O Calor do Inverno #7: O caminho do ouvido à alma

Durante a estação mais fria do ano, série do Pioneiro irá apresentar 10 histórias para aquecer a alma.


Publicao em 13 de agosto de 2016

Texto

Andrei Andrade

andrei.andrade@pioneiro.com

Imagens

Diogo Sallaberry


Infografia

Guilherme Ferrari

O Calor do Inverno #8:

Onde o livro faz amigos

A infância iluminada pela luz do lampião e algumas poucas velas na casa dos pais, na área rural de São Francisco de Paula, ensinou Luciana Olga Soares que o interior de si mesmo é um lugar bom e seguro para se viver. A vida introspectiva e saudosa do passado que se apaga diante do questionável progresso de uma sociedade desapegada de tradições, revela a essência de uma casa tão deslumbrante quanto aconchegante na por si só acolhedora cidade que logo se faz chamar pelo apelido, São Chico. Visitar a Livraria Miragem é uma experiência que remete aos valores mais caros ao gaúcho do campo: as noites de quietude, o barulho do fogo queimando, o amor pelos animais e a hospitalidade para receber quem vem de fora.

Cada canto da livraria é um convite a permanecer um pouco mais, descobrir um novo exemplar, conhecer melhor a história daquela terra pelas fotografias e pelos versos de seus poetas, espalhados pelas paredes. Para Luciana, não faria sentido seu negócio existir longe das raízes campeiras e do clima frio que faz a alma procurar abrigo. O prazer de perguntar ao turista se fez boa viagem e oferecer uma cadeira revestida por um cobertor para melhor aquecê-lo, e poder sugerir a ele o fino da literatura, e não necessariamente o autor mais vendido, são diferenciais que se percebe com clareza nas muitas páginas preenchidas do caderno de visitas. Cada assinatura é acompanhada de um depoimento acalorado, talvez alguma poesia ou uma memória a que o ambiente remeteu, ou os votos de que aquele lugar mágico nunca ceda à realidade.



O Calor do Inverno #5: O vinho, de Platão a Salvati

Cada canto da livraria é um convite a permanecer um pouco mais, descobrir um novo exemplar, conhecer melhor a história daquela terra pelas fotografias e versos de seus poetas, espalhados pelas paredes. Para Luciana, não faria sentido seu negócio existir longe das raízes campeiras e do clima frio que faz a alma procurar abrigo.



Na contramão dos "supermercados de livros", como a proprietária se refere a lojas de finalidade meramente comerciais, a Miragem expõe os exemplares de forma descontraída e até um pouco bagunçada. Não tem problema, por exemplo, se o cliente retirar um livro para folheá-lo no primeiro andar, e de repente deixá-lo em algum canto do terceiro piso. Organizar lado a lado na prateleira facilitaria a localização, mas tornaria o ambiente frio e pouco convidativo à leitura. E como tornar frio um local onde as únicas máquinas são um computador e a máquina de calcular? A livraria, justifica Luciana, propõe um contraponto à solidão atroz enfrentada pelas pessoas nessa época de relações quase sempre mediadas pela tecnologia. A anfitriã quer que seus livros possam olhar de frente, como deveriam fazer as pessoas.

Construída ao longo de três anos e inaugurada em 2007, a Miragem homenageia em uma placa todos os trabalhadores que ergueram a estrutura de três andares, em uma esquina da Avenida Júlio de Castilhos. Na cidade de 21 mil habitantes _ cerca de 12 mil na área urbana _, é uma ode a tradições que Luciana vê ameaçadas principalmente pela lei que proíbe as queimadas de campo. Segundo ela, o fim dessa tradição bicentenária representou não apenas a migração da atividade econômica _ da pecuária para a plantação de pinus e batatas em terras que muitos proprietários rurais viram como única solução arrendar _ mas da identidade do gaúcho de Cima da Serra. Trata-se de uma polêmica que ela combate com dedicação comparável apenas a que dispensa aos 32 cães que mantém em sua propriedade, todos resgatados de situação de abandono.

Parece ser próprio das menores cidades serem aquelas que melhor esquentam seus visitantes, como se o ar gelado fizesse despender maior calor humano. Quando chega o inverno, destinos como uma livraria para se perder no tempo, e pessoas como Luciana Soares oferecem a afabilidade mais orgânica que se pode experimentar, em salas onde a luz é baixa e o som só se percebe ao fundo, em que se percebe a raiz que torna uma experiência verdadeira. Talvez estejam nestas cidades menos pasteurizadas os últimos recantos inspirados não naquilo que é moda, mas no que transcende gerações. Lugares onde a vida passa sem pressa, que oferecem o lar ideal para o bom livro fazer morada e receber amigos.