O Calor do Inverno #5: O fogão a lenha resiste ao tempo

Durante a estação mais fria do ano, série do Pioneiro irá apresentar 10 histórias para aquecer a alma.


Publicao em 23 de julho de 2016

Texto

Andrei Andrade

andrei.andrade@pioneiro.com

Imagens

Jonas Ramos

jonas.ramos@pioneiro.com

Infografia

Guilherme Ferrari

O Calor do Inverno #5:

O fogão a lenha resiste ao tempo

Calor que se compare ao do fogão a lenha, só mesmo o calor humano. Ou haveria outra explicação para que toda casa aquecida por um fogão tenha na cozinha a verdadeira sala de estar? É ao redor do fogo e disputando o assento sobre o caixote da lenha, que muitas famílias ainda se reúnem para se esquentar e desfrutar da boa companhia, especialmente dos mais velhos, normalmente os responsáveis por manter em plena atividade o objeto mais importante da casa

Nos domingos em que os Frare se reúnem para o demorado almoço que emenda o café da tarde na casa do nonos Laurindo e Gema, no interior de Flores da Cunha, o fogão a lenha acende as melhores recordações afetivas de cada membro das três gerações da família. De pequenas tragédias a anedotas rememoradas com risadas gostosas, cada episódio reforça um vínculo que pode parecer banal, mas quantas famílias imersas na correria dos grandes centros conseguem manter laços tão fortes quanto os núcleos que resistem nas menores comunidades? Na sociedade em que nada mais é feito para durar, o casal de velhinhos ao redor do fogão é o retrato vivo que antecipa uma saudade.



O Calor do Inverno #5: O fogão a lenha resiste ao tempo

Uma casa sem ‘fogon’, Laurindo diz com o sotaque dos descendentes de italianos, é fria. Não no sentido térmico, e sim do acolhimento.



Primeira filha do casal, Maria Antonieta, 59, não esquece de quando o marido, Edvaldo, começou a frequentar a casa na época em que eram jovens namorados, 40 anos atrás. Edvaldo se compadecia de ver a futura sogra cozinhar no fogão a lenha e a presenteou com um exemplar a gás, que nunca foi usado. É chacota até hoje, assim como o dia em que Laurindo manuseava um garrafão de 42 litros de graspa no sótão, sem perceber que o recipiente estava furado, e o líquido escorria para o andar de baixo, provocando labaredas acima do fogão. Enquanto o genro corria até o Fusca para buscar o extintor de incêndio, Laurindo ignorava os gritos que vinham do andar de baixo para tentar salvar o que pudesse da bebida.

Além de histórias para toda a vida, o fogão dos Frare inspirou a filha caçula de Laurindo e Gema, Marizete, 52, a abrir uma padaria em Caxias do Sul que leva o nome da mãe, na Rua Tronca. A especialidade são os pães e biscoitos que ela cresceu vendo e admirando a mãe preparar. Mesmo o mais jovem da família, Rafael, 29, filho de Marizete, tem como lembrança vívida da infância as tardes em que a avó o ajudava a recortar pedaços de massa que depois iam ao forno para o lanche.

Para o nono Laurindo, o fogo aceso nas primeiras horas da manhã pela funcionária Dolores Joanazi, 49, é um companheiro até a hora de dormir. Mesmo nos dias mais quentes do verão, ele acende o fogo e se senta na varanda, para não ficar com calor. É que uma casa sem 'fogon', ele diz com o sotaque dos descendentes de italianos, é fria. Não no sentido térmico, e sim do acolhimento. Maria Antonieta confidencia que o pai pouco a visita, porque fica inquieto onde não tem fogão. Recentemente, Marizete sugeriu à família um passeio no Santuário de Caravaggio, em Farroupilha, mas sentiu que o pai estava contrariado com a ideia de irem todos. Mais tarde, revelou-se o motivo da angústia: quem iria cuidar do fogo?

Enquanto Laurindo e Gema Frare compartilham o cotidiano em volta do inseparável fogão, as filhas, que durante a semana se dedicam à padaria e à loja de roupas, e os netos, um médico e outro analista de sistemas, têm aos domingos o dia para desacelerar na companhia dos nonos. É como se a divindade atribuída ao fogo na Grécia Antiga se confirmasse a cada reencontro. Se fosse permitido à família Frare ter um desejo atendido por alguma divindade do fogo, seria unânime: que os nonos ainda tenham muita lenha para queimar.