ZH acompanhou a rotina de estudos de 11 agricultores com idades entre 47 e 72 anos que participaram de um programa estadual de alfabetização de moradores da zona rural. Não se trata de um grupo qualquer. Osmarina, Valdereza e companhia vivem num distrito localizado nas proximidades da Lagoa dos Patos, no caminho à zona sul do Estado, área do primeiro assentamento de agricultores sem-terra do Brasil.
"A melhor parte do dia"

São 18h40min quando o sol finalmente desaparece no Banhado do Colégio, localizado a 15 quilômetros do centro de Camaquã. O agricultor Ricardo, 57 anos, veste um segundo casaco para enfrentar o frio de 5ºC, potencializado pelo vento que sopra das lavouras de arroz e soja que cercam o distrito de menos de mil habitantes. Ao lado da irmã, Maria Glorinha, 58, caminha pelo chão embarrado e ainda umedecido da chuva do dia anterior. Mesmo com a baixa temperatura, o casal de irmãos sorri e mostra disposição no trajeto de 200 metros até o Clube de Mães.

– É a melhor parte do meu dia: ir à aula – conta Glorinha, animada.

Já nos primeiros passos, os dois encontram os vizinhos Sérgio, 60, e Jussara, 58. Em menos de cinco minutos, os quatro chegam à sala de aula, onde se unem aos outros oito colegas para esperar pela professora Ana Maria, que aparece minutos depois carregando duas sacolas, uma com pães, outra com frios e bolachas. É o lanche da sua “gurizada” no recreio.

Os 12 alunos formam uma das centenas de turmas do programa de alfabetização de moradores da zona rural, criado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar). Talvez seja a mais simbólica de todas. Os estudantes, que têm entre 47 e 72 anos, são descendentes dos sem-terra beneficiados pela primeira reforma agrária do Brasil. Muitos deles estavam no grupo de 2 mil pessoas que, na década de 1960, invadiu o local sob o comando do agricultor Epaminondas Silveira e do padre Léo Schneider.

A bordo de carroças, cavalos e charretes, os colonos chegaram ao Banhado em janeiro de 1962. Depois de cinco meses de acampamento, o então governador gaúcho Leonel Brizola enfrentou os fazendeiros, apoiados pelos militares, para garantir às famílias que viviam lá um pedaço de terra. A briga foi dura. O Banhado é considerado um dos lugares mais férteis do Rio Grande do Sul para a agricultura, razão pela qual seus proprietários não aceitavam negociar e, mais do que isso, exigiam a intervenção do Exército. Brizola e os acampados venceram a disputa: o pedetista decretou que a área de 20 mil hectares era de utilidade pública e distribuiu os lotes para as famílias.

Na época, os alunos da professora Ana eram crianças e tinham dificuldades para estudar no colégio que ficava nas cercanias do acampamento.

– Desde pequena, tinha que ajudar os meus pais. Era difícil estudar. A maioria não conseguia ficar muito tempo indo nas aulas – conta Jessi, 56 anos.

Além das limitações impostas pela falta de estrutura, os filhos dos acampados eram afetados por aspectos culturais inerentes à vida no campo, como as convicções de alguns pais de que estudar era algo supérfluo. Naquele tempo, as meninas tinham autorização para frequentar as aulas até a quarta série. Para dar sequência ao aprendizado precisavam ir a outro colégio, que ficava em Camaquã. Andar de ônibus? Nem pensar.

– Meu pai dizia: filha minha não vai andar por aí sozinha. Eu chorava. Dizia: “Pai, me deixa ir, por favor, deixa... Mas ele não aceitava – lembra Catarina, 51.

Os meninos até podiam investir nos estudos, mas não queriam. Preferiam acompanhar os pais na lavoura desde cedo. A combinação entre as dificuldades para estudar e a cultura dos acampamentos resultou em um distrito com poucas pessoas totalmente alfabetizadas. E uma massa de semianalfabetos.

Antes do início das aulas, em março, Ana Maria bate de porta em porta tentando convencer os moradores a participar do programa. Ao longo dos últimos anos, alfabetizou dezenas de senhores e senhoras que já haviam descartado voltar a estudar depois de atingirem a terceira idade.

O retorno de uma pessoa de 60 anos à sala de aula exige do professor uma didática diferente da que é empregada a crianças. Mas não tão diferente assim. Nas paredes do clube de mães do Banhado, as datas como o Dia dos Pais e o Dia do Trabalho são lembradas com cartazes. A turma canta músicas para memorizar fonemas e é fiscalizada para manter capricho nos cadernos nos quais anotam as lições.

Alguns alunos gostam tanto das aulas que repetem o curso, como as donas de casa Noeli e Maria. Os estudantes têm objetivos variados. Alguns deles, como Osmarina e a doméstica Valdereza, querem apenas a companhia de amigos e amigas. Outros pretendem tirar a carteira de motorista, estender os estudos para cursos técnicos e fazer da alfabetização o início de uma nova vida. A dona de casa Sueli resume:

– Não saber ler é como ser cego. Estamos aqui para conseguir enxergar.

Família, de novo

Em uma manhã chuvosa de setembro de 1956, Maria Glorinha, à época com 11 anos, brincava na casa dos tios onde morava, em São Leopoldo, quando ouviu o barulho de uma charrete se aproximando. A menina foi até a rua embarrada e viu, sem acreditar, que quem guiava a carroça era a mãe que lhe abandonara 10 anos antes.

– Eu não sabia como ela era, mas a reconheci naquela mesma hora – conta.

A mãe, Ilma, tinha doado os filhos, Glorinha e Ricardo, para outras pessoas os criarem. Ela e o marido alcoólatra não tinham dinheiro nem para alimentá-los.

– Voltei para te buscar, minha filha – falou à guria, emocionada pelo reencontro.

Ilma já estava um tantinho melhor financeiramente e tinha um novo marido. O casal colocou a menina na charrete e se mudou para Capelinha de Santo Antônio, no interior de Camaquã. Hoje com 58 anos, Glorinha se lembra do episódio como o momento mais marcante de sua vida. Mas faz uma ressalva:

– Também queria que eles buscassem meu irmão.

Ela se refere a Ricardo, na época do abandono um bebê de colo. Ele foi entregue para ser criado por um dos padrinhos. Por falta de condições financeiras, Ilma acabou optando por apenas um dos dois filhos.

– Já dormi até em buraco. Pensei em me matar – conta Ricardo, o Lilito, como é chamado, hoje com 57 anos.

Antes de completar 20, ele deixou a casa dos pais adotivos e “caiu no mundo”. Trabalhou em lavouras de soja e arroz no Banhado do Colégio e em Santa Vitória do Palmar, onde era castigado pelo frio.

– Era horrível, tinha que me encolher todo para dormir em uma cama de palha.

Glorinha e Ricardo se reencontraram em 2010, quando um sobrinho deles que trabalha na Brigada Militar conseguiu localizá-lo via internet. Ele estava em Santa Vitória do Palmar. Sem dinheiro para a passagem de ônibus, Lilito recorreu a um amigo com deficiência visual (que tem passe livre em todo o território do Rio Grande do Sul) para chegar ao Banhado do Colégio. Lilito embarcou como seu acompanhante e pôde reencontrar a família que se reunia para o aniversário de uma cunhada. Depois disso, passou a morar com Glorinha.



Aos poucos, os irmãos estão conseguindo superar o passado distante – frequentando juntos o curso do Senar, por exemplo. Nos meses em que ZH acompanhou a turma do Banhado, Lilito provocou uma revolução no terreno onde mora com a irmã. Antes, o espaço era ocupado por uma casa sem pintura e repleta de goteiras, além de meia-dúzia de pés de milho. Hoje, além da plantação, há uma horta e um galinheiro.

A oportunidade de frequentar as aulas fez com que os irmãos pudessem cultivar amizades, superando as dificuldades advindas do comportamento introspectivo.

– Eles eram muito tímidos, e isso prejudica o aprendizado. Com o tempo, já estão mais socializados e com um desempenho ótimo, lendo e escrevendo bem – atesta a professora Ana Maria.

A timidez de Ricardo era tanta que ele não tinha coragem de pedir a algum dos vários proprietários de tratores do vilarejo uma máquina para passar em seu terreno e aumentar a área de plantação. Em outubro, finalmente buscou ajuda e prepara o espaço para poder plantar milho, abóbora, beterraba e mandioca. Além do trator, Ricardo conseguiu um emprego para trabalhar em uma lavoura.

– Ganho R$ 50 por dia. Vou transformar tudo aqui. Se vocês voltarem no ano que vem, vão ver a casa ajeitada, pintada, o pátio com piso e tudo o que tem direito. Eu sempre disse para a minha irmã que um dia ela vai ver quem eu sou de verdade – diz.

Glorinha é só elogios ao irmão:

– Já passei muito trabalho nesta vida. Agora, com estudo e meu irmão aqui do meu lado cuidando da nossa casinha, estou no paraíso.

O reencontro e a possibilidade de estudar mudou a vida de ambos. Tanto que, desta vez, podendo decidir o próprio destino, garantem que não vão mais se separar.



Dona de casa e compositora

Inseparáveis, as vizinhas Noeli e Maria dividem um sonho: tirar a carteira de habilitação. O objetivo de ambas é ajudar os maridos no trabalho. Noeli, 47 anos, já auxilia Paulo a consertar tratores e ceifas. A dona de casa é a caçula da turma, e descobriu durante as aulas que tem uma veia de compositora. Noeli escreveu uma música na qual externa sua adoração ao curso.

“É no Alfa que vais encontrar/ a alegria de um recomeço (...) No final talvez até diga:/ aprendi muito mais do que mereço”, diz uma estrofe.

– A música resume tudo o que as aulas representam para mim – explica.

A exemplo do que ocorreu com várias colegas, Noeli parou de estudar na infância porque o pai não a deixava ir às aulas. Agora é o contrário: Antônio, que está com 83 anos, a incentiva a ir às aulas.

Nos últimos tempos, ela tem se dedicado a cuidar do pai, que, em outubro, teve uma trombose e precisou amputar uma perna. A doença dele vai adiar temporariamente a ideia da dona de casa de fazer o curso de formação de condutores, mas Noeli não tem pressa. Até porque Maria Donay, 53 anos, vai esperar a amiga para elas se matricularem juntas na autoescola.



Além da carteira de motorista, as duas querem entrar em uma turma da Educação de Jovens e Adultos (EJA).

– O estudo fez muita falta na minha vida. Eu sempre gostei de ficar em volta dos cadernos, mas não tinha muitas oportunidades – diz Maria.

Hoje, a dona de casa usa o exemplo contrário dos pais e cobra de filhos e netos para que estudem. Um de seus filhos, inclusive, virou professor de Biologia. Maria tem sempre a companhia da neta Letícia nas aulas. A menina, de 5 anos, fica desenhando enquanto a avó estuda.

– É a minha mascote – brinca.



"Tem que ter estudo"

A veterana da turma do Banhado do Colégio é a agricultora Osmarina, 72 anos. Com semblante sisudo e olhar desconfiado, à primeira vista ela parece mal humorada. Que nada. Poucos minutos bastam para perceber que dona Osmarina é a colega mais querida da turma do Banhado. Sua chegada à sala de aula, em uma bicicleta com o apoio de duas rodinhas laterais, é saudada aos gritos pelos estudantes.

– Olha a dona Osmarina! – comemora Noeli.

A presença dela serve como estímulo para os mais jovens. A agricultora decidiu frequentar as aulas após muita insistência das amigas, que queriam a sua companhia. Aos 72 anos, não fala em “grandes projetos” para colocar em prática o aprendizado – cita a possibilidade de ajudar os colegas.

– Hoje em dia, a pessoa tem que ter estudo. Até quem quer trabalhar no campo precisa ter estudo, porque não é fácil lidar com essas máquinas novas – explica.



Osmarina passou a infância em São Braz, perto da localidade de Chuvisca. Para estudar, precisava caminhar uma longa distância calçando apenas chinelos. Quando chovia, carregava uma sacola com outra muda de roupas. É que atravessar um banhado nas proximidades do colégio deixava as vestimentas sem condições de uso.

– Eu precisava caminhar até com a água na altura da cintura – relembra.

Aos 18 anos, já casada com João Dinarte, Osmarina havia desistido dos estudos. Ela foi uma das beneficiadas diretas pela reforma agrária. Passou a dedicar a vida à lida na lavoura. Junto com o marido, plantou soja, milho, feijão e arroz.

– A gente passava muito trabalho. Começamos a morar aqui em uma casinha de madeira. Os bichos comiam tudo o que a gente plantava – lembra.

Mesmo com os problemas enfrentados, Osmarina é apaixonada pelo Banhado do Colégio:

– Esta terra que nós ganhamos não tem igual. Qualquer coisa que a gente planta, colhe.

Viúva há 12 anos, a agricultora tem seis filhos e 12 netos, mas mora sozinha na casa construída com o marido. Prefere reunir a família nos churrascos de domingo e, durante a semana, dedica-se à horta plantada e cuidada por ela em seu terreno.

A admiração e o respeito dos colegas por Osmarina resultou em uma das estrofes da música que Noeli escreveu sobre o curso, que simboliza o quanto a senhora de 72 anos inspira os alunos:

“Siga esse exemplo na vida, não lamente que ainda dá tempo.”



O amor de Sérgio por Jussara

Sérgio, 59 anos, diz que sua presença no programa de alfabetização tem uma razão: a namorada Jussara, 57. Sentado na última fileira de classes, o homem simples de cabelos brancos precisa ser alertado pela professora para prestar atenção na aula. Está distraído, fitando a amada sentada à sua frente. No início do ano, o olhar de Sérgio carregava preocupação. A turma inteira só falava da separação do casal. Os colegas temiam que um afastamento dos dois pudesse prejudicar Sérgio nas aulas. Mas o rompimento durou poucas semanas.

Jussara mudou a vida de Sérgio quando os dois se conheceram, em 2007, durante o aniversário de Camaquã.

– Tinha um bolo grande, de 15 metros, aí eu fui lá comer, né? Cheguei e dei de cara com Jussara. Vi ela ali, criei coragem e fui falar – conta ele, que, no entanto, prefere não detalhar qual foi a cantada que usou.

Depois de alguns meses de namoro, Sérgio, que morava em um casebre em Camaquã, passou a viver com Jussara em sua casa no Banhado do Colégio. No ano passado, ela, que já sabia ler e escrever, arrastou o companheiro, analfabeto, para as aulas.

– Queria que ele soubesse, pelo menos, escrever o nome – ela justifica.

Nervoso, Sérgio não sabia nem como segurar o lápis nos primeiros dias. Foi outro que teve de superar a timidez a restringir sua participação nas aulas.

– Eu tinha vergonha, muita vergonha de perguntar as coisas – explica, apertando as duas mãos.

Com o decorrer das aulas, Sérgio se convenceu de que sua vida poderia ter sido diferente se tivesse estudado. Em vez de passar os dias preparando amaciante para vender na vizinhança, diz, “poderia ter investido em uma carreira profissional”.

– Mas a vida quis assim, né?



Em um primeiro momento, Sérgio queria usar o que aprenderia no curso para fazer a carteira de motorista e trabalhar. Durante o ano, desistiu da ideia. Quer se aposentar por invalidez, já que sofre de epilepsia. Depois de oito meses de curso, conclui:

– É horrível não saber ler. Se tem uma porta com uma placa escrito “perigo”, quem não sabe ler entra, porque não sabe o que diz ali.

Determinado, Sérgio já consegue ler boa parte das palavras. E, para alegria de Jussara, aprendeu a escrever o próprio nome.

"Vamos lá, a gente vai se divertir"

Prostrado em uma rede, o agricultor aposentado Geime esconde os olhos com a aba de um boné azul enquanto se embala com a cuia do chimarrão nas mãos. A poucos passos dele, sua mulher, Valdereza, atira milho para as galinhas no pátio e elogia a professora Ana Maria, que a buscou em casa para que voltasse a frequentar as aulas que abandonou no ano passado.

– Não aguentei o frio, a chuva... Mas, este ano, a professora veio aqui me chamar. As gurias me disseram “Vamos lá, a gente vai se divertir”, e me convenceram – conta Valdereza, 58 anos.

Geime, 62, torce o nariz e balança a cabeça negativamente. Fala que tanto ele quanto ela não têm mais idade para estudar. O comportamento do agricultor é carregado de conceitos que, aos poucos, têm sido derrubados pelas mudanças culturais na zona rural.

O superintendente do Senar, Gilmar Tietböhl, reforça que a visão que os homens do campo têm das mulheres ainda é extremamente machista e oprime quem busca algo diferente, como as que voltam a frequentar as aulas.

– O homem da zona rural tende a enxergar a mulher como aquela dona de casa tradicional, que ajuda na lavoura, cuida dos filhos e lida com os afazeres domésticos durante o dia. Depois, à noite, muitas vezes o homem prefere ir para um bar a fazer companhia à esposa. Isso torna as mulheres muito solitárias – explica.

De fato, Valdereza foi às aulas para, acima de tudo, ter a companhia das amigas, afinal, tem bom domínio sobre a escrita e a leitura. Mesmo com uma rotina pesada – diariamente, sobe em sua inseparável bicicleta e pedala por 10 quilômetros para chegar à casa da sua patroa, onde trabalha como empregada doméstica –, decidiu concluir o curso.



No dia da formatura de sua turma, Valdereza não teve a companhia do marido na cerimônia. Quando ela caminhava na rua principal do Banhado em direção à parada de ônibus, ao fim da tarde, para se dirigir à cerimônia, cruzou por Geime, que estava em um bar. Conversaram rapidamente e ela embarcou no coletivo.

Quando o seu nome foi chamado, tímida e introspectiva nas aulas, Valdereza foi a mais animada. Ergueu os braços e gritou alto, em um gesto que simbolizou uma grande vitória pessoal.

Um sonho: ser enfermeira

Jessi, 56 anos, carrega em seu DNA a necessidade de tomar conta dos outros. Se alguém procura por ela em casa e não a encontra, os vizinhos sabem de cor e salteado onde pode encontrá-la: cuidando do pai, ou dos filhos, ou dos netos, ou de algum amigo. Entrar no curso de alfabetização foi uma forma de, “pelo menos uma vez na vida”, ela afirma, fazer algo para si própria:

– Sonho em fazer um curso de enfermagem.

Enquanto aprimora os estudos para ter condições de se matricular no curso técnico, Jessi trabalha como camareira em um hotel de Camaquã. E, involuntariamente, ensaia a carreira que pretende seguir ao cuidar do pai, Giordino, que tem problemas cardíacos e precisa de assistência diária. Na parede da sala de aula, em um trabalho em homenagem aos pais, Jessi escreveu a seguinte mensagem: “Pai, ti amo. Você é uma pessoa guerreira”.

Quando criança, Jessi vivia o dilema entre atender a mãe e dedicar-se aos estudos.

– Eu tinha que ajudar o pai na lavoura e a mãe em casa. Foi muito difícil. Tive que parar e agora estou voltando. Minha vontade era de ter me formado muitos anos atrás. Mas nunca é tarde.

Seu cuidado com a família se estende aos vizinhos e a amigos do Banhado. É comum que ela seja vista na casa de Catarina, que é sua vizinha de porta, após uma jornada de 10 horas de trabalho. Jessi a auxilia com os temas de casa, e ainda deixa o jantar pronto para os filhos e netos antes de ir à aula.

O zelo da camareira com os amigos é também uma forma de recompensá-los pelo auxílio dado quando, aos 33 anos, ficou viúva, grávida de um filho e com outro para criar. O então marido de Jessi, Luís Carlos, trabalhava em uma lavoura de arroz quando sofreu um acidente e foi esmagado por um trator. Para conseguir comprar comida para as crianças, tinha de trabalhar e deixar os pequenos aos cuidados dos amigos. Os moradores do Banhado levavam cestas básicas para a família, além de roupas para as crianças e remédios.

– O que esse povo fez por mim eu nunca vou esquecer – conta a camareira, emocionada.

O próximo passo para dar sequência ao seu sonho de ser enfermeira será tomado no início de 2014. Jessi vai se matricular em uma turma da Educação de Jovens e Adultos para, depois, ingressar no curso técnico.



"Estudo ninguém rouba da gente"

Vendedora de perfumes e cosméticos, Sueli, 65 anos, identificava os produtos pelas fotos quando negociava com as suas clientes. Depois de alguns meses de aula, já lê todas as especificações das suas mercadorias.

– Como as coisas ficam mais fáceis – suspira.

Descendente de uma família de sem-terra, Sueli passou a infância em acampamentos. O último deles deu origem ao Banhado do Colégio. Na época, ela e os irmãos pequenos trocaram os materiais escolares por enxadas para ajudar os pais na lavoura.

– Cada um tinha a sua enxadinha. Hoje, as máquinas fazem tudo para a gente. Antes, era no braço – lembra.

As máquinas a que Sueli se refere estão espalhadas por todo o terreno que herdou dos pais no Banhado. Ainda quando estava no acampamento, conheceu o futuro marido, Milton, hoje com 73 anos. O casal guarda equipamentos antigos, como um semeador manual, para não se esquecer de como o trabalho era difícil naquela época.

– Olha, tem vezes em que a gente se queixa de alguma coisa, mas quando lembro de como era antigamente... Agora tem até ar-condicionado nas máquinas – vibra.



Sueli afirma, convicta, que ler e escrever era a única coisa que faltava em sua vida. Mãe de uma pedagoga e um agricultor, avó de um arquiteto e um fisioterapeuta, ela sorri ao contar que a família fiscaliza seu estudo.

– Os meus netos ficam faceiros. Dizem: “Vó, que legal que tu está no colégio”. E vêm olhar os meus cadernos.

Uma das suas inspirações para frequentar as aulas é a primeira-dama de Camaquã, Jussara Machado, esposa de João Carlos Machado. Depois dos 40 anos, Jussara concluiu o curso de Direito e hoje exerce a profissão. Sueli diz não ter “a mesma pretensão”, mas conseguiu atingir o objetivo inicial e já está lendo e escrevendo. No ano que vem, tentará mais uma vez convencer o marido, que é analfabeto, a ir com ela às aulas. Milton dá de ombros e diz que “está velho”. Sueli discorda:

– Saber ler é a melhor coisa que existe no mundo. Ninguém tira isso da gente. Eu digo para os meus filhos: deem estudo para os filhos de vocês. Estudo ninguém rouba, ninguém tira da gente.

Mesmo que não dê sequência aos estudos, Sueli quer aproveitar o que aprendeu para vender mais perfumes e cosméticos. E pretende inspirar os filhos e netos a não deixarem os cadernos. Quer que, além das terras e máquinas, o casal deixe de herança, para eles, o incentivo a jamais abandonarem os estudos.



Aulas contra a depressão

Além da dose matinal de Fluoxetina, Catarina, 51 anos, faz dos estudos uma arma para combater a depressão. Uma vez por mês, a dona de casa acorda às 5h30min e embarca em um ônibus que vai de Camaquã a Porto Alegre para consultar um psiquiatra. Quando o remédio não consegue aplacar a depressão, Catarina deita e dorme. E muito.

– Quando esse bicho bate, eu me tranco aqui em casa, fecho todas as cortinas, deito e durmo. E durmo até mais do que um dia inteiro.

Só as aulas são capazes de acordá-la. Vez que outra, a vizinha e colega de classe Jessi tem de espancar a porta de ferro da casa da amiga para despertá-la.

– Quando a Catarina fecha as janelas e as cortinas, a gente sabe que ela vai dormir por um tempão. Mas eu incomodo até ela acordar – relata.



Catarina tem uma filha, Nicolly, de oito anos, que frequenta a escola do Banhado do Colégio acompanhando a mãe. A dona de casa ficou grávida aos 42 anos, e teve uma gestação complicada pela idade e pela depressão.

– Não achei que dava para ficar grávida com essa idade. Mas essa menina é um anjo que Deus me mandou.

A ansiedade é um traço característico da dona de casa, que fala pelos cotovelos. Alguns colegas acham que ela exagera, tenta participar mais do que deveria na aula. É só a professora pedir para alguém citar uma palavra com determinada letra que Catarina pula da cadeira e grita para responder.

O estudo se tornou uma obsessão de Catarina para superar um trauma de infância – quando o pai não deixou que ela estudasse além da quarta série.

– Ele não queria que eu andasse de ônibus.

A dona de casa sente nas aulas o reflexo da falta de estudo na infância. Tem dificuldades com algumas disciplinas, principalmente matemática.

– Eu vejo os números ali, tento decorar a tabuada, mas não consigo de jeito nenhum. A minha filha vem e diz: “Mãe, é fácil”. Só que eu não consigo – conta, desanimada.

Catarina quer que a sua perseverança seja exemplo para a filha Nicolly. Sonha que a menina consiga ter um destino profissional.

– Ela está vendo a dificuldade que é uma pessoa de mais idade voltar a estudar. Se Deus nosso senhor quiser, ela vai continuar estudando e vai ter uma profissão para que o futuro dela seja lindo.

A formatura ao lado de filhos e netos

Em vez dos tradicionais capelos, que coroam os universitários em suas formaturas, os alunos do Banhado do Colégio vestiram bonés ao receber o certificado de conclusão do curso de alfabetização. O adereço, cor de creme com detalhes em verde, pode ser considerado simples por quem tem o ensino incutido desde sempre em sua rotina. Não é o caso desta turma, formada por pessoas que tiveram pouco ou nenhum acesso aos estudos enquanto criança.

Na noite do dia 8 de outubro passado, 12 senhores e senhoras com rostos já enrugados e castigados pela lida no campo, acompanhados por filhos e netos, viveram um momento que a vida não os ofereceu na infância. No galpão do Sindicato Rural de Camaquã, a turma do Banhado do Colégio se uniu a outras três classes da região para a solenidade de formatura. Além dos 11 alunos que aparecem nesta reportagem, o agricultor Celony, que não pôde comparecer às aulas do mês de setembro porque conseguiu emprego em uma lavoura de arroz em Cristal, também se formou.

A ansiedade e o nervosismo tomaram conta dos estudantes nas horas anteriores à solenidade. Maria Glorinha mal dormiu durante a noite. Um dia antes, foi ao salão de beleza e pintou as unhas e os cabelos “para ficar chique”, como definiu. No dia da formatura, o ônibus que levaria os estudantes até Camaquã chegaria às 19h. Duas horas antes, Glorinha e o irmão Ricardo já estavam prontos.

– É a primeira vez que vou a uma formatura, preciso ficar bonita e não posso me atrasar – brincou a mulher.



A cerimônia durou cerca de duas horas e foi sucedida por um banquete de confraternização. Tímidos, os alunos da professora Ana Maria ficaram perfilados para cantar o Hino Nacional, embora alguns não se lembrassem da letra e tenham ficado nervosos com a presença de autoridades, como o prefeito de Camaquã, João Carlos Machado.

– Dá um nervoso, né? Eu nunca tinha vindo numa coisa dessas – brincou Sérgio.

A reunião da turma do Banhado do Colégio no galpão também teve uma pitada de tensão com o boato de que o curso não seria repetido no ano que vem.

– Precisamos conseguir mais cinco novos alunos, foi o que a “profe” disse – relatava Catarina.

Na verdade, mesmo que atinjam a meta, a turma do Banhado será fechada no próximo ano. A presidente do Sindicato Rural e coordenadora do programa, Maria Tereza Mendes, quer levar o curso para outras localidades.

– Já tivemos essa turma por muitos anos. Está na hora de irmos para outras regiões – explica.

Na despedida dos estudantes, Maria Tereza se disse comovida com o carinho recebido por parte deles:

– Esta é uma turma muito afetiva. Eles recebem a gente de uma maneira comovente. Isso é muito bonito.

Desde 2001, o Programa Alfa levou o ensino a mais de 22 mil moradores da zona rural. O superintendente do Senar, Gilmar Tietböhl, afirma que o principal legado do projeto é a mudança da cultura de desvalorização do ensino por parte dos agricultores.

– Estamos sepultando a figura do Jeca Tatu. A agricultura evoluiu sobremaneira nos últimos 50 anos, mas as pessoas do campo não acompanharam essa evolução da forma adequada. Hoje em dia, existe uma necessidade muito maior de conhecimento na agropecuária. Se o sujeito não souber ler, ele vai ter dificuldades para manusear o maquinário, para dizer o mínimo – detalha.

Em um gesto singelo, ao abraçar a coordenadora Maria Tereza em um das atividades de encerramento do programa, Catarina resumiu com um exagero o reflexo do ensino nela e nos colegas:

– Muito obrigado. Agora eu sinto que sou gente.

Textos: Fotos e vídeos: Edição de vídeo: Web:  
Juliano Rodrigues Mauro Vieira Raquel Saliba Michel Fontes
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