965 e 1968, estudantes de direita conseguiram construir hegemonia no movimento estudantil da UFSM, derrotando a esquerda católica.
Ressalvados alguns atritos, as alas mais conservadoras dos estudantes seguiram estreitando laços com o regime. Em 1965, Gouvêa e outros companheiros participaram de uma churrascada em Bagé com cerca de 500 pessoas, tendo como convidado especial o então presidente Castello Branco.
Os líderes estudantis foram apresentados ao chefe militar, trocaram ideias e, meses depois, retribuíram a visita no gabinete presidencial, no Rio de Janeiro.
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Qual foi a sua posição no episódio da deposição de Jango?
Acho que, se não tivesse sido tomada uma atitude com Jango, entraríamos em uma fase anárquica, porque Jango não exercia mais o poder. Na anarquia, tudo poderia ocorrer, até mesmo uma guerra civil. Dos males, era o menor.
Vocês eram anticomunistas, conservadores, de direita, ou uma síntese dessas definições?
Tínhamos um grupo grande, que ganhou a maioria dos centros acadêmicos em 1963. Não só aqui tinha oposição à esquerda, mas também no Paraná, em Minas Gerais, em São Paulo e outros. Eu, pessoalmente, tinha ideias trabalhistas. Nunca puderam nos acusar de estarmos na direita, muitos de nós participaram da Campanha da Legalidade.
Memórias de um estudante
[-imagens/foto_ilustra_9.jpg|Sirkis durante treinamento de tiro, em 1969.-]
Alfredo Sirkis foi um jovem da classe média carioca que migrou do lacerdismo e do apoio ao golpe à guerrilha armada, ingressando na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), comandada por Carlos Lamarca. Hoje, aos 63 anos, é deputado federal pelo PV, partido que ajudou a fundar. Confira a seguir trechos da entrevista concedida por ele a ZH:
Influenciado pela família, principalmente pelo seu pai, o senhor era admirador de Carlos Lacerda e viu o golpe com bons olhos. O que motivou a classe média a adotar postura favorável à queda de Jango?
Meus pais e eu éramos lacerdistas. A classe média no Rio era a favor do Lacerda e era contra o Jango. Em São Paulo, era a mesma coisa. Diria que expressiva parte da classe média de direita era contra o governo do Jango e, num primeiro momento, aceitou com expectativa e de forma positiva a queda do presidente em 1964. Na eleição de 1960, infelizmente o Brasil elegeu dois despreparados. O Jânio Quadros era muito perto de ser maluco, e o Jango era fraco, apesar de bem intencionado, mas extremamente indisciplinado intelectualmente e politicamente. Ele deixou a situação fugir totalmente do controle na economia, com uma situação inflacionária forte, e do ponto de vista político enfrentou crise com o Congresso. Quanto mais ele perdia o controle da situação, mais radicalizava o discurso. E, ao mesmo tempo em que radicalizava o discurso, não se preparava para o resultado disso, que era um confronto. Era um sujeito dominado por uma contradição que se tornou insolúvel. O golpe de 1964 teve apoio generalizado da classe média e de muitos segmentos que não estavam interessados em uma ditadura. Os militares chegaram ao poder no bojo de um amplo movimento de classe média que imediatamente passou a ser desprezado. Tanto que, no dia 2 de abril, houve a famosa reunião no Ministério da Guerra em que o Costa e Silva meteu o dedo no nariz do Lacerda e disse: "O senhor vá para a puta que o pariu porque quem manda aqui somos nós (militares)". O Lacerda meteu o rabo entre as pernas. Ele começou a cair na real e viu que os milicos tinham tomado o poder não para entregar à direita civil, mas para exercer o poder cada vez mais para eles. Isso fez com que grande parte da classe média que apoiou o golpe mudasse de posição.
Como ocorreu a sua virada radical do lacerdismo para a luta armada contra a ditadura?
Eu tinha 13 anos em 1964, ingressei no Colégio Aplicação, e aquilo foi um marco na minha vida. Participava do grêmio estudantil, do jornal, e durante um tempo eu fui uma liderança não de direita, porque eu era de centro, mas que, de alguma forma, se contrapunha à esquerda. Aí começamos a ser reprimidos nas nossas atividades. O grêmio foi fechado, o jornal foi censurado e, depois, fechado. Começou a haver repressão no colégio. E, por uma questão de resistência ao autoritarismo, fui me aproximando cada vez mais da esquerda, até que acabei me politizando por esse viés. Em 1968, o movimento estudantil passou a ser violentamente reprimido. Isso foi ocasionando a minha radicalização junto com uma geração de estudantes secundaristas e universitários que, depois do AI-5, acabaram se somando às organizações de guerrilha urbana. O que fez a gente se revoltar foi a falta de liberdade, de democracia, de eleições livres, mas a gente foi se radicalizando até optar por uma perspectiva que defendia também uma ditadura, que era a ditadura do proletariado. Aí entrou o contexto da Guerra Fria.
A guerrilha era somente idealismo ou também havia romantismo em pegar em armas e combater o sistema?
Tínhamos as duas coisas. É difícil de separar. Havia uma ânsia em ser herói. A nossa geração nasceu muito perto da II Guerra Mundial e tinha muito essa dimensão do heroísmo. Uma das coisas que me moveu foi realmente praticar grandes atos. Havia a opressão, que era real, e a ideia de que a opressão exige heroísmo para enfrentá-la.
Religiosos
Padre Patrick Peyton, vindo dos Estados Unidos, pregou o anticomunismo para uma multidão no centro de Porto Alegre.
Desde o princípio, a cúpula da Igreja Católica ficou ao lado dos militares no conturbado 1964. Por meio de arcebispos conservadores, como Dom Jaime de Barros Câmara, no Rio, Dom Vicente Scherer, em Porto Alegre, a instituição contribuiu para difundir o medo do comunismo. A ala progressista, contrária ao novo regime, ainda era minoritária. Só mais tarde, com o recrudescimento da violência, o combate à ditadura se tornaria prioridade.
A área em frente ao Mercado Público de Porto Alegre estava tomada. Naquele domingo, 15 de dezembro de 1963, a cidade parou. Famílias inteiras esperavam, ansiosas, para ver o padre Patrick Peyton, uma celebridade internacional.
[-imagens/foto_ilustra_22.jpg|Propagandas divulgadas em jornais da época convidando para evento em Porto Alegre com o padre Peyton.-]
Fundador da Cruzada do Rosário em Família, o irlandês radicado nos EUA acabara de percorrer o Brasil a convite da cúpula da Igreja Católica para defender os valores cristãos. Na prática, contribuiu para amplificar a paranóia anticomunista no país.
Eram 16h quando o sacerdote iniciou a pregação, em um misto de inglês e espanhol, com a chancela das principais autoridades civis, militares e eclesiásticas do Estado.
— O padre fez um chamamento para o que o povo se unisse contra o comunismo. Aquilo causou grande comoção — recorda o jornalista Índio Vargas, que trabalhava no jornal Diário de Notícias.
[-imagens/foto_ilustra_24.jpg|Jornais retrataram, em suas edições de 17 de dezembro de 1963, a visita do padre Peyton a Porto Alegre para a Marcha da Família com Deus e pela Liberdade.-]
A cobertura do evento na imprensa beirou o entusiasmo. A Última Hora classificou o ato como a "maior concentração humana que Porto Alegre já conheceu". Na avaliação de José Oscar Beozzo, especialista em história da Igreja, a mobilização foi mais do que um simples movimento em defesa da fé:
— A Cruzada está na origem das marchas da família que, em 1964, deram sustentação ao golpe. Suspeita-se de que o padre Peyton tenha recebido dinheiro da CIA.
A reação dos fiéis
[-imagens/foto_ilustra_25.jpg|Audiência do presidente Castello Branco com a Ação Democrática Feminina, no Palácio Piratini, em 13 de março de 1965.-]
O medo de uma suposta "revolução comunista" ultrapassou os limites das sacristias. Influenciadas pela Igreja, entidades lideradas por mulheres, como a Ação Democrática Feminina do Rio Grande do Sul (ADF), e por homens, como a Tradição, Família e Propriedade (TFP), passaram a exigir uma reação.
— Sempre me posicionei contra o comunismo. Portanto, teria sido incoerente se não tivesse me envolvido contra a situação vigente na época — diz Ecilda Gomes Haensel, 87 anos, uma das fundadoras da ADF.
O apoio à deposição de Jango
Em Porto Alegre, o principal representante da ala anticomunista católica foi o arcebispo Dom Vicente Scherer, que compartilhava suas ideias em um programa semanal de rádio desde 1961.
— Dom Vicente foi uma voz ativa ao denunciar a infiltração comunista e contribuiu para a desestabilização política de Jango — assinala o historiador Ianko Bett, da PUCRS.
[-imagens/foto_ilustra_26.jpg|Dom Vicente Scherer recebe, na Cúria Metropolitana, o então candidato à Presidência pela Arena, João Figueiredo.-]
A deposição do presidente teve a conivência não só do arcebispo gaúcho, mas da maior parte dos prelados brasileiros. A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) quebrou o silêncio somente um mês após o golpe, criticando as violações de direitos, que chegaram a atingir religiosos, porém, louvando a ação dos militares.
— Havia religiosos mais críticos, mas não era o sentimento predominante. No início, o clima geral era de aprovação moral aos militares, porque o comunismo significava a destruição da Igreja — resume o frei Luiz Carlos Susin, professor de Teologia da PUCRS.
As consequências pós-golpe
Muitos presbíteros seriam obrigados a rezar missas de ação de graças a cada 31 de março, para celebrar a "revolução". Reverendos identificados com o regime seguiriam colaborando para a sua consolidação. Hoje, sabe-se de casos de padres infiltrados, que denunciavam suspeitos de "subversão".
Os religiosos que passaram a confrontar a ditadura foram repreendidos. Em Porto Alegre, o caso mais emblemático é o do irmão marista Antônio Cechin, hoje com 86 anos. Preso e torturado, passou a ser evitado por antigos companheiros. Não foi o único.
O diário do general Olympio Mourão Filho, o homem que precipitou o golpe, indica a participação de um bispo gaúcho na gênese da ofensiva civil-militar de 1964. A ação começou a ser planejada três anos antes, quando Mourão comandava a 3a Divisão do Exército em Santa Maria.
O oficial relata ter se aproximado de importantes figuras da cidade, entre elas o bispo Dom Luís Victor Sartori. Definido pelo general como um "revolucionário entusiasmado", o clérigo organizou um encontro em sua casa para que Mourão expusesse as ideias conspiratórias. A reunião teve a presença de Walter Peracchi Barcelos, que seria governador em 1966, e de Ildo Meneghetti, que se reelegeria ao Piratini em 1962.
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Como os religiosos colaboraram para o golpe?
Tanto protestantes quanto católicos desempenharam um papel fundamental ao contribuir para o clima de medo em relação ao comunismo. Sem isso, os militares não teriam o respaldo que tiveram na sociedade. A colaboração foi muito grande, não só no sentido de legitimar o golpe, mas também de consolidar a ditadura. Ainda se fala muito pouco sobre isso.
O que está por trás desse silêncio?
É uma ferida aberta, em especial para a Igreja Católica, que tem uma tradição de não assumir seus erros e seu lado sombrio. Basta observar quantos séculos foram necessários para que aceitasse discutir a Inquisição. Isso precisa mudar. Os malfeitos necessitam ser revistos para que não se repitam mais.
Imprensa e intelectuais
Jornal Diário de Notícias noticia início do golpe e reproduz editorial “Basta”, do jornal Correio da Manhã, do Rio.
Se a deposição do presidente João Goulart encontrou eco entre intelectuais, artistas e movimentos culturais, não foi diferente na mídia. A grande imprensa tornou-se um dos pilares civis do golpe e celebrou a intervenção militar em editoriais virulentos. Um dos textos mais impactantes, intitulado "Basta!", foi publicado pelo jornal Correio da Manhã, do Rio, em 31 de março de 1964.Outros periódicos, como O Globo, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo seguiram a mesma linha.
Se a deposição do presidente João Goulart encontrou eco entre intelectuais, artistas e movimentos culturais, não foi diferente na mídia. A grande imprensa tornou-se um dos pilares civis do golpe e celebrou a intervenção militar em editoriais virulentos.
Um dos textos mais impactantes, intitulado "Basta!", foi publicado pelo jornal Correio da Manhã, do Rio, em 31 de março de 1964. Até então, segundo os historiadores Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes, o jornal defendera o regime democrático, recusando soluções de força. Mas, diante do acirramento da crise política, passou a exigir a destituição do presidente.
Outros periódicos, como O Globo, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo seguiram a mesma linha, como mostra o jornalista Carlos Chagas no livro A Ditadura Militar e os Golpes dentro do Golpe — A História Contada por Jornais e Jornalistas. Em todos eles, a ofensiva civil-militar é tratada como "revolução redentora". A palavra "golpe" era associada a João Goulart, tido como um potencial ditador comunista.
[-imagens/foto_ilustra_33.jpg|A revista O Cruzeiro, uma das mais populares da época, publicou edição histórica sobre o golpe com o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, na capa-]
No Rio Grande do Sul, com exceção da Última Hora, não foi diferente. Editado pela Companhia Jornalística Caldas Júnior, o jornal Folha da Tarde de 31 de março alertava para os perigos do "totalitarismo vermelho". Do mesmo conglomerado, o Correio do Povo de 1º de abril acusava o governo Jango de ter se empenhado por uma "insurreição", mascarada pelas reformas de base.
Zero Hora surgiu 34 dias depois do golpe, em 4 de maio de 1964. Ocupou o vácuo deixado pela Última Hora, fechada pelos militares por ter apoiado Jango, e surgiu como um jornal popular, ainda sem ligação com os atuais proprietários e o Grupo RBS. Em 1967, a família Sirotsky adquiriu 50% das ações e, em 1970, passou a ter controle total do empreendimento.
Na primeira edição, os responsáveis pelo periódico, cuja direção era do empresário e jornalista Ary de Carvalho, morto em 2003, definiram ZH como "independente" e "sem vínculos ou compromissos políticos". Mas deixaram claro que defenderiam "os princípios cristãos" e que apoiariam todos os que "lutam para impedir a implantação (...) de ideologias contrárias às nossas tradições democráticas".
A postura favorável ao golpe manifestada por praticamente todos os grandes jornais em 1964 não perduraria até o fim do regime. Com o recrudescimento da ditadura, a maioria reviu a posição — em especial a partir de dezembro de 1968. Naquele ano, seria promulgado o Ato Institucional nº 5 (AI-5), quando a censura, a perseguição política e a tortura atingiram o ápice no Brasil.
Os artistas e intelectuais
Nem todos os artistas e intelectuais brasileiros se opuseram ao golpe de 1964. Da lista de adesões à intervenção militar fazem parte pensadores, poetas e escritores reconhecidos em suas áreas. Confira alguns nomes:
Carlos Drummond de Andrade
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Autor de alguns dos mais belos versos produzidos no Brasil, o poeta mineiro manifestou-se explicitamente a favor da "revolução" na edição de 4 de abril de 1964 do jornal Correio da Manhã. Segundo ele, João Goulart "pediu, reclamou, impôs sua própria deposição". Ao referir-se ao golpe em seu diário pessoal, Drummond ainda registrou uma "sensação de alívio".
Gilberto Freyre
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O sociólogo notabilizado por obras como Casa Grande & Senzala "imediatamente abraçou o golpe", segundo o historiador Thomas Skidmore. Freyre era amigo do general Humberto Castello Branco, que se tornaria o primeiro presidente do regime militar, e teria sido inclusive convidado para assumir o Ministério da Educação.
Rachel de Queiroz
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Ao ser entrevistada no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1991, a escritora confirmou ter apoiado o golpe e o governo do general Humberto Castello Branco, a quem admirava. Justificou a posição por "abominar o janguismo". Em 1966, atuou como delegada do Brasil na 21ª Sessão da Assembléia Geral da ONU e, a partir de 1967, passou a integrar o Conselho Federal de Cultura.
Rubem Fonseca
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O escritor foi membro ativo do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ipês), um dos órgãos que mais contribuíram com a desestabilização de Jango. "O executivo-mor (do Ipês) é o delegado de Polícia Rubem Fonseca, exímio redator de textos que, ali, põe em prática suas habilidades de investigar tragédias ou fantasiar situações, com as quais irá transformar-se em conhecido romancista", diz trecho do livro 1964 — O Golpe, de Flávio Tavares.
Tradicionalistas
Em 1971, o Pálácio Piratini inaugurou seu Galpão Crioulo com um churrasco que tinha Médici (sendo servido na foto) como convidado de honra. A construção fora idealizada por Glaucus Saraiva no lugar de um antigo galinheiro.
No meio tradicionalista, a adesão ao movimento verde-oliva foi significativa. Ícones do movimento identificaram-se ideologicamente com o regime e mantiveram estreita relação com os militares, em uma aliança informal que perdurou durante todo o período. Enquanto os militares encontraram amparo civil no tradicionalismo, o movimento registrou crescimento e momentos de glória, como a inauguração do Galpão Crioulo do Palácio Piratini, com a presença do general-presidente Emílio Garrastazu Médici. A simbólica obra foi idealizada por Glaucus Saraiva, um dos principais pensadores do tradicionalismo.
Sentado à mesa das autoridades, degustando os melhores cortes de carne bovina servidos por um garçom pilchado, o então presidente Emílio Garrastazu Médici foi a estrela da festa de inauguração do Galpão Crioulo do Palácio Piratini, em agosto de 1971.
O episódio foi um dos pontos altos da estreita relação entre ícones do movimento tradicionalista e o regime, que se identificaram ideologicamente e formaram uma aliança informal desde o princípio do golpe, em 1964.
A ideia de construir um galpão crioulo na sede do governo gaúcho surgiu meses antes da inauguração, quando o governador Euclides Triches recebeu Médici com um jantar no Salão Negrinho do Pastoreio, também no Piratini. À época, o então chefe da Casa Civil, Victor Faccioni, lamentou a falta de um "churrasco com carne de Bagé" na celebração, em referência à terra natal de Médici.
Ficou decidido, então, que um local de preservação da cultura gaúcha deveria ser construído. Faccioni incumbiu Glaucus Saraiva — assessor especial da Casa Civil e um dos três principais ideólogos da história do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) — de preparar a obra, nos fundos do Palácio, onde antes ficava um galinheiro.
Ainda na década de 1970, Glaucus também seria decisivo na doação de uma área do Estado, na Avenida Ipiranga, em Porto Alegre, para a construção da atual sede do histórico CTG 35, o primeiro do Rio Grande do Sul.
Nesse período, o tradicionalismo já havia aflorado, junto com o regime. O número de CTGs se multiplicara, e uma série de leis havia instituído a Semana Farroupilha, em 1964, o MTG, em 1966, e o Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), em 1974. O movimento se consolidara como instituição oficial, com datas especiais no calendário anual.
Tradicionalistas que haviam apoiado e simpatizado com o golpe passaram a ocupar cargos públicos. O próprio Glaucus Saraiva, ícone do MTG, era o maior retrato da intimidade entre governo e tradicionalistas.
— Pode repercutir mal hoje, mas a verdade é que os militares prestigiaram muito o tradicionalismo. E o tradicionalismo, em 1964, não era uma ameaça. Não ia se revoltar. Esperamos para ver o que ia acontecer. Como Jango e Brizola fugiram, ficamos sem pai nem mãe. Em seguida, estávamos todos confraternizando. O Glaucus apoiava os militares desde 1964. Era o lado político e afetivo dele — conta Antonio Augusto Fagundes, que, no início dos anos 1960, junto com outros integrantes do movimento, fora ligado ao brizolismo e atuara nas colunas da Campanha da Legalidade.
[-imagens/foto_ilustra_30.jpg|Presidente do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), Rodí Pedro Borghetti, o Borghetão. No quadro, retrado de Glaucus Saraiva, simpatizante do golpe e um dos três principais ideólogos do tradicionalismo.-]
O fato de os CTGs serem muito frequentados por militares, brigadianos e donos de terras também ajudou na aproximação. Nesses setores, estavam muitos dos que se sentiam desconfortáveis com a presença de Jango no poder.
— Era muito compatível a seriedade do tradicionalismo com a rigidez do governo militar — avalia Rodí Pedro Borghetti, o Borghetão, presidente do IGTF.
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Um dos maiores críticos do MTG, o historiador Tau Golin, da Universidade de Passo Fundo (UPF), é mais enfático ao abordar o tema:
— O tradicionalismo foi a militância cultural do regime. Não há dúvida quanto a isso.
A ligação chegou a ganhar contornos sentimentais com homenagens feitas por artistas gaúchos aos líderes do regime. Exemplo disso é a canção Presidente Médici, do aclamado Teixeirinha, que cobre de elogios o homem que ficou conhecido por comandar o país no momento de maior repressão.
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Qual foi a relação do tradicionalismo com o golpe de 1964?
Como instituição, o tradicionalismo não se posicionou em 1964, mas as pessoas, sim. A grande maioria, individualmente, apoiou a revolução, que foi uma reação civil de grande amplitude. Os militares foram apenas um instrumento. Aqueles que apoiaram o Brizola e o Jango em 1961 continuaram apoiando eles depois da Legalidade, mas eram minoria.
O senhor concorda que o crescimento do tradicionalismo está diretamente ligado ao regime militar?
Em dezembro de 1964, houve um episódio que muita gente relaciona com a revolução, que foi a lei que criou a Semana Farroupilha e que nada teve a ver com o regime. Foi uma proposta de um deputado. Ildo Meneghetti se recusou a sancioná-la, mas também não a vetou. Coube à Assembleia outorgar a lei. O aumento do número de CTGs seguiu uma lógica, não mudou pela revolução. O maior momento de crescimento do MTG foi nos anos 1980, com as comemorações do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha.
Captação de imagens: Adriana Franciosi. Fotos: Adriana Franciosi, Arquivo Museu Hipólito José da Costa, Arquivo Pessoal, Arquivo Zero Hora, Reproduções das revistas O Cruzeiro, O Globo e Manchete. Reprodução dos jornais Diário de Notícias, Folha da Tarde, Zero Hora, O Globo e O Dia, Agências O Globo e Estado
Guerrilheiros envolvidos na expropriação do Banco do Brasil em Viamão são presos e apresentados à imprensa em Porto Alegre.
Resistência armada
Introdução
Se o golpe de 1964 e a ditadura tiveram apoio de amplos setores da sociedade , isso não significa que a resistência foi, de todo, sufocada. O recrudescimento do regime acirrou a luta armada no país.
[-imagens/foto_ilustra_42.jpg|Com o AI-5, a repressão se intensifica, e as prisões se multiplicam pelo Brasil.-]
Se o golpe de 1964 e a ditadura instaurada a partir dele contaram com o apoio de amplos setores da sociedade brasileira, isso não significa que a resistência foi, de todo, sufocada. O recrudescimento do regime acirrou a luta armada no país.
A repressão começou cedo. Logo após a derrocada do presidente João Goulart, os militares deflagraram a Operação Limpeza, promovendo as primeiras cassações, prisões e perseguições políticas. Inquéritos foram abertos e funcionários públicos considerados "subversivos", expurgados. Adeptos do governo deposto acabaram sendo alvo da violência e da humilhação.
Autor de As oposições à ditadura: resistência e integração, o sociólogo Marcelo Ridenti afirma que havia basicamente duas correntes na oposição: os grupos que pretendiam derrubar o regime pela guerrilha e aqueles que buscavam outros meios de fazer isso, politicamente.
Existiam desde projetos revolucionários nacionalistas, como o liderado por Leonel Brizola no exílio, até os que defendiam uma revolução pacífica, como o PCB, que seria criticado pela "moderação" e "passividade". Dessas críticas nasceram dissidências. A mais conhecida foi a Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo de guerrilha comandado por Carlos Marighella.
Com a instauração do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, e a radicalização da ditadura — que ampliou a censura e a tortura —, radicalizaram-se, também, os embates.
[-imagens/foto_ilustra_43.jpg|Capa do jornal Zero Hora de 14 de dezembro de 1968.-]
— Com o AI-5, muita gente que combatia as arbitrariedades avaliou que já não havia outra forma de agir senão pela luta armada — ressalta o historiador Enrique Serra Padrós, professor da UFRGS.
Além da ALN, destacaram-se nesse contexto de enfrentamento aos militares, que se prolongou sobretudo entre 1969 e 1974, movimentos como a Ação Popular (AP) e a Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), os Comandos de Libertação Nacional (Colina) e a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares).
Em pouco tempo, de acordo com Ridenti, "a esquerda brasileira converteu-se num mosaico de dezenas de pequenas organizações políticas". Havia pontos de discordância entre elas, mas a maioria concordava que era preciso derrotar a ditadura pelas armas.
Com isso, tornaram-se comuns nas manchetes dos jornais os ataques a bancos e empresas, que os autores classificavam como "ações de expropriação". Um destes episódios ocorreu na agência do Banco do Brasil, no dia 18 de março de 1970, em Viamão.
O dinheiro obtido nessas ações serviria para financiar a própria luta e para manter perseguidos políticos vivendo na clandestinidade. Os sequestros a agentes diplomáticos também se tornaram prática relativamente comum. Nesse caso, o objetivo era barganhar pela libertação de companheiros presos.
A reação do regime foi brutal. Milhares de pessoas foram perseguidas e torturadas nos porões da ditadura. Ao todo, restaram 214 mortos, muitos deles presos em decorrência da participação na luta armada, e 148 desaparecidos, segundo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Passados 50 anos, suas famílias seguem à espera de respostas.
As vítimas da ditadura, segundo o Movimento de Justiça e Direitos Humanos:
Senadores cassados: 8
Deputados Federais: 173
Deputados Estaduais: 160
500 mil cidadãos investigados pelos órgãos de segurança
200 mil detidos por suspeita de subversão
50 mil presos só entre março e agosto de 1964
11 mil acusados nos inquéritos das Auditorias Militares, 5 mil deles condenados, sendo 1.792 por "crimes políticos" catalogados na Lei de Segurança Nacional
10 mil torturados nos porões do DOI-Codi
6 mil apelações ao Superior Tribunal Militar (STM), que manteve as condenações em 2 mil casos
10 mil brasileiros exilados
4.862 mandatos cassados, com suspensão dos direitos políticos, de presidentes a governadores, de senadores a deputados federais e estaduais, de prefeitos a vereadores;
1.148 funcionários públicos aposentados ou demitidos
1.312 militares reformados
1.202 sindicatos sob intervenção
245 estudantes expulsos das universidades pelo Decreto 477 que proibia associação e manifestação
128 brasileiros e dois estrangeiros banidos
4 condenados à morte (sentenças depois comutadas para prisão perpétua)
707 processos políticos instaurados na Justiça Militar
49 juízes expurgados
3 ministros do Supremo afastados
Congresso Nacional fechado por três vezes
7 sete assembleias estaduais postas em recesso
366 mortos e/ou desaparecidos
censura prévia à imprensa, à cultura e às artes
Documentário
Em 1970, um grupo de sete guerrilheiros com atuação no Rio Grande do Sul decidiu organizar um ataque a uma agência do Banco do Brasil em Viamão, na Região Metropolitana. O objetivo da ação era obter recursos para financiar a luta armada e manter companheiros vivendo na clandestinidade.
O plano foi concretizado às 12h30min do dia 18 de março daquele ano, mas os envolvidos deixaram o local sem conseguir abrir o cofre, levando apenas a quantia que estava no caixa. Um deles - o militante Gustavo Buarque Schüller - acabou preso dias depois.
Para tentar livrá-lo do cárcere, foi organizada, em abril de 1970, a tentativa de sequestro ao cônsul norte-americano em Porto Alegre, Curtis Cutter. A intenção era trocar o cônsul pela liberdade de Gustavo e de outros militantes. Não deu certo - Cutter conseguiu escapar.
O fracasso acabou levando à prisão de todos os guerrilheiros. Além disso, provocou a queda das duas principais organizações em atividade no Estado: a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Confira os detalhes dessa história no webdocumentário A Resistência Armada.
Personagens
Conheça quem foram os principais protagonistas da ação de expropriação da agência do Banco do Brasil, em Viamão, em março de 1970.Ignez Maria Serpa Ramminger
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Estudante de Veterinária na UFRGS, Ignez decidiu entrar para a organização Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) para lutar contra a ditadura. Tornou-se guerrilheira, sob o codinome de Martinha. Foi fundamental na ação de expropriação ao Banco do Brasil em Viamão, em março de 1970. Os jornais da época disseram que uma "bela loira" havia participado do "assalto". Era Ignez, que usara uma peruca sobre os cabelos curtos que exibia no início da década de 70. Hoje, é servidora pública em Porto Alegre e militante dos movimentos sociais. Jamais abandonou a política. Ajudou a fundar o PT na década de 80, partido em que segue atuando.
Edmur Péricles de Camargo
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Conhecido pelo apelido de Gauchão, atuava em São Paulo como um dos guerrilheiros mais próximos de Carlos Marighella, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN). Depois de desentendimentos com Marighella, foi para Porto Alegre, onde criou a sua própria organização, o M3G, sigla que representava uma homenagem aos líderes Mao, Marx, Marighella e Guevara. Foi o responsável por introduzir as expropriações a bancos na Capital gaúcha.
Depois de ser detido, foi enviado ao Chile, banido do país, junto com outros 69 presos políticos, em troca da libertação do embaixador suíço no Brasil, Giovanni Enrico Bucher, que havia sido sequestrado pela VPR. Acabou indo à Argentina para fazer uma cirurgia e foi preso antes mesmo de descer do avião. Até hoje seu corpo nunca apareceu. Desconfia-se de que ele tinha sido morto e jogado ao mar pela polícia do Brasil.
Gustavo Buarque Schüller
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Militante da VAR-Palmares, era chamado pelos companheiros de "Bicho" pelo vagar da fala e pelo estilo riponga. Na expropriação ao Banco do Brasil, em Viamão, se disfarçou de sargento do Exército para enganar o soldado que fazia a guarda do local. Detido pela polícia, foi enviado ao Chile, banido do país, junto com outros 69 presos políticos em troca da libertação do embaixador suíço no Brasil, Giovanni Enrico Bucher, que havia sido sequestrado pela VPR. Após o golpe de Augusto Pinochet, exilou-se na França e, com a anistia, voltou ao Brasil. Passou um período em Porto Alegre e, depois, voltou ao Rio de Janeiro, sua terra natal, onde se suicidou ao pular de um prédio em 1985.
Maeth Domingos Boff
Ex-frei capuchinho, era do comando de operações da VAR-Palmares no Rio Grande do Sul. Após a ação do Banco do Brasil, foi para São Paulo, onde ficou na clandestinidade. Em seguida, mudou-se para o Chile. Acabou preso em 1973, com o golpe militar chileno, e ficou encarcerado em um navio. Foi torturado por agentes brasileiros, em um indício de atividade da Operação Condor. Depois de retomar a liberdade, viveu na Holanda por anos. Hoje mora na Serra gaúcha. É o único do grupo que fez a ação de expropriação em Viamão que, junto com Ignez Maria Serpa Ramminger, ainda está vivo.
Paulo Telles Franke
Era membro do M3G (Mao, Marx, Marighella e Guevara) e fazia parte da gama de contatos de Edmur Péricles de Camargo. Foi preso ao buscar o Corcel branco, usado na ação do Banco do Brasil, em uma garagem próxima ao DOPS, em Porto Alegre. Também foi banido para o Chile.
Francisco Martinez
Espanhol de nascimento, pertencia à Var-Palmares, morava em Porto Alegre e era estudante. Seu pai era um comunista foragido da Espanha e vivia na Argentina à época. Martinez foi preso e torturado no DOPS, em Porto Alegre. Morreu nos anos 80.
João Batista Ritta
Era do M3G, o grupo de Edmur Péricles de Camargo. Detido, foi enviado ao Chile, banido do país, junto com outros 69 presos políticos, em troca da libertação do embaixador suíço no Brasil, Giovanni Enrico Bucher, que havia sido sequestrado pela VPR. Após o golpe de Augusto Pinochet, refugiou-se na embaixada da Argentina. Foi enviado a Buenos Aires, onde aguardava salvo-conduto da ONU para ir à França, mas acabou preso em dezembro de 1973, junto com o major Joaquim Pires Cerveira, por policiais brasileiros, provavelmente comandados pelo delegado Sérgio Fleury. Ambos foram vistos por alguns presos políticos no DOI-CODI do Rio de Janeiro, quando chegavam trazidos por uma ambulância. Estavam amarrados juntos, em posição fetal, com ferimentos na cabeça.
Ângelo Cardoso da Silva
Ex-taxista, militante do grupo M3G (Marx, Mao, Marighella e Guevara), era motorista pessoal de Edmur Péricles de Camargo. Na ação de Viamão, deixou os carros usados na fuga em um local previamente combinado. Foi preso em abril de 1970 e, no dia 22 daquele mês, aos 26 anos, foi encontrado "enforcado" na sua cela no Presídio Central de Porto Alegre. À semelhança do que ocorreria com o jornalista Vladimir Herzog em 1975, sua morte foi considerada "suicídio" pelo governo militar _ mas ele estava ajoelhado no chão, com um lençol amarrado ao pescoço, o que inviabilizaria um enforcamento. Por conta disso, passou a ser conhecido como o "Herzog gaúcho".
Índio Vargas
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Jornalista, também era contato do ex-governador Leonel Brizola, que estava no exílio. Em uma das visitas que fez a Brizola no Uruguai, ele participou de um breve encontro com Carlos Marighella, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN) e um dos principais guerrilheiros do país junto com Carlos Lamarca. Marighella pediu que Índio recebesse e ajudasse um de seus companheiros a montar uma nova organização em Porto Alegre. Tempo depois, Edmur Péricles de Camargo bateu à porta de Índio pedindo ajuda para fazer contatos. A partir deste momento, Edmur criou o M3G e, em parceria com outros grupos, como VAR-Palmares e VPR, iniciou as expropriações de bancos no Rio Grande do Sul. Convidado, Índio não participou do ataque ao Banco do Brasil de Viamão. Em outra ação na década de 70, desta vez em Cachoeirinha, Índio teve participação decisiva e, na fuga, ele e os companheiros tiveram de tomar um ônibus, mesmo portando o dinheiro roubado, porque o carro do grupo havia estragado.
Galeria de fotos
Veja imagens do ataque ao Banco do Brasil em Viamão, em 1970.
[-imagens/galeria_1.jpg|Veículo usado no ataque ao Banco do Brasil é localizado por policiais militares-]
[-imagens/galeria_2.jpg|Ação contra a agência do Banco do Brasil, no município de Viamão, em março de 1970-]
[-imagens/galeria_3.jpg|Ignez, a Martinha, foi uma das personagens fundamentais na ação de expropriação ao banco-]
[-imagens/galeria_4.jpg|Membros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e da VAR-Palmares são presos e apresentados à imprensa-]
[-imagens/galeria_5.jpg|O secretário da Segurança Pública apresentou armas e material considerado subversivo, apreendidos com os integrantes da VAR e da VAR-Palmares-]
[-imagens/galeria_6.jpg|Perito examina pistas da ação no Banco do Brasil-]
Jornais da época
Confira o que os jornais dos anos 70 disseram sobre o ataque ao Banco do Brasil em Viamão.
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Captação de imagens: Adriana Franciosi. Fotos: Adriana Franciosi, Arquivo Museu Hipólito José da Costa, Arquivo Pessoal, Arquivo Zero Hora, Reproduções das revistas O Cruzeiro, O Globo e Manchete. Reprodução dos jornais Diário de Notícias, Folha da Tarde, Zero Hora, O Globo e O Dia, Agências O Globo e Estado
Reportagem e textos: Carlos Rollsing, José Luís Costa e Juliana Bublitz
Pesquisa de fotos: Adriana Franciosi, Letícia Coimbra e Marco Vencato
Edição de vídeo: Luan Ott (com ilustrações de Gilmar Fraga)
Design e programação: Michel Fontes
Edição online: Leandro Becker
Coordenação: Dione Kuhn