Ao Pé da Letra
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Nei Lisboa - Verão em Calcutá
"A ditadura tornou para o nosso imaginário a metáfora uma coisa indispensável, mais do que bonita e poética."
Veja Nei Lisboa comentando o contexto de surgimento e as referências de Verão em Calcutá
Nei Lisboa registrou Verão em Calcutá no LP Carecas da Jamaica, de 1987. Cifrada como uma canção de protesto em plena ditadura militar, a canção era, na realidade, uma reação insatisfeita à então recente abertura política do país - e da frustração de Nei com o governo de José Sarney (“O cara que era presidente da Arena”). A mensagem mais evidente, no entanto, é o diagnóstico que Nei emitia sobre a própria música brasileira, então apontada como uma “lambreta de segunda mão”. Se a narrativa da canção remete a um Brasil pretérito, a música ainda é uma das mais importantes na produção do bardo do Bom Fim.
Na esteira desse new old rock 'n roll
E a velha limusine da canção
Virou lambreta de segunda mão
Chorando sobre uísque derramado
Rescaldos de uma mágoa a la Vandré
Que tanto mais feroz, tanto mais passa
Ao som dos novos reis do iê-iê-iê
O tempo não tem dó de quem disfarça
A farsa das ribaltas
Fiquei ali parado, assim, pensando
O que é que o poste tinha pra dizer
Da noite luminosa, dos amantes
Do jeito da saudade amanhecer
Na aura levitan dos viajantes
Nos olhos de um profeta sem lugar
Vendendo histórias pro jantar
Come on, baby, maybe, vamos passar
Um bom verão em Calcutá
Come on, baby, maybe
Tudo vai dar
Num bom verão em Calcutá
Vamos casar por lá
A vaca foi pro brejo e atolou
Na esteira desse new old rock 'n roll
E a velha limusine da canção
Virou lambreta de segunda mão
Rebeldes recatados do futuro
E estrelas de um passado avangardê
Bizarras novas caras de um Brasil pós-guerra
Não sei se diretamente, mas pode ser (a Gal Costa), a grande vaca da música brasileira, né.
A música começa falando de música popular. A minha geração, que nos anos 1970 muito curtiu a música brasileira, vinha de uma adoração por ídolos irreverentes, da contracultura, da tropicália, que incluía a Gal Costa nua na capa de um disco. E na época muita gente não perdoava a Gal ter se tornado uma senhora cantando bolero, e assim como ela, outros tantos. Hoje minha visão é outra. Na época, talvez, ali onde tivesse a vaca foi pro brejo e atolou na esteira desse new old rock ‘n roll, eu estivesse fazendo uma dupla crítica: à música brasileira, que já não respondia aos anseios e a uma estética de liberdade, de questionamento que a juventude sempre tem; e a um rock ‘n roll que se pretendia esse lugar, mas que de novo também não tinha nada.
Isso fez parte dos meus tenros 11, 12, 13 anos. A gente escutava muito Chico Buarque, e questionava o Caetano Veloso. Lá nos anos 1960, minha família, meus irmãos, eram mais engajados. (Ouvíamos) o Vandré, o Milton Nascimento. Mas quando passei dos 15 anos, eu já estava me rebelando contra isso, ao contrário do caminho que muita gente faz, de ir pro movimento estudantil para se rebelar contra o conservadorismo em casa, o meu foi um pouco ao inverso, eu tive que aderir um pouco à esquerda festiva para questionar uma tradição que em casa já era libertária, engajada etc.
Essa frase faz referência a uma situação de perplexidade com relação a tudo aquilo que me parecia fora de lugar, e eu, mesmo não sabendo onde me posicionar, nada me satisfazia por inteiro. E esse Brasil é o caos. Dentro disso, o que fazer? A música não responde: ironiza, brinca, “vamos passar um verão em Calcutá”.
Ali onde fala na “aura levitan dos viajantes”, que não encaixava na aura dos viajantes levitando e tal, me veio a imagem do Claudio Levitan, que é um personagem maravilhoso, muito querido, e sempre achei ele com essa aura, tem ideias fantásticas, viajantes, e é muito doce no trato, no falar.
A BR-101 era mais do que a estrada pra praia, era até o Nordeste. Fui três vezes de carona para a Bahia nos anos 1970. Era a 101 dos viajantes, muito loucos, os hippies. Hoje a gente pensa na duplicação aqui para Florianópolis. Muita loucura não passava aqui de Araranguá também, mas enquanto signo, é diferente do que se pode pensar hoje
O baby fazia parte do deboche com música brasileira, uma brincadeira com os refrães, "oh, baby, baby". Sempre tem algum "oh baby" tocando em rádio e tal.
A letra dela é como pintar esse quadro caótico todo e contraponto com um refrão debochado, embora muitas vezes não tenha passado isso para as pessoas, que cantarolavam aquilo como uma música delicada e simpática: "vamos passar um bom verão", mas é em Calcutá, como é que vamos passar um bom verão em Calcutá, que nem mar tem? Era uma coisa um pouco cifrada demais, um tipo de metáfora que vinha lá do tempo da ditadura, numa tentativa de falar explicitamente do Rio de Janeiro, como uma representação do Brasil inteiro.
Dendê, do dendê baiano. Pensando hoje, já naquela época não sei a que informática eu me referia. Em 1986 já vivíamos algo do que veio depois com tanta força. E o dendê, provavelmente já se vivia um pouco do boom do axé baiano. A Bahia nunca deixou de estar na pauta de música popular brasileira, mesmo naquela época de boom do rock. Eu tinha vários colegas de gravadora que eram do axé.