"A melhor parte do dia"
São 18h40min quando o sol finalmente desaparece no Banhado do Colégio, localizado a 15 quilômetros do centro de Camaquã. O agricultor Ricardo, 57 anos, veste um segundo casaco para enfrentar o frio de 5ºC, potencializado pelo vento que sopra das lavouras de arroz e soja que cercam o distrito de menos de mil habitantes. Ao lado da irmã, Maria Glorinha, 58, caminha pelo chão embarrado e ainda umedecido da chuva do dia anterior. Mesmo com a baixa temperatura, o casal de irmãos sorri e mostra disposição no trajeto de 200 metros até o Clube de Mães.
– É a melhor parte do meu dia: ir à aula – conta Glorinha, animada.
Já nos primeiros passos, os dois encontram os vizinhos Sérgio, 60, e Jussara, 58. Em menos de cinco minutos, os quatro chegam à sala de aula, onde se unem aos outros oito colegas para esperar pela professora Ana Maria, que aparece minutos depois carregando duas sacolas, uma com pães, outra com frios e bolachas. É o lanche da sua “gurizada” no recreio.
Os 12 alunos formam uma das centenas de turmas do programa de alfabetização de moradores da zona rural, criado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar). Talvez seja a mais simbólica de todas. Os estudantes, que têm entre 47 e 72 anos, são descendentes dos sem-terra beneficiados pela primeira reforma agrária do Brasil. Muitos deles estavam no grupo de 2 mil pessoas que, na década de 1960, invadiu o local sob o comando do agricultor Epaminondas Silveira e do padre Léo Schneider.
A bordo de carroças, cavalos e charretes, os colonos chegaram ao Banhado em janeiro de 1962. Depois de cinco meses de acampamento, o então governador gaúcho Leonel Brizola enfrentou os fazendeiros, apoiados pelos militares, para garantir às famílias que viviam lá um pedaço de terra. A briga foi dura. O Banhado é considerado um dos lugares mais férteis do Rio Grande do Sul para a agricultura, razão pela qual seus proprietários não aceitavam negociar e, mais do que isso, exigiam a intervenção do Exército. Brizola e os acampados venceram a disputa: o pedetista decretou que a área de 20 mil hectares era de utilidade pública e distribuiu os lotes para as famílias.
Na época, os alunos da professora Ana eram crianças e tinham dificuldades para estudar no colégio que ficava nas cercanias do acampamento.
– Desde pequena, tinha que ajudar os meus pais. Era difícil estudar. A maioria não conseguia ficar muito tempo indo nas aulas – conta Jessi, 56 anos.
Além das limitações impostas pela falta de estrutura, os filhos dos acampados eram afetados por aspectos culturais inerentes à vida no campo, como as convicções de alguns pais de que estudar era algo supérfluo. Naquele tempo, as meninas tinham autorização para frequentar as aulas até a quarta série. Para dar sequência ao aprendizado precisavam ir a outro colégio, que ficava em Camaquã. Andar de ônibus? Nem pensar.
– Meu pai dizia: filha minha não vai andar por aí sozinha. Eu chorava. Dizia: “Pai, me deixa ir, por favor, deixa... Mas ele não aceitava – lembra Catarina, 51.
Os meninos até podiam investir nos estudos, mas não queriam. Preferiam acompanhar os pais na lavoura desde cedo. A combinação entre as dificuldades para estudar e a cultura dos acampamentos resultou em um distrito com poucas pessoas totalmente alfabetizadas. E uma massa de semianalfabetos.
Antes do início das aulas, em março, Ana Maria bate de porta em porta tentando convencer os moradores a participar do programa. Ao longo dos últimos anos, alfabetizou dezenas de senhores e senhoras que já haviam descartado voltar a estudar depois de atingirem a terceira idade.
O retorno de uma pessoa de 60 anos à sala de aula exige do professor uma didática diferente da que é empregada a crianças. Mas não tão diferente assim. Nas paredes do clube de mães do Banhado, as datas como o Dia dos Pais e o Dia do Trabalho são lembradas com cartazes. A turma canta músicas para memorizar fonemas e é fiscalizada para manter capricho nos cadernos nos quais anotam as lições.
Alguns alunos gostam tanto das aulas que repetem o curso, como as donas de casa Noeli e Maria. Os estudantes têm objetivos variados. Alguns deles, como Osmarina e a doméstica Valdereza, querem apenas a companhia de amigos e amigas. Outros pretendem tirar a carteira de motorista, estender os estudos para cursos técnicos e fazer da alfabetização o início de uma nova vida. A dona de casa Sueli resume:
– Não saber ler é como ser cego. Estamos aqui para conseguir enxergar.