Aconteceu

há muito tempo, em um território incerto do pampa. No meio das coxilhas, havia uma tribo guarani. O cacique, cuja sabedoria esticava seu caráter, era exemplo para todos ao redor. Os índios fixavam seus olhares no cacique e, com entusiasmos espontâneos, sentiam-se pertencentes de algo maior.

Caá-Yari, índia de cabelos negro-vívidos e de olhos glauco-acerejados, era a filha do cacique. Sua graça e sua candura não passavam despercebidas pelos jovens guerreiros da tribo. Caá-Yari era motivo de orgulho para o cacique, que, devido ao passar do tempo, sentia-se cada vez mais afadigado e vulnerável. Mas além da velhice iminente havia outra coisa que dilatava a inquietação do chefe dos índios...

que não tinha filho homem, o cacique preocupava-se com sua sucessão. Em toda tribo, conforme avaliação do próprio cacique, havia apenas um guerreiro que possuía os requisitos autênticos para tornar-se o novo chefe. E era justamente o índio pelo qual sua filha, Caá-Yari, apaixonara-se. Isso desassossegava o cacique. Não por sua filha estar apaixonada, mas sim o fato de que, segundo as leis guaranis, a mulher do chefe dos índios era obrigada a acompanhá-lo em suas viagens e caçadas. Ou seja, Caá-Yari precisaria deixar o pai sozinho na tribo por longos períodos.

Caá-Yari, filha solícita e de farta empatia, reconhecia a vulnerabilidade do pai. Sem hesitar, ela permanecia ao seu lado. Ela pressentia que, caso se ausentasse da tribo, o cacique se afundaria em espessa melancolia. Assim, a jovem Caá-Yari abria mão dos seus anseios e palpitações em nome do bem-estar do pai.

O

tempo correu e o cacique começou a experimentar emoções de culpa. Foi então que ele procurou Tupã, o deus dos deuses. O cacique expôs o desejo de ganhar uma companhia para as horas de solidão. Desse modo, poderia nomear o novo chefe e deixar Caá-Yari.

O deus Tupã mostrou ao cacique uma árvore robusta, cujas folhas deveriam ser retiradas, secadas e torradas. Surgia a erva-mate. Tupã ainda aconselhou o cacique a partir um porongo e também a elaborar um canudo de taquara, nomeados cuia e bomba. Ganhava corpo o chimarrão, bebida quente e amarga, a nova companhia do cacique, que depois de tomar um mate alegrou-se em nomear seu sucessor e permitir a partida de Caá-Yari. A lenda se levantava.
Esta é uma adaptação de A lenda da erva-mate, publicada por Pedro Haase Filho em coletânia da RBS Publicações de 2007.

A erva-mate como uma ponte

Os próximos 800 caracteres são possíveis apenas em primeira pessoa... Por conta dos meus estudos recentes, estou em conversa entranhada com a antropologia. Meu orientador, o grisalho Rafael José dos Santos, jogou em mim uma frase provocadora de Terry Eagleton: "Para uma pessoa, seu modo de vida é simplesmente humano; são os outros que são étnicos, idiossincráticos, culturalmente peculiares". Tal frase é uma fagulha para minha releitura da lenda da erva-mate. Na contemporaneidade, o chimarrão não seria uma companhia para a solidão, mas sim um mecanismo para a interação de grupos culturalmente distintos. Aceitação das diferenças. É isso. Visualizo uma roda de mate com caxienses, senegaleses, ganeses, haitianos. A erva-mate como uma espécie de ponte. Travessia.

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