(Re) Unidos
SANTA CATARINA TEM 1.458 crianças e adolescentes que vivem em abrigos, enquanto 2.502 adultos esperam para adotar um filho. O perfil desejado pela maioria das famílias é um dos empecilhos para que a conta feche
TEXTO | VIVIANE BEVILACQUA
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sala de espera de consultórios médicos virou extensão da casa de Luiz Carlos e Maria de Fátima Veras desde que eles decidiram adotar Caroline Vitória, há 10 anos. A menina tinha pouco mais de um ano quando deixou o Lar Recanto do Carinho, em Florianópolis, para ganhar o sobrenome dos pais. Adoções como a de Caroline estão entre as mais improváveis, porque ela nasceu com vários problemas de saúde e são poucos os candidatos que aceitam esse desafio: uma prova imensurável de amor e desprendimento.
Caroline tem síndrome de Dandy Walker, uma má-formação cerebral congênita, provavelmente causada pelo histórico de drogas e álcool da mãe biológica durante a gravidez. A menina recebe alimentação via sonda gástrica, tem baixa visão, se comunica com dificuldade e precisa de cuidados médicos com frequência. Nada disso, porém, foi empecilho para a adoção. O amor falou mais alto.
– Nos aproximamos dela aos poucos e, quando vimos, estávamos irremediavelmente apaixonados – diz Maria de Fátima.
É possível dizer que a garotinha teve muita sorte. Crianças com problemas sérios de saúde dificilmente são adotadas no Brasil, assim como meninos e meninas maiores de cinco anos e grupos de irmãos. Em Santa Catarina, em julho, havia 1.458 crianças e adolescentes em programas de acolhimento, muitos deles em condições de ganhar novas famílias. De outro lado, 2.502 homens, mulheres e casais estavam à espera de uma criança para chamar de filho ou filha.
O problema é que o perfil desejado pelos adotantes costuma ser bem diferente do existente. Quase todos querem um bebê branco, saudável e que não tenha irmãos. Esse embate entre o desejo dos futuros pais e a realidade das crianças disponíveis para adoção acaba inviabilizando que os pequenos ganhem uma nova família. Muitas, infelizmente, estão fadadas a crescer nos abrigos até atingir a maioridade.
Na tentativa de mudar esse quadro e sensibilizar a sociedade para a importância da adoção tardia, a Assembleia Legislativa de Santa Catarina, em parceria com outras entidades, lançou recentemente a segunda etapa da campanha Adoção – Laços de Amor. O Poder Judiciário e o Ministério Público estaduais estão engajados e garantem que haverá maior agilidade nos processos de adoção, outro sério problema no Brasil.
A sensibilização da sociedade acontece por meio da divulgação de histórias reais, mostrando que, independente da idade, sexo, cor da pele ou se são saudáveis ou não, todas as crianças e adolescentes merecem crescer em uma casa, cercados de carinho e amor. E essa é uma via de mão dupla.
Assim como os pais de Caroline Vitória, que não enxergaram a saúde frágil da filha como um obstáculo, muitas famílias que adotam afirmam, sem dúvida ou hesitação, que são muito mais felizes e realizados hoje do que antes da adoção. Para eles, há muito amor envolvido.
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odos os dias quando chegava para trabalhar no Lar Recanto do Carinho, Maria de Fátima Veras ia dar uma espiadinha numa bebezinha, na sala do berçário. Como necessitava de cuidados especiais, as outras professoras e cuidadoras acabavam se encarregando das crianças maiores, e, de maneira espontânea, Fátima foi ficando cada vez mais responsável por aquela criança que tinha sérios problemas de saúde. Era ela quem levava a pequena até o Hospital Infantil Joana de Gusmão para consultas e internações. Seu marido, Reginaldo, trabalhava no hospital como vigia e também sempre que possível ia ver como a bebê estava.
Primeiro, eles começaram a levar a menina para casa nos finais de semana. Mais tarde, ela passou o primeiro final de ano com a família. Na hora de levá-la de volta ao Recanto do Carinho, foi um sofrimento só. Pensaram em apadrinhar Caroline, dar carinho, amor e ajudar financeiramente seu sustento. Mas não resistiram e, apesar de já terem dois filhos adultos e estarem na faixa dos 50 anos, época de começar a pensar na aposentadoria e aproveitar um pouco a vida, entraram com o pedido de adoção, que tramitou rapidamente. Já estavam irremediavelmente apaixonados pela menina, que tinha, então, pouco mais de um ano de idade. Agora, ela vai fazer 11.
– Nada foi pensado ou planejado, aconteceu naturalmente – diz Fátima, que é pedagoga pós-graduada, mas abriu mão da vida profissional para acompanhar a filha e prestar todo o atendimento que ela precisa.
É ela quem leva diariamente a menina para o Colégio de Aplicação da UFSC, às sessões de fisioterapia na Udesc e às consultas frequentes no Hospital Infantil Joana de Gusmão, onde Caroline é chamada pelo nome pela maioria dos médicos e enfermeiros, por ser frequentadora assídua. A vida dos Veras se transformou completamente nestes últimos 10 anos.
– É difícil? É. Trabalhoso? Também. Mas vale cada minuto que passamos junto da nossa filha – sintetiza Maria de Fátima.
A primeira etapa da campanha Adoção – Laços de Amor foi lançada em 2011 pelo Ministério Público, Assembleia Legislativa, Tribunal de Justiça e OAB/SC. Agora, a campanha foi reforçada com outros cinco parceiros: Defensoria Pública de Santa Catarina, Federação Catarinense de Municípios (Fecam), Federação de Indústrias do Estado (Fiesc), Secretaria Estadual de Assistência Social, Trabalho e Habitação e Secretaria da Saúde.
– Queremos mostrar que é possível tratar o tema de forma articulada. Cada criança e adolescente que está em abrigo terá a oportunidade de ter uma família – diz o procurador-geral de Justiça, Sandro José Neis.
Nesta parceria, cabe ao Ministério Público orientar os promotores de Justiça com atuação na área da infância e juventude para que priorizem a celeridade nos processos em que há crianças ou adolescentes acolhidos ou na destituição do poder familiar. Além disso, deverão ser efetivadas equipes técnicas compostas por analistas de assistência social e de psicologia em cada uma das mesorregiões de Santa Catarina. O coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude, promotor de Justiça Marcelo Wegner, acredita que este é o momento de rever erros e equívocos dos órgãos nos processos de adoção. As medidas com certeza vão beneficiar tanto crianças abrigadas quanto os candidatos a pais adotivos, que esperam ansiosos pela hora de se reunirem definitivamente com seus filhos do coração.
Matemática do afeto
A diferença entre o número de crianças e adolescentes em abrigos e os adultos interessados em adotá-los demonstra que ainda são necessários avanços na sensibilização da sociedade para reduzir essas contradições
quem pode ser adotado
quem pode ADOTAR
NÃO PODEM ADOTAR
OS PASSOS DA ADOÇÃO
"Saímos de lá com a certeza de que eles eram nossos filhos, só estavam perdidos por aí, até os acharmos"
Marta Palhano
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ssustador. É assim que Marta Palhano descreve o momento em que a mãe ou o pai precisam preencher uma lista com todas as exigências com relação ao possível filho adotivo: idade, sexo, cor da pele, cor dos olhos e cabelos, se precisa ser “perfeito” ou não, se pode ter alguma doença, se aceita um grupo de irmãos...
– É como se estivéssemos escolhendo uma mercadoria em um supermercado – observa.
Ela e o marido Patrick, entretanto, tinham apenas uma preferência: queriam adotar uma criança negra, um desejo de Marta desde a juventude. Foi o que costumam chamar de uma “lista aberta”, o que geralmente ajuda bastante a acelerar o processo de adoção. Mas eles não ficavam só esperando. Todos os meses iam até o juizado saber se havia alguma novidade. Até que um dia ligaram dizendo: “Os filhos de vocês chegaram”. Era um casal de irmãos.
Combinaram de conhecê-los em um abrigo de Itajaí no dia seguinte. Foi uma noite longa e insone. Em 28 de outubro de 2014 chegaram ao abrigo, achando que entrariam em uma sala onde estariam várias crianças brincando, entre elas o casal de irmãos. Mas não. Estavam só os dois, sentadinhos em um sofá. Arrumadinhos, penteadinhos, esperando para serem observados e – quem sabe – aprovados. Marta não consegue conter a emoção quando lembra da cena:
– Eles estavam lá, tão pequeninos, tão frágeis, nos olhando.
Pedro tinha um ano e 10 meses e Cecília, quase cinco. Ela era subnutrida, pesava dois quilos a mais do que o irmão. Ficaram no abrigo por uma hora. Pedro, que nem é ligado em futebol, convidou Patrick para jogar bola no pátio. Eles queriam muito agradar.
– Saímos de lá com a certeza de que eles eram nossos filhos, só estavam perdidos por aí, até os acharmos – diz Marta, ainda comovida com as lembranças.
Os novos pais preferiram não ler todo o processo das crianças. Sabem que a mãe morava na rua com os dois pequenos. Cecília, embora tão frágil e nova, era quem cuidava do irmão, até que fossem levados para o abrigo. Novos encontros vieram. Passeio no parque, sorvetes, almoços em família... Depois, fins de semana juntos, mas sempre eles tinham que devolver as crianças ao abrigo. Era um sofrimento para todos. Até que, quando faltavam dois dias para o quinto aniversário de Cecília, depois de oito horas de plantão, eles conseguiram a guarda provisória das crianças.
– A nossa casa ficou cheia. Foi tudo tão natural, tão mágico e tão perfeito que até assusta – comemoram Marta e Patrick, que estão juntos há 20 anos e moram em Porto Belo, onde a família fica completa com a mascote Gaya, companheira inseparável do pequeno Pedro.
Quando uma criança é levada a um abrigo, ela não pode ser adotada imediatamente. A Justiça tenta primeiro reintegrá-la à família biológica. Se não for possível, procuram-se outros parentes. Esse processo todo dura, no máximo, cerca de dois anos, que é o tempo previsto por lei para as crianças viverem em um abrigo. Na prática, porém, esse prazo costuma ser bem maior e, por isso, muitas crianças acabam crescendo sem um lar. Como a maioria dos aspirantes a pais não demonstra interesse nos mais velhos, eles só têm chance de sair do abrigo quando chegam à maioridade.
Bruna de Souza e a filha Laiz Eduarda
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om Bruna de Souza, 23 anos, a história aconteceu um pouco diferente. A mãe dela era HIV positivo e foi presa. O pai morreu. Os oito filhos foram divididos: os mais velhos tiveram como destino a casa de parentes e os dois menores – Bruna, com apenas um aninho e o irmão Cristopher, de dois – foram levados para o Lar Recanto do Carinho, em Florianópolis, porque teriam mais chances de ser adotados.
De fato, isso aconteceu. Aos quatro anos Bruna foi adotada por um casal. A história teria tudo para um final feliz, não fosse por um detalhe: a menina sentia amor filial por uma das funcionárias do Recanto do Carinho, chamada Neura, e não teve jeito de ficar na família adotiva. Chorava dia e noite, pois se sentia abandonada. Passado pouco tempo, tiveram que devolvê-la. Neura cuidava dela com carinho, mas não tinha condições de adotá-la.
– Eu a amava como minha mãe, e ninguém conseguiria mudar isso – relembra Bruna, que ainda tem um vínculo muito forte com esta senhora.
O casal devolveu Bruna para o abrigo e adotou gêmeas. Neura acabou saindo da instituição, numa tentativa de fazer com que a menina a esquecesse e pudesse ser adotada, o que nunca aconteceu. As referências de família que Bruna tem, da infância e da adolescência, são Neura e a coordenadora do abrigo, Márcia Lange Rilla, por quem nutre uma admiração e afeto profundos. Ao atingir a maioridade, Bruna saiu do abrigo e foi morar com uma amiga. Ela já trabalhava e se sustentava. Conheceu um rapaz, se apaixonou, engravidou e viveu com ele até a filha, Laiz Eduarda, completar um ano.
– Ele não prestava, e eu não queria para mim uma vida igual a que teve minha mãe – explica.
Bruna voltou a encontrar a mãe biológica, que não usa mais drogas, nem tem mais problemas com a Justiça. Moram juntas, pelo menos temporariamente. O grande sonho da menina é constituir uma família.
Quanto mais tempo uma criança vive em um abrigo, maior é a chance dela ter dificuldades de adaptação. Por outro lado, quanto mais tarde ocorrer a institucionalização e quanto mais próximo de um lar forem as características do abrigo, menores serão esses riscos. A explicação é da doutora em psicologia Marlizete Maldonado Vargas, autora do livro Adoção Tardia: da Família Sonhada à Família Possível.
O que se observa, diz a psicóloga, é que muitos abrigos ainda funcionam como depósitos de crianças, onde elas ficam isoladas do mundo, num ambiente bastante pobre em estimulação essencial para o desenvolvimento de suas potencialidades. Elas não aprendem a desempenhar o papel de filho, nem a se sentir pertencentes a um grupo que desempenha todas as funções de proteção e atenção das necessidades básicas de seus membros. Necessitam, então, de um período de aprendizagem para desempenhar o seu papel na família adotiva, tempo este que pode variar muito de criança para criança, independentemente de sua idade. Marlizete diz também que, quanto mais perdas a criança tiver sofrido, mais frágil
será a capacidade de confiar em alguém, especialmente em um novo
pai e uma nova mãe.
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esde que perdeu a mãe, Leonice da Luz Dias passou a ser abusada sexualmente pelo pai. Aos 17, como se rebelou contra a violência, foi mandada para fora de casa. Estava na rua quando foi encontrada por uma moça de uma igreja evangélica, chamada Rosângela da Luz Dias, que a ajudou. Começou a trabalhar como empregada doméstica, porque assim tinha onde dormir, já que morava no emprego.
Tempos depois, soube que Rosângela tinha uma filha de um ano, estava grávida de outra e precisava de alguém para cuidar das crianças. Leonice, como gostava muito dela, se ofereceu para ser a babá. Melhor impossível, ela pensava. Tudo ia bem, até que Leonice desenvolveu uma doença rara: a síndrome de Guillain-Barré, que provoca paralisia total.
– A minha patroa cuidou de mim durante um ano inteiro. Quando finalmente melhorei, soube que não seria mais a babá, e sim sua filha. Ela me adotou (embora a adoção não tivesse força legal porque a diferença mínima de idade entre as duas é de 10 anos, e a lei da adoção exige no mínimo 16).
Leonice, porém, passou a ser tratada como as outras filhas, com os mesmos direitos e deveres. Cursou faculdade, é cabeleireira especialista em cabelo afro. Anos depois, Rosângela ainda adotaria mais dois meninos, Felipe, com seis, e Vinicius, com oito anos, ambos com dificuldade de aprendizagem, provavelmente em função da mãe biológica ter sido usuária de crack durante a gestação. Hoje, eles estão com 14 e 16 anos. Mas a história não termina aí. Leonice pediu há pouco tempo na Justiça a guarda do sobrinho Zezinho, de 11 anos, que já mora com elas. Viúva de um piloto de helicóptero, Rosângela tem 58 anos e abriu mão da profissão de assistente social para cuidar da prole. A família mora atualmente em Governador Celso Ramos.
– Quando a gente engravida, tem o dever de amar o filho. Na adoção, o amor nasce espontaneamente.
A gente acolhe como se fosse nossa. Eu já tinha filhas quando adotei a Leonice, então, aquele desejo de ser mãe já estava suprido. Os dois meninos eram para ser meus, eles só nasceram da barriga errada. E agora chegou o Zezinho. Eu não faço planos, fico esperando o que Deus mandar. Se a família está completa? Não sei. Sempre digo que tive sete filhos. Uma já partiu, os outros estão todos aqui, sejam biológicos ou adotivos, não tem diferença nenhuma.
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