CARTA DE CLAMOR
A agricultora Iraci Colombo, que mora em Descanso, no Extremo Oeste é uma das lideranças do Movimento de Mulheres Camponesas. Ela recebeu uma carta em que uma agricultora narra a violência sofrida. A trabalhadora rural optou por não falar porque sente medo do ex-companheiro. Nem o período da gravidez foi respeitado.
— Eu tive que sair de casa porque ele me dava joelhadas e cotoveladas na barriga — escreveu.
Outro quarto não foi suficiente para um sono mais tranquilo:
— Nem um cobertor ele quis comprar, me deixando no inverno com muito frio, apenas com um lençol para me cobrir — diz no texto.
A violência física vinha acompanhada da psicológica:
— Ele saía de casa para falar mal de mim na comunidade. Até para o padre, o que afetava a minha moral — descreve.
Iraci treme a voz quando lê trechos da carta. Explica que, amparada e aconselhada, a mulher decidiu ir embora para outro Estado e tentar um recomeço de vida.
UMA TROCA BESTIAL
A junta de boi arava a terra até que um dos animais cai. Extenuado pelo trabalho, o bicho não consegue mais se levantar. Vítima de uma espécie de mal súbito, morre sobre o canteiro. A cena se revela como uma das mais simbólicas da violência vivenciada por mulheres no campo: o marido obriga a esposa a colocar a canga nos ombros e prosseguir o trabalho.
O relato foi ouvido tempos atrás por Adélia Schmidt, agricultora na cidade de Itapiranga, no Extremo Oeste de Santa Catarina, a 715 quilômetros de Florianópolis. Para ela, que frequenta o Movimento de Mulheres Camponesas desde os anos 1990, no qual chegou a fazer parte das coordenações estadual e nacional, esse é um dos desabafos mais representativos de uma realidade brutal. Essa mulher só conseguiu falar depois de ficar viúva.
— Um absurdo uma mulher ter que substituir um boi no trabalho.
Para Adélia, certas coisas melhoraram com relação à situação das mulheres que hoje vivem no campo. As mais jovens demonstram um pouco mais de entendimento sobre o que sofrem. Mas ainda há muito a ser feito. Recentemente, ela participou de um evento em que foi relatada uma situação que se repete – a dificuldade de a vítima assumir o que sofre, a ponto de atribuir a acidentes manchas deixadas por agressões. Ao serem questionadas, há mulheres que mesmo com cicatrizes de pancadas afirmam que as marcas são decorrentes de quedas.
— Sem a confissão delas, fica difícil até para outra pessoa encaminhar uma denúncia — observa.
No espaço acadêmico, Adélia pesquisou pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó) sobre a invisibilidade da violência contra a mulher no campo. Focou famílias de Itapiranga, município considerado como uma das colônias alemãs e católicas mais tradicionais do país. A agricultora explica que durante as entrevistas para a monografia, apresentada na Unochapecó, o embaraço das mulheres era visível. Algumas olhavam ao redor para ver se não havia ninguém por perto para responder.
— Relatos como dessa companheira que substitui o boi só são arrancados depois de muita sensibilização ou quando os agressores já morreram e elas não se sentem mais ameaçadas.
ENREVISTA COM ADÉLIA SCHMIDT,
LIDERANÇA DO MMC EM SANTA CATARINA, SOBRE UM DOS CASOS DE VIOLÊNCIA NO CAMPO QUE MAIS LHE MARCOU