santa catarina tem 28 áreas indígenas que ocupam 0,8% do território estadual. Em quatro delas, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) questiona na Justiça a demarcação – enquanto isso, as comunidades vivem a angústia da perda do espaço físico e referências
texto | ângela bastos
– Por que índio quer terra se deixa virar mato? – pergunta a menina de 10 anos, estudante de uma escola de Florianópolis, após visitar uma aldeia.
A resposta, em sala de aula, vem do colega da mesma idade que também tinha participado do passeio e diz ter conversado com um indiozinho.
– Não é que vire mato. Os índios entendem que, com as plantas crescendo, os animais voltam para suas terras.
m tanto lúdico, o diálogo explica parte do que sustenta a polêmica questão das áreas indígenas em Santa Catarina. Uns acham que as áreas já são suficientes. Inclusive, improdutivas. Outros consideram que por falta delas os povos indígenas estão descaracterizados de valores essenciais. Da espiritualidade, até. O ponto é que as divergências não se limitam ao colégio. Elas envolvem instituições de governo.
Em Santa Catarina existem 28 terras indígenas (TIs). Em quatro delas, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) discute na Justiça a demarcação. Porém, quando o tema é apresentado como Estado x Índios, o procurador-geral do Estado, João dos Passos Martins Neto, pede correção:
– O conflito de interesses é agricultores versus índios. Não se trata de terra de propriedade do Estado, mas de áreas localizadas em território catarinense.
Se não envolve diretamente o Estado, é razão para colocar o aparato jurídico de todos os catarinenses e designar seus conceituados procuradores para defender interesses de particulares?
– Adotamos o princípio da legalidade: o Estado não é a favor do branco nem do índio, mas defende o cumprimento da Constituição Federal e a observância do processo legal que ela impõe no tratamento da questão – responde o procurador-geral.
A PGE segue um raciocínio aparentemente coerente: se a terra é do índio, é do índio; se é do agricultor, é do agricultor. Mas pondera a respeito do que considera como “princípios legais não praticados”, o que entende configurar um ato de usurpação. Aí, então, se instala um rito de Estado x União.
É o que ele avalia que ocorreu no Morro dos Cavalos, em Palhoça, na Grande Florianópolis, que, em janeiro de 2013, foi alvo de uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF).
– A ação no STF não é contra os povos indígenas, mas contra a União por ter demarcado uma área sem observar o processo legal caracterizado em uma série de descumprimentos – sustenta.
Setores ligados à defesa dos índios têm outro sentimento sobre esse sistemático comportamento jurídico da PGE. Desconfiam que, talvez pela economia catarinense ser solidificada sobre o agronegócio, o agricultor seja visto como de mais valia do que o índio, que produz basicamente para a subsistência.
– Em termos de dignidade humana, não existe nenhuma diferença entre não índios e índios – garante Martins Neto.
As 28 áreas indígenas de Santa Catarina têm uma extensão pequena se comparada com o tamanho do território estadual, que se espraia por 95 mil quilômetros quadrados. Todas as TIs equivalem a 0,8% do chão barriga-verde. Uma área total menor que o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, na Grande Florianópolis.
assunto também permite outro olhar e um entendimento diferente. Esse toma por base a tradição catarinense de respeitar os direitos sociais, a partir de uma política voltada à defesa da dignidade humana. Não é, então, desconfortável para o Estado agir contra uma minoritária parcela da população já tão usurpada de seus direitos?
– Nossa posição é neutra com relação a esse aspecto, nosso compromisso é com a legalidade. As pessoas acham que nós estamos do lado do agricultor e não do índio. Ou, às vezes, do índio e não do colono – argumenta o procurador-geral do Estado.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à Igreja Católica, não parece convencido.
– Há um contexto de extremo preconceito e racismo. Aparentemente somos um Estado “civilizado e tolerante”, mas são vários os casos em que prefeituras e comunidades locais impediram a criação de reservas indígenas, o que nada mais era do que a compra de terras como pode fazer qualquer cidadão – observa Maria de Oliveira, integrante do Cimi.
Eunice Antunes foi a primeira mulher cacique na aldeia do Morro dos Cavalos. Deixou o cargo e hoje é coordenadora pedagógica na escola da comunidade, onde estudam 70 alunos, entre crianças, jovens e adultos. O colégio foi palco da Semana Cultural, que se encerra segunda-feira.
– Não temos o hábito em comemorar o Dia do Índio (19 de abril), mas achamos importante aproveitar o interesse das pessoas em conhecer nossas terras. Ganhamos visibilidade e muitos alunos não índios aprendem sobre o significado de coisas da nossa realidade – diz.
Verdade também que a questão não pode ser vista apenas do ponto de vista da semântica. O conflito é mais do que “em” território catarinense ou “ser” do território catarinense. Trata-se de reivindicações opostas. Quando se inicia um processo para demarcação, os índios recorrem ao direito ao território ancestral, uma garantia fundamental da Constituição porque a terra é parte da essência da vida deles.
Por outro lado, os agricultores se sentem expulsos de uma área que, em muitos casos, algum dia foi comprada por eles, inclusive com títulos registrados em cartório. Como resolver o impasse?
O procurador-geral do Estado aponta uma saída além da demarcação: a instituição de reserva indígena. Na demarcação, a União, depois do processo administrativo, reconhece a terra indígena tradicional e a declara em nome da União. Se estiver ocupada por não indígenas, que são considerados intrusos, eles passam pelo processo de desintrusão, uma espécie de expulsão da área. Nesse caso, não há direito à indenização pela terra. Mas sim a benfeitorias, como casas, galpões, açudes.
ão é por falta de lei que os índios catarinenses são relegados. A Constituição Estadual tem artigo e capítulos que tratam das questões indígenas. Um avanço se comparado com outros Estados. O Acre, por exemplo, que tem até índios isolados na Floresta Amazônica, não faz referência a esses povos. Mas não é de hoje que os governos catarinenses são considerados, no mínimo, omissos.
Vilson Kleinübing governou Santa Catarina entre os anos de 1991 e 1994. Não era a favor da demarcação de terras, mas também não se colocava efetivamente contrário. Se não levou ao pé da letra o que diz a Constituição Estadual, sabia escutar os índios, a quem sempre recebia quando era solicitado.
– Ele tinha a noção de que os índios de Santa Catarina eram também catarinenses. Essa é uma noção que está faltando hoje em dia – diz a procuradora da República em Santa Catarina Analucia Hartmann.
Com 23 anos de atuação no Estado, a procuradora é uma das maiores conhecedoras da causa indígena em Santa Catarina. Para ela, cada um dos governos possui a própria forma de lidar com o assunto. Mas nos últimos tempos a política indígena estadual sofreu um revés.
Foi o governo Paulo Afonso (1995-1999), na opinião da procuradora, o que se demonstrou mais sensível à questão a ponto de determinar que o secretário de Justiça da época fosse visitar todas as terras indígenas catarinenses para conhecer as condições de vida e as demandas dos povos.
Cita também o segundo mandato de Esperidião Amin (1999-2003). Mesmo contrário a algumas demarcações, como a regularização da área Xokleng, protagonizou avanços importantes na infraestrutura das áreas. Uma delas, uma grande escola em Ipuaçu, em terra Kaingang, a primeira de 2o grau (hoje, Ensino Médio) em terra indígena; a colocação dos indígenas no programa troca-troca de sementes do governo do Estado (sem intermediação da Funai) e a construção da escola de Morro dos Cavalos, reconhecendo que aquela terra é dos Guarani. O governo do Estado pediu recurso federal para construir o colégio e reconheceu que se tratava de uma área indígena, argumento que inclusive levou para o Tribunal de Contas do Estado (TCE).
– O governador Esperidião Amin discutia algumas áreas, o que eu acho plenamente legítimo, pois o dirigente político tem que saber o que está acontecendo com a questão fundiária no Estado. Hoje, movimentam a máquina, como no caso do Morro dos Cavalos, para defender alguns catarinenses contra outros catarinenses. Qual a legitimidade? – questiona a procuradora da República em Santa Catarina.
A administração Luiz Henrique da Silveira (PMDB)também não deixou saudade para a causa indígena. Foi inclusive na era LHS que cresceu a atuação do hoje deputado federal Valdir Colatto (PMDB), sub-relator da comissão parlamentar de inquérito (CPI) que investiga possíveis irregularidades na Funai e no Incra.
Acusado pelo movimento em defesa dos índios de estar à frente dos interesses do agronegócio, madeireiras e grandes proprietários, o parlamentar se mantém implacável na defesa de suas bandeiras. Para ele, obstáculos da Funai dificultam os projetos no Estado, com custos extras que extrapolam orçamentos.
– A pauta que norteia a ação da CPI é garantir o direito à propriedade àqueles que a possuem, além de pensar ações de cidadania aos indígenas que os tirem da situação da miserabilidade.
Que seja. Enquanto isso, que os matos cresçam.
A presença indígena em Santa Catarina remonta a períodos muito anteriores à presença dos colonizadores. Os governos provinciais e estaduais reservaram duas terras indígenas no início do século 20. Muitos grupos permaneceram vivendo fora desses aldeamentos. A partir de mea-
dos da década de 1970 começou um processo de retomada de terras indígenas, afirma o Conselho Estadual dos Povos Indígenas. São três os povos indígenas em Santa Catarina: Guarani (litoral e algumas áreas no Oeste), Kaingang (principalmente no Oeste) e Xokleng (região do Vale do Itajaí). Pelo Censo 2010 do IBGE, são 16 mil os índios catarinenses. Estima-se que 10 mil estejam nas aldeias. Os 6 mil restantes estariam principalmente nos centros urbanos, e outros na área rural trabalhando em atividades sazonais como colheita de erva-mate e confecção de artesanato em acampamentos perto das cidades.
A presença fora das aldeias decorre principalmente da falta de terra para sobrevivência, esgotamento dos recursos naturais, necessidade de ensino e salário. Todos os povos enfrentam problemas, mas a situação dos Guarani é a mais delicada. São cerca de 1,6 mil em 21 comunidades, sendo que três aldeias partilham terras com Kaingang (Aldeia Toldo e Bugio na TI Ibirama La Klãno). Além disso, os Guarani que aguardam a demarcação da terra em Cunha Porã e Saudade, no Oeste, estão temporariamente em Toldo do Chimbangue.
Considerando-se a população que vivem nas TIs, há um aumento populacional nas últimas décadas. A demógrafa Marta Azevedo associa o crescimento a quatro fatores: aumento da taxa de fecundidade relacionada a melhorias no atendimento à saúde, crescente identificação de pessoas e de comunidades que anteriormente não se reconheciam como indígena, valorização étnica e autoreconhecimento da descendência indígena
olhar do cacique João Barbosa, 51 anos, está jururu. Na palavra de origem tupi-guarani, triste. Assim a reportagem o encontrou na manhã de 25 de fevereiro, isolado, em uma porção de terra emprestada pelos Kaingang de Toldo do Chimbangue, em Seara. Em um certo momento, os olhos avermelhados tingidos da noite de trabalho em um frigorífico da região se inundaram de lágrimas.
O coração do líder Guarani apertou no peito ao falar dos últimos 15 anos. Período em que foi expulso das terras entre Cunha Porã e Saudade, também no Oeste, sob alegação de que não lhe pertenciam. Na área seria formada a Terra Indígena Guarani Araça’í. Em 2007, o então ministro da Justiça Tarso Genro chegou a emitir a portaria. Porém, no mesmo espaço conviviam centenas de famílias de agricultores que argumentavam a compra de terrenos entre os anos de 1919 e 1923. Outra versão dá conta de concessões por meio da Companhia Territorial Sul Brasil, braço do Estado de Santa Catarina e responsável pela venda dos lotes. Nisso consiste parte do conflito: se os moradores compraram os lotes de forma legítima, ao serem desapropriados teriam direito à indenização do patrimônio.
Enquanto a batalha era travada no campo jurídico, no mato a tensão cresceu. Com medo, alguns Guarani saíram. Quem ficou, foi expulso com violência. Ano passado, a Justiça Federal anulou a portaria. Com isso, as cercas de 130 famílias de agricultores que viviam no local tiveram o direito de permanecer na área.
Apesar disso, os Guarani não desistem e esperam que os governos encontrem alternativas. Enquanto isso, no Araçaí de Seara, núcleos vão se dissolvendo com mortes e mudanças. No começo, eram 36 famílias. Hoje são 28.
– A demora em devolver aquele território ou conseguir uma área provisória é uma provocação para nosso povo. A gente vai segurando como pode, mas se a comunidade decidir voltar e brigar com os agricultores, quem vai ser o responsável? – pergunta.
O sofrimento decorrente da falta de espaços aumenta a cada dia. Na visão do cacique essa dor pode alterar a atitude dos Guarani, um povo que não é de confronto físico. A maior impaciência está entre os mais jovens. Se for necessário, eles chamam Guarani de outros lugares e em poucos dias conseguem reunir 3 mil índios. Por enquanto, permanece a voz da razão:
– Os governos federal e estadual precisam achar uma solução. Nós não queremos tirar os direitos dos agricultores. Culpado é quem vendeu as terras sobre área da União para eles.
O cacique sabe que o passar dos anos tem seu preço. Ele mesmo perdeu os pais, e mais recentemente, a irmã.
– Cada perda é perda de anos de vida. A preocupação é com as crianças, para quem se deseja um caminho bom e diferente do nosso. A previsão é de que neste ano se tenha um resultado. Se não, a única saída é voltar à terra tradicional e, aí, é viver ou morrer.
Tem outra coisa que causa desconforto ao cacique João Barbosa: em terra emprestada e com valores diferentes daqueles cultuados pelos Kaingang, os donos da terra, a comunidade de Araçaí não tem sequer a casa de reza opy, lugar onde manifestam a espiritualidade.
Para o teólogo e professor da Unisul Jaci Rocha Gonçalves, isso é um grave sinal.
– Os Guarani morrem em defesa da espiritualidade, e isso se revela nos suicídios na tribo Guarani-Kaiowá, do Matro Grosso do Sul – observa.
O estudioso acredita que a situação da terra possa levar os Guarani de Araçaí ao limite, causando estresse e desencadeando doenças.
rotagonismo da primeira à última linha. Primeira estudante indígena do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC, Jozileia Danza
Jagso Inácio Schild, 35 anos, é autora da dissertação Mulheres Kaingang, seus caminhos, políticas e redes na Terra Indígena Serrinha, defendida em fevereiro deste ano.
A Kaingang de 35 anos descreve a trajetória de lutas dela e do seu povo. Recorda os tempos de menina, quando era discriminada pelos colegas de escola que zombavam por ter “cheiro de fumaça”. Chega aos dias atuais, em que faz doutorado em Memória Social e Patrimônio Cultural, na Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
– Desde criança a gente vê antropólogos entrarem e saírem das terras indígenas. Eles vão para pesquisas, demarcação de terra. Vim de uma terra de retomada, foi uma disputa de território – afirmou em entrevista à Agência de Comunicação da UFSC.
No trabalho acadêmico, a geógrafa dá ênfase a três narrativas de luta de mulheres Kaingang nas décadas de 1960 e 1970:
– Houve uma luta grande do movimento indígena, que conseguiu se articular sem internet, telefone, dinheiro. Alguns artigos específicos (231 e 232 – direito aos costumes, território e crenças) nos asseguram o sermos quem somos. A promulgação da Constituição de 1988 veio depois.
Natural da Terra Indígena do Guarita (RS), ela passou por mais de cinco aldeias. Historicamente os Kaingang mudam bastante e tiveram aldeias migratórias em épocas de pesca, caçadas e colheita do pinhão, base da alimentação durante séculos.
– A gente sempre praticou muito o caminhar.
No caso dela, essa caminhada se faz além de simples passos. O pai de Jozileia morreu quando ela tinha 10 anos; a mãe, quando a filha era adolescente. A tia Andila, que cuidou da menina e a quem ela considera mãe, é apontada como grande influência. É uma das personagens da dissertação de mestrado. Era uma mulher corajosa: na década de 1970, Andila escreveu uma carta para o presidente Ernesto Geisel denunciando os arrendamentos nas terras indígenas e a intrusão dos colonos no Sul do país.
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As imagens das crianças foram captadas com autorização dos responsáveis na aldeia.