O Calor do Inverno #6: O vinho, de Platão a Salvati

Durante a estação mais fria do ano, série do Pioneiro irá apresentar 10 histórias para aquecer a alma.


Publicao em 30 de julho de 2016

Texto

Andrei Andrade

andrei.andrade@pioneiro.com

Imagens

Diogo Sallaberry

diogo.sallaberry@pioneiro.com

Infografia

Guilherme Ferrari

O Calor do Inverno #6:

O vinho, de Platão a Salvati

É francesa e não tem tradução a palavra que Silvério Salvati, 52 anos, emprega para explicar a singularidade do vinho produzido pelas suas mãos: terroir. O termo faz referência à influência que o solo e o clima exercem no desenvolvimento da uva, que dá a cada bebida uma identidade singular. O homem que experimentar cada uma das 10 mil variedades de uvas viníferas existentes, explica Salvati, terá de percorrer todas as vinícolas, conhecer toda técnica de cultivo e de colheita, as condições de clima e altitude de cada região e as mãos de cada produtor, para que possa começar a pensar em esgotar as possibilidades da bebida. O vinho é infinito, porque é único.

Infinitos são também os significados atribuídos à bebida que parece ter sido feita para celebrar o encontro. Nas palavras proferidas por Silvério Salvati ao poeta Marco de Menezes, 48, em uma tarde na cantina Salvati & Sirena, em Bento Gonçalves, o vinho socializa uma civilização. Do jantar romântico ao debate político, da confraternização entre amigos às refeições da família, é um convite à conversa.



O Calor do Inverno #5: O vinho, de Platão a Salvati

Para o poeta, o vinho faz experimentar camadas mais profundas da realidade. É uma bebida que não encerra, mas sim eleva o pensamento. Salvati propõe o termo: transe. E acrescenta: ao elaborar um vinho que só ficará pronto em 12 anos, o produtor também é um visionário.



Não se serve um bom vinho sem contar a história por trás daquele rótulo, exemplifica Salvati. O líquido engarrafado tem um pouco da alma de quem dedicou anos de trabalho e pesquisa ao seu aperfeiçoamento, carrega o envolvimento da região, as características que lhe dão a cor, o sabor e o cheiro. O poeta vai além. Menezes considera que a bebida que regou o banquete filosófico de Platão, há mais de dois mil anos, aproxima o homem de sua dimensão visionária. Faz acessar camadas mais profundas da realidade. É uma bebida que não encerra, mas sim eleva o pensamento. Salvati propõe o termo: transe. E acrescenta: ao elaborar um vinho que só ficará pronto em 12 anos, o produtor é também um visionário.

Das significações recebidas através dos tempos, o vinho é um símbolo dos prazeres do inverno. Consumidor de três garrafas diárias, Salvati considera um equívoco do brasileiro. Vinho é para o ano todo, e não para ser lembrado quando os pinhões são avistados à beira da rodovia. Mas reconhece que, nas noites mais frias, o merlot bem acompanhado faz mais feliz e realizado a quem o bebe. Com as papilas gustativas limpas pela água, exclama: "falo de sexo, madonna!". Quando a taça passa para o poeta, ele emenda de um gole só: para o verão, os horizontes distantes oferecidos pelo vinho branco. Para o inverno, o recolhimento e intimidade do vinho tinto.

Entre o vinho e Silvério Salvati, a intimidade vem do berço. Exemplo do quanto a vida de um homem, bem como a do vinho, pode estar relacionada à sua terra, também é a ilustração do quanto a bebida pode oferecer sentido a uma vida. Filho de humildes vitivinicultores de Pinto Bandeira, foi matriculado pelo pai para um curso profissionalizante de enologia. Pai que desconhecia o significado da palavra, mas imaginava que o nome pomposo faria de Silvério um doutor. Fascinado pela ciência envolvida na produção, Salvati enxergou em Bento, no terreno do sogro, a chance de erguer uma vinícola a partir de uma única rocha, cuja demolição levou nove anos. cuidar do fogo?

A construção octogonal no número 49 dos Caminhos de Pedra é aberta aos visitantes 364 dias por ano, só fecha no Natal. Nas ocasiões em que precisa ir à cidade, e na volta encontra o abraço deixado por algum amigo no caderno de visitas, fica frustrado. Abraço é para trocar. Enquanto a esposa, Rosângela, é responsável pela administração, Salvati vive em torno do vinho. Pode passar a madrugada lavando pipas, prensando uvas, tirando cascas. Quando vai fazer um peverella, da uva que Salvati resgatou após anos de pesquisa, senta à beira do tanque com toda a paciência. Sabe que, se for dormir e retornar em duas horas, o resultado será outro vinho. Como um poema, ua arte mora nos detalhes mais sutis. É a vez do poeta arrematar: para Marco de Menezes, beber o vinho é esquentar corpo e alma com a paixão do produtor pelo seu trabalho. Seu espírito habita cada garrafa aberta para aquecer uma noite fria. Pode ser chamado de vida, ou de amor.