Enquanto o prato de sopa numa noite fria não se faz um direito universal garantido, a cada vez que o outono cede lugar ao inverno no Hemisfério Sul pelotões de um exército do bem saem a percorrer as ruas da cidade para estender uma porção àqueles a quem a vida negou quase tudo: teto, família, emprego, consideração.
Na casa do bairro Cruzeiro, em Caxias do Sul, onde um desses esquadrões intitulado Anjos Voluntários recrutou um senhor chamado Geraldo Vergani, seu fogão e suas duas panelas de 50 litros, o ritual da sopa beneficente começa por volta das 22h, sempre às terças, quintas e domingos. Por uma rápida associação de fatores, o prato de sopa, quando se trata de ajudar a um desvalido, é a primeira lembrança: se o que mais aflige é fome e o frio, que se ofereça então um alimento que nutra e esquente, e que também seja barato e prático de preparar. A sopa é o agasalho da alma.
Enquanto o tomate e a cebola fritam no óleo, o grupo de cinco ou seis voluntários pica a batata, a cenoura, o chuchu e a moranga que irão se misturar ao caldo. Quando a sopa está pronta, seu Geraldo vira sobre ela a panela de massa ou de arroz. Às 23h30min, a sopa está pronta para ser distribuída junto de alguma fruta para a sobremesa e das caixinhas de leite cuidadosamente higienizadas, que servirão de recipientes.
Embora a maioria dos beneficiados seja de pessoas que romperam com a família por conta do abuso de drogas, para a trupe da sopa só importam três coisas: todos têm frio, todos têm fome, todos são vítimas.
Em um Polo preto e com vidros escurecidos, a distribuição se concentra na Avenida Júlio de Castilhos. Quem está na rua não ganha apenas a sopa, mas também um aperto de mão, um abraço e um sorriso. É como houvesse um aviso de que a sopa não pode ser entregue separadamente. O voluntário Eumar Alves explica que o grupo não faz qualquer distinção. Qualquer um merece ser alimentado. Travestis que fazem ponto nas esquinas, por exemplo, são beneficiadas cativas. A sopa, diz uma delas, contém calor, carinho e amor. Usuários de crack também recebem sua porção. O único pedido é que não estejam fumando no momento de receber a porção. Eumar conta que até um homem que recentemente o assaltou em uma parada de ônibus, alguns dias depois também foi convidado a se servir enquanto assistia à entrega. Sem jeito, aceitou. Trata-se de um exercício bastante duro nos primeiros dias, de quebra de preconceitos de ambos os lados.