Da esperança ao desencanto
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Para o brasilianista Gaspard Estrada, diretor-executivo do Observatório Político da América Latina e do Caribe da Universidade Sciences Po de Paris, a situação atual lembra a máxima do escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa no romance O Leopardo: "Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude". O maior risco seria, afinal, mudar os personagens para não mudar o enredo.
– O que acho muito ruim nesse processo é que de fato se perdeu uma oportunidade histórica de debater os assuntos que interessam, como a relação entre dinheiro e política, a reforma eleitoral – lamenta Estrada.
Segundo seu raciocínio, a saída de Dilma pode ser comemorada por aqueles que esperavam a queda do PT, mas por si só seria incapaz de assegurar as transformações que o país precisa. Sem uma reforma política que altere regras do sistema e mecanismos de financiamento de campanhas, a substituição pelo vice, Michel Temer, representaria apenas mais um capítulo da disputa de poder, e não um verdadeiro divisor de águas. O mais problemático, avalia, é que no curto prazo não há saída para a equação.
– No primeiro impeachment não houve um traumatismo porque havia um consenso nacional, e agora vai haver um traumatismo, não importa quem fique no Planalto – analisa, lembrando que qualquer resultado desagradaria a parte da população.
Com a chegada de Temer à Presidência, a expectativa é de mudanças no rumo da economia. A posse de Henrique Meirelles anima os mercados, mas há dúvidas se o alardeado "choque de expectativas" vai se confirmar. Diante de projetos impopulares, a fidelidade dos novos governistas será posta à prova.
– O que a base aliada vai fazer? A mesma que votou as pautas bombas no ano passado vai votar agora a diminuição do gasto público? Ainda não sei. Uma coisa é votar pelo impeachment, outra é votar medidas drásticas na economia – pondera o brasilianista da Sciences Po . A despeito do clima de desconfiança e de questionamento de parte da população sobre sua legitimidade, o governo Temer será cobrado por resultados rápidos. A presença de nomes sob investigação no alto escalão e o convite que chegou a ser feito a um bispo criacionista para o ministério de Ciência e Tecnologia (depois desfeito, diante da repercussão negativa) frustraram de antemão quem esperava um "ministério de notáveis". Para o cientista político Octávio Amorim Neto, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas-RJ, será fundamental analisar como Temer vai reagir caso um de seus ministros seja citado ou denunciado perante os tribunais. Lembra que Itamar Franco afastou o então chefe da Casa Civil, Henrique Hargreaves, quando surgiram denúncias do envolvimento dele em
desvios de verbas públicas.
– Vamos ver se Temer vai reagir como Itamar. Um dos braços direitos dele é Romero Jucá (nomeado ministro do Planejamento, é alvo da Operação Lava-Jato e da Zelotes, investigado por supostos desvio de dinheiro da Petrobras e no setor elétrico). Se por acaso ele vier ser denunciado, qual vai ser a reação? Mantê-lo para que tenha foro privilegiado, repetindo erros cometidos recentemente, ou deixálo se defender sem foro privilegiado? – questiona.
Amorim também preocupa-se com o que chama de "risco de desagregação do sistema partidário". Embora não considere o processo em curso uma ameaça à democracia, entende que representa uma ameaça aos "sistemas de partidos que têm organizado nossa vida democrática".
– Isso é um problema, porque o país está numa crise econômica profunda, e qualquer que seja o presidente terá uma tarefa muito mais difícil na hora de governar com um sistema partidário em desagregação e em reconfiguração – alerta.
Essa desagregação, explica Amorim, seria consequência de um abalo na equação de forças envolvendo PT e PSDB, que constituem o núcleo do atual sistema partidário. Em teoria, os tucanos teriam tudo para crescer com a derrocada petista, mas isso não vem ocorrendo – como mostraram as vaias sofridas por Aécio Neves e Geraldo
Alckmin em manifestações contra a corrupção e o declínio de políticos da sigla em pesquisas recentes de intenção de voto à presidência da República.
– Claro que outros partidos podem ocupar o lugar do PSDB e do PT, mas isso vai levar tempo, e vai tornar a política brasileira muito mais fluida e instável, justamente quando o governo precisará dar respostas vigorosas e profundas para a economia voltar a crescer – reflete Amorim.
Uma das consequências da perda de centralidade do PT e do PSDB no cenário político seria um maior embaralhamento nas urnas.
– Não acredito que um radical de direita como (Jair) Bolsonaro venha a ser eleito presidente,
mas o problema é que a migração de votos pode influenciar os resultados. Pode tirar um candidato do PSDB do segundo turno, por exemplo.
Judiciário ganha força com
perda de legitimidade de
outros poderes
Apesar dos problemas, a brasilianista Maxine Margolis, professora de antropologia aposentada da Universidade da Flórida, acredita que o processo em curso representa um amadurecimento da democracia brasileira. Ela destaca pontos positivos, como a diminuição da impunidade, com o avanço da Operação Lava-Jato, e o respeito a trâmites legais, chancelados pelo STF. Também avalia que Dilma está
pagando por erros políticos, que a fizeram perder apoio inclusive de pessoas próximas. Por outro lado, Maxine aponta máculas no impeachment em curso, por ter sido conduzido por líderes envolvidos em casos de corrupção, como Eduardo Cunha, recentemente afastado da presidência da Câmara.
– Para mim Cunha é um pesadelo. Isso suja um pouco o processo, assim como o (Jair) Bolsonaro. Não tenho no coração a esperança de que o Brasil vai melhorar com a saída de Dilma – lastima.
Na avaliação de Leonardo Avritzer, professor titular de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais e presidente da Associação Brasileira de Ciência Política, os três poderes estariam perdendo legitimidade frente à opinião pública. Enquanto o Executivo ficou paralisado pela crise e o Legislativo só pune a corrupção quando é conveniente, o Judicário cresce em protagonismo. Segundo Avritzer, o episódio que culminou com a suspensão do mandato de Cunha foi simbólico, expondo fragilidades da própria Corte.
– O uso de uma liminar numa situação como essa é incompreensível, porque o pedido para o afastamento do Cunha estava no STF há cinco meses. Ficou parecendo que o ministro agiu motivado por uma disputa interinstitucional, não jurídica. E aí fica a dúvida de o que teria acontecido se ele tivesse tomado a decisão antes da votação do impeachment. Isso é negativo para o país e para a democracia – opina.
O antropólogo Marcos Otavio Bezerra, professor da Universidade Federal Fluminense e autor do livro Corrupção: Um Estudo Sobre Poder Público e Relações Pessoais no Brasil, vê neste cenário uma quebra de confiança nas instituições democráticas.
– Existe um processo de desdemocratização, na medida em que não há fundamentação legal para o impeachment, e que se desconsidera o voto de 51 milhões de eleitores. E quem vai voltar par a administração são os políticos mais tradicionais e mais envolvidos em escândalos de corrupção nos últimos 30 anos – diz.
Já o cientista político José Álvaro Moisés, professor sênior de institutos avançados da USP e editor do site Qualidade da Democracia, avalia que o Brasil vem aperfeiçoando seu processo de democratização. O fortalecimento de sistemas de fiscalização e controle ocorrido na última década, com maior autonomia e independência de Polícia Federal, MP, Justiça Federal e TCU, e também a aprovação de leis como a Ficha Limpa, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei Anticorrupção, são conquistas a serem celebradas – e que permitiram a eclosão da Operação Lava-Jato, que pela primeira vez começou a colocar na prisão pessoas com influência:
– O processo de democratização ainda está incompleto, tem avanços e recuos, mas quanto mais essa dimensão de fiscalização e controle dos abusos de poder for incorporada à
institucionalidade e à cultura política, teremos menos eventos de impeachment.
Moisés observa que a existência de dois afastamentos presidenciais em menos de três décadas sinaliza que esse controle vinha sendo negligenciado. Embora a Constituição estabeleça que todo presidente tem de prestar contas ano a ano – e que cabe ao Congresso analisá-las para informar a população –, ele lembra que a casa nem sequer analisou as contas de FHC e Lula – e que, até pouco tempo, tampouco tinha analisado as de Dilma.
– O impeachment é uma solução de emergência. Se chegamos a esse limite é porque o governo se comportou mal, mas as instituições também não fiscalizaram como deveriam.
Moisés acredita que as pedaladas fiscais são, sim, um motivo grave, que justifica o afastamento presidencial. E acredita que um dos legados desse processo será maior atenção à prestação de contas públicas:
– A Lava-Jato está mostrando que uma parte importante da riqueza social foi apropriada para fins pessoais, que o sistema partidário está mesclado com a corrupção. Mas também está dizendo: podemos mudar, a corrupção não é inata.
Congresso é um retrato 3x4 da população, diz antropóloga
Para o cientista político Antônio Octávio Cintra, um dos
organizadores do livro Sistema
Político Brasileiro: Uma Introdução,
a eclosão dos escândalos, ao
mesmo tempo em que impõe a necessidade de rever as relações partidárias, expõe a crise do presidencialismo de coalizão:
– Quantos partidos seria normal a gente ter? O que significa ter de lidar com 28 partidos no Congresso? Todos querem seu quinhão, as negociações viram balcão de negócios. Temer, apesar de toda a sua experiência, terá negociações complicadas com a base.
Ainda que os repetidos desvios pareçam a principal constante da política nacional, a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, coautora do livro Brasil: Uma Biografia, salienta que a corrupção não é um mal endêmico. Do contrário, viraríamos reféns de falsos determinismos, regidos pela crença resignada de que "o Brasil é assim mesmo, não há o que fazer". Paraescapar da armadilha, é preciso também repensar nossa conduta como cidadãos.
– Quando falamos de patrimonialismo no Brasil, usamos apenas a ideia de cobrar do Estado, mas se fomos for ler (Max) Weber, autor do conceito, temos de pensar nessa dupla polaridade do patrimonialismo: uma delas é o Estado que se vale de valores pessoais para interferir na esfera pública. A outra é a dos cidadãos. Senão, vamos cair no personalismo – diz.
Um dos primeiros passos necessários para avançar nesta discussão seria reconhecer que o Congresso é a representação da sociedade. Em vez de apenas se escandalizar com os discursos que marcaram a votação do
impeachment na Câmara, por exemplo, quando deputados diziam "sim" ao impeachment "pela minha mãezinha", "para crianças não trocarem de sexo nas escolas" até "pelos militares de 64", os brasileiros deveriam fazer reflexões mais profundas:
– Ver aquilo é quase uma foto 3x4 de nós mesmos. Em vez de dizer: "Olha como eles são!", temos de dizer: "Como nós somos!".
A despeito de mais um impeachment, Lilia observa um progressivo fortalecimento das instituições brasileiras desde a Constituição de 1988, o que seria sinal de saúde democrática. Por outro lado, em termos de valores republicanos, diz que o país ainda engatinha. Lembra que a expressão latina "Res publica" se refere ao que é de todos, ao trato público. Uma dimensão pouco incorporada à política tupiniquim.
– Vamos ter que avaliar como saímos disso. É um teste para saber se votamos mal. Se nossos representantes não são aqueles que imaginávamos. Vamos sair chacoalhados _ acredita.
Com o acirramento das posições políticas, outro desafio dos brasileiros é recuperar a capacidade de ouvir o outro e tentar aprender com as diferenças, parte fundamental da convivência democrática.
– Hannah Arendt dizia: "O homem
só é aquele que é isolado. O
grande isolamento é se cercar só dos que pensam iguais a você". A gente tem de sair mais plural dessa
crise. Se você não achar lógica
alguma naquele que é
diferente de você, porque ele vai achar que você tem alguma lógica? – questiona Lilia.
O historiador Daniel Aarão Reis, autor do livro Ditadura e Democracia no Brasil, também acredita que o aumento da politização da sociedade deve ser aproveitado como uma oportunidade para "tematizar as grandes reformas de que o país precisa":
– Se o país ficar apenas no debate de "golpe x não golpe", "Dilma x Temer", a sociedade sairá empobrecida. O sistema está falido, apodrecido até a medula. Do que se trata é dar início a uma profunda reforma política, e para isso é necessária uma plataforma específica, que mobilize as gentes e que estas, mobilizadas, pressionem o Congresso. Se a sociedade cruzar os braços e ficar esperando por estas elites sociais e políticas, poderá esperar deitada.
Se ainda é cedo para saber como o Brasil sairá desta crise, tudo indica que já passou o tempo de ficar deitado eternamente em berço que, de esplêndido, só tem o hino.