CARNE
FORTE
Como Santa Catarina conseguiu se tornar o único Estado do Brasil livre de febre aftosa sem vacinação e ampliou as exportações de proteína animal em 80% na última década
TEXTO | darci debona
fotos | tarla wolski
O
agricultor Alcino Fonini ainda recorda quando a febre aftosa se abateu sobre as cerca de 30 cabeças de gado que ele criava no interior de Santa Catarina. Em 1986, feridas apareceram na boca dos animais na Linha Cotovelo, interior de Coronel Freitas. O município, que fica a 30 quilômetros de Chapecó, foi um dos últimos que teve o rebanho contaminado.
– Veio um morador do Paraná que tinha gado com aftosa e passou a doença para várias propriedades. Uns dias depois, começamos a desconfiar que os animais estavam doentes e suspendemos o fornecimento de leite – lembra.
Fonini avisou os técnicos da Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cidasc), que interditaram a propriedade. Os animais não foram sacrificados, apenas vacinados. Na época, ele perdeu a produção de leite de um mês, entre mil e 1,5 mil litros, e não pode vender nenhum animal por dois meses.
Um caminhão que transportava gado contaminado por aftosa que passou pela estrada em frente à propriedade do pecuarista foi a principal suspeita de contaminação do rebanho. Focos de aftosa ainda foram registrados em Santa Catarina até o começo da década de 1990. O mais recente, em São Miguel do Oeste, em 1993. Um frigorífico que trouxe animais de Santa Helena, no Paraná, acabou transmitindo a doença.
– O fiscal identificou aftosa, houve emergência sanitária e foram sacrificados entre 400 a 500 animais – relembra o responsável pela defesa sanitária animal da Cidasc em São Miguel do Oeste, João Schuerne.
Antes disso, também ocorreram focos em Chapecó e Xanxerê. José Roso e Márcia Barbieri, veterinários que atuaram na região na época, lembram que ocorreu um foco na comunidade de Toldo Velho, em Xanxerê, cuja suspeita de contaminação era de animais do Paraná.
– O proprietário dos animais tinha um armazém. Era uma região produtora de suínos, e nós interditamos todas as propriedades. Nenhuma carga saía e todos os veículos precisavam ser desinfetados antes de deixar os criadouros – lembra Márcia Barbieri.
Controlado o surto, Santa Catarina deu início a um processo de combate à febre aftosa que hoje é exemplo para o país. Afinal, é o único Estado reconhecido como zona livre de aftosa sem vacinação, concedido pela Organização Mundial de Saúde Animal, título que neste ano completa 10 anos.
o
marco para o reconhecimento de SC como Estado livre de febre aftosa sem vacinação é de 2007. No dia 25 de maio daquele ano, o certificado foi concedido em Paris durante a assembleia anual da Organização Mundial de Saúde Animal, que leva a sigla OIE, referência ao antigo nome de Organização Internacional de Epizootias. Mas o trabalho começou há cinco décadas. Em 2000, o Estado já tinha erradicado a doença sem imunização, mas o reconhecimento veio sete anos depois.
– Em 1967, um programa do Ministério da Agricultura credenciou os Estados a vacinar para combater a doença. A primeira ação foi no Planalto Serrano, em 1971 – diz o epidemiologista Claudinei Martins.
Naquele ano, o jovem veterinário acabara de entrar na Secretaria estadual de Agricultura. Hoje, Martins é considerado uma referência no país no combate à aftosa.
Ele chegou a ocupar o cargo de gerente estadual de Defesa Sanitária. O epidemiologista também foi um dos autores, junto com o colega Clóvis Tadeu Improta, de um diagnóstico que há décadas apontou falhas nas campanhas de vacinação.
– A gente vendia a vacina, colocava na mão do produtor, mas ele não imunizava o rebanho – lembra Martins.
Muitos agricultores tinham resistência, alegando que a vacina afetava a produção de leite e acabavam jogando as doses fora. Com essa resistência, apesar das campanhas, o Estado chegou a registrar mais de 400 focos da doença por ano. A grande sacada foi implementar a chamada agulha oficial em que o produtor não era o responsável por vacinar: o Estado passou a contratar funcionários para essa função.
– Nós criamos a figura do vacinador comunitário, como eram chamados os práticos que existiam nas comunidades. Eles eram treinados para aplicar as vacinas e recebiam um valor por dose aplicada.
O epidemiologista destaca que a agulha oficial e a união dos setores envolvidos – produtores, indústrias e órgãos governamentais – foram fatores decisivos para que Santa Catarina se tornasse livre de aftosa sem vacinação. Mesmo assim houve resistência política e religiosa em relação ao programa.
– Eu tive que dar explicação até para o bispo – recorda Enedi Zanchet, funcionário aposentado da Cidasc, que trabalhou na região Oeste. Ele lembra de reuniões em que a autoridade religiosa estava presente.
O ex-gerente de defesa sanitária da Cidasc, Claudinei Martins, lembra que alguns anos após a vacinação com agulha oficial foram realizados testes com coleta de sangue do rebanho para que pudesse ser tomada a decisão de não vacinar, a partir de 1992.
– Cientificamente nós tínhamos segurança de que poderíamos retirar a vacina porque o rebanho estava protegido.
Para que a medida desse certo, no entanto, era necessário ampliar as medidas de controle de animais vindos de fora.
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araná e Rio Grande do Sul também tinham intenção de suspender a imunização. Para isso, os três Estados criaram o Circuito Pecuário Sul, que tinha o objetivo de buscar o reconhecimento da região como zona livre de aftosa sem vacinação.
– O Paraná acabou desistindo e apenas Rio Grande do Sul e Santa Catarina mantiveram o plano. Porém, como os focos da doença voltaram a aparecer no Uruguai e em municípios gaúchos, eles decidiram retomar a vacinação, mas nós continuamos em frente. Foi então que criamos as barreiras sanitárias nas divisas com os dois Estados e na fronteira com a Argentina – lembra Martins.
A médica veterinária Luciane Surdi estava na barreira do Goio-Ên, na divisa entre o município gaúcho de Nonoai e Chapecó, quando houve a decisão de fechar as barreiras para o Rio Grande do Sul, em 2001. A medida foi tomada após focos da doença serem identificados na cidade gaúcha de Joia. A medida pegou muita gente de surpresa, inclusive um produtor catarinense que estava no lado gaúcho com os bois de canga e não pode retornar com os animais para casa:
– Havia o costume de produtores emprestarem animais. Um morador havia cedido uma junta de bois para alguém no Rio Grande do Sul e estava voltando quando a barreira foi instalada. Tivemos que rechaçar a entrada da junta de bois desse produtor. Ele não gostou muito, mas se fez necessário naquele momento.
Até hoje, é proibida a entrada de bovinos vivos em Santa Catarina. Luciane lembra que os focos e a volta da vacinação no Rio Grande do Sul geraram pressão de alguns produtores pela retomada da imunização.
– Mesmo com as medidas, havia um certo risco e, por isso, alguns produtores fizeram protesto fechando o escritório da Cidasc em Chapecó e levando até terneiros lá – lembra a médica veterinária.
Com o fechamento das barreiras, começou o trabalho de fiscalização para coibir a entrada clandestina de animais, que poderiam trazer a doença. Luciane lembra que a Polícia Militar auxiliou nas barreiras. Foram flagrados bovinos entrando por balsas, atravessando o Rio Uruguai, ou então em estradas secundárias na divisa com o Paraná. Os animais apreendidos eram encaminhados para serem sacrificados em abatedouro autorizado, com tratamento para que qualquer possível presença do vírus fosse eliminada, transformando o produto em ração. Esse trabalho continua até agora.
– Há uma preocupação permanente porque continuam as tentativas de entrar com bovinos no Estado – afirma João Schuerne, da Cidasc de São Miguel do Oeste.
Em 28 de fevereiro deste ano, um caminhão de bovinos sem documentação de origem foi apreendido na BR-163.
O motorista soltou os 11 animais e um deles levou quase uma semana para ser capturado. O homem foi preso porque tentou agredir os policiais, e o caminhão ficou retido por 30 dias.
– Quando deu foco na Argentina, até o Exército foi chamado para patrulhar. O gasto para mobilizar os militares foi de R$ 10 mil por dia – completa Schuerne.
A fronteira foi monitorada inclusive com helicópteros no período mais crítico. O fechamento da divisa com o Rio Grande do Sul gerou problemas com o Estado vizinho, porque trancou o comércio de animais com o resto do país.
A solução encontrada foi criar corredores sanitários, permitindo a passagem de bovinos vivos por Santa Catarina, mas com destinação para outros Estados. Isso continua até agora. As cargas recebem um lacre na entrada que só é retirado na saída de solo catarinense.
Atualmente é permitida a entrada de porcos para abate, mas quem quiser ter um reprodutor de suínos ou ovinos precisa passar por uma quarentena monitorada. Isso acaba limitando a compra de reprodutores de outros Estados, assim como a participação em feiras.
– No início, os criadores levavam animais para exposição no Rio Grande do Sul e não sabiam que depois não podiam retornar – afirma Luciane.
O motivo é que o rebanho catarinense não é imunizado e, entrando em contato com outros animais de regiões que são vacinados, existe o risco de contraírem a doença. Por isso, eles acabam sendo vacinados também, 15 dias antes da viagem.
U
ma das exigências para manutenção do certificado de zona livre de aftosa sem vacinação foi a rastreabilidade do rebanho bovino no Estado, que em 2007 somava cerca de 3 milhões de cabeças. Naquele ano, foi lançado o Plano de Identificação dos Bovinos e Bubalinos de Santa Catarina, que começou a ser implantado em 2008.
– A rastreabilidade foi uma exigência da OIE, e Santa Catarina foi a pioneira em ter todo o rebanho rastreado. Esse foi meu último trabalho na Cidasc. Depois, me aposentei – diz Enedi Zanchet, que coordenou o processo de implantação dos brincos na regional de Chapecó.
Em 2008, o governo do Estado emitiu uma portaria obrigando a identificação. A partir de então todo bovino nascido no Estado precisa ter a identificação.
– Cada brinco tem um código de barras e um número que identifica a procedência de cada animal e acompanha todas as fases da vida até o abate, é como se fosse uma carteira de identidade, sem isso o produtor não pode emitir Guia de Trânsito Animal e não pode abater – explica Zanchet.
O veterinário, que agora é produtor de leite em Arvoredo, disse que a rastreabilidade colabora com a fiscalização dos rebanhos. Ele lembra que por ter sido pioneira, desde a decisão por voltar a vacinar, o governo catarinense teve que criar um modelo de controle:
– A maior dificuldade em todas essas etapas, desde a vacinação de casa em casa, é que tínhamos que aprender a partir da experiência, porque não havia um modelo a seguir. A decisão de não voltar a vacinar e optar por um modelo mais rígido de controle foi totalmente acertada. No início das barreiras, eram os veterinários que iam nos postos de fiscalização para orientar a população e, se a princípio havia uma certa desconfiança, com o passar do tempo as pessoas passaram a acreditar.
Na luta para a conquista do certificado de zona livre de aftosa sem vacinação, Santa Catarina ganhou um importante reforço no final de 2006, que foi a criação do Instituto Catarinense de Sanidade Animal (Icasa). Com apoio financeiro das indústrias, mas com atuação independente, o órgão contratou 115 veterinários, 115 auxiliares e bancou 115 veículos para auxiliar as atividades de fiscalização da Cidasc. O modelo foi baseado em experiências similares existentes na Europa.
– À medida que foi tirando a vacina houve necessidade de aumentar a vigilância e o controle de circulação de animais. Criamos o instituto para melhorar essa atividade de defesa sanitária e para dar agilidade nas decisões. Se precisasse comprar com rapidez alguma coisa, como foi no caso dos equipamentos para desinfecção dos carros nas barreiras, o Icasa ajudava – afirma o presidente do Instituto, Ricardo Gouvêa.
Atualmente ainda existem 84 médicos veterinários e mais 300 auxiliares administrativos vinculados ao instituto, que atuam em apoio ao sistema da Cidasc, no controle dos brincos, educação sanitária nas escolas. Recentemente, o Icasa firmou um convênio de cooperação técnica com a Federação da Agricultura de Santa Catarina (Faesc), para orientar os produtores ligados aos sindicatos rurais, sobre a sanidade agropecuária.
– É um trabalho que o Icasa faz para a sociedade, porque o status sanitário diferenciado é uma vantagem que o Estado tem para compensar o déficit de milho e garantir os 60 mil empregos diretos e outros milhares indiretos na cadeia da carne – diz Gouvêa.
Lembro que na propriedade do meu pai morriam os terneiros quando dava aftosa. Os porcos não conseguiam caminhar, e nós colocávamos eles num buraco. Tínhamos que levar água e comida até onde estavam. Mesmo assim, alguns morriam de fome
Alcino Fonini, criador de gado em Coronel Freitas
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ara manter o status sanitário diferenciado Santa Catarina mantém 63 barreiras nas divisas com Rio Grande do Sul e Paraná e na fronteira com a Argentina, além de um quadro de cerca de duas mil pessoas. São 280 médicos veterinários. Nas barreiras, são 500 pessoas contratadas. O orçamento anual da Cidasc é de R$ 200 milhões.
Claro que o contingente não é apenas para combater a aftosa, mas todas as enfermidades de animais ou plantas que representem riscos para Santa Catarina. Mas a doença é a que tem maior impacto para a economia catarinense.
– A aftosa é a mais temida porque ela tem um impacto econômico muito grande. Como é um vírus, a contaminação é muito rápida. A doença já veio até em lã de ovelha. Nós nos mantemos em alerta e recentemente mandamos um técnico para os Estados Unidos para capacitação nesse combate – explica Barbieri.
Ele afirma que o Estado está preparado para, no caso de um foco, agir o mais rápido possível:
– Um foco suspenderia as exportações, mas os países compradores até aceitam se conseguir debelar imediatamente o foco, caso isso ocorra as propriedades num raio de três quilômetros são interditadas e os animais devem ser sacrificados. Imagine o prejuízo se ocorrer numa região de grande produção, além disso todas as férias e aglomerações de animais seriam suspensas imediatamente.
Além disso, o Estado realiza coletas de sangue de animais de seis propriedades em cada uma das 19 regionais, por semestre.
Ele afirmou que a preocupação com a aftosa é tamanha que, recentemente, esteve em Brasília para discutir os riscos de um foco ocorrido na Colômbia. Depois de cinco décadas de esforço, qualquer risco precisa ser considerado para que Santa Catarina continue sendo exemplo para o Brasil.
Em 10 anos, a exportação de suínos cresceu 48,5%, passando de 184 mil toneladas, em 2006, um ano antes da emissão do certificado de zona livre de aftosa sem vacinação, para 274 mil toneladas no ano passado. O faturamento cresceu 79% no período, passando de US$ 310 milhões para US$ 555 milhões.
O certificado permitiu acessar mercados mais exigentes. Santa Catarina é o único Estado que exporta carne suína in natura para Japão e Estados Unidos, por exemplo. E a expectativa é de que até o final do ano comece a embarcar para a Coreia do Sul, país que já mandou uma missão em maio deste ano para visitar plantas frigoríficas catarinenses.
O certificado também beneficiou as exportações de frango, que saíram de 757 mil toneladas em 2006, para um milhão de toneladas no ano passado, num avanço de 32% e atingiram US$ 1,7 bilhão, 76,3% a mais do que em 2006.
Um dos produtores beneficiados pelo aumento das exportações foi Mário Fries, que mora em Chapecó e tem duas granjas em Guatambu. Filho de agricultores de Arabutã, que já criavam suínos, ele montou sua própria granja em 1989, com 30 matrizes suínas, as fêmeas reprodutoras. Então, foi ampliando a produção.
O certificado de zona livre de aftosa permitiu a abertura de novos mercados. Com isso, também pude ampliar a produção e, embora o preço não tenha subido tanto, consegui ganhar em escala. Além disso, se desse um foco de aftosa traria prejuízo não só com animais doentes, mas também travaria todos os mercados. Seria o caos, não teríamos para quem vender
Mário Fries, CRIADOR DE suínos EM CHAPECÓ
O grande salto foi na última década, depois do certificado de zona livre de aftosa sem vacinação.
Há 10 anos, o criador tinha 400 matrizes na propriedade, com produção de 180 leitões por semana. Em 2013, ele comprou uma outra propriedade, de 80 hectares, onde investiu R$ 4,3 milhões com a terra, galpões e equipamentos, além de outras mil matrizes. Agora, ele tem 1,4 mil reprodutoras e produz 750 leitões por semana. Esse animais vão para outros produtores para uma primeira etapa de criação e, depois, para outros que vão engordar os suínos até o abate. Hoje, as fases da criação são segmentadas.
Com a ampliação da produção, Fries também criou mais empregos. Ele passou de quatro funcionários em 2007 para 13, atualmente.
– O certificado de zona livre de aftosa permitiu a abertura de novos mercados. Com isso, também pude ampliar a produção e, embora o preço não tenha subido tanto, consegui ganhar em escala. Além disso, se desse um foco de aftosa traria prejuízo não só com animais doentes, mas também travaria todos os mercados. Seria o caos, não teríamos para quem vender – explica.
Alcino Fonini, criador de gado em Coronel Freitas, lembra que antes da erradicação, casos de aftosa eram comuns, com surtos de 10 em 10 anos ou até de dois em dois anos.
– Lembro que na propriedade do meu pai morriam os terneiros quando dava aftosa. Os porcos não conseguiam caminhar, e nós colocávamos eles num buraco. Tínhamos que levar água e comida até onde estavam. Mesmo assim, alguns morriam de fome – destacou.
Há três décadas, no entanto, Fonini não tem mais problemas com a aftosa. Claro que o fato de não poder trazer animais vivos de outros Estados acaba dificultando a compra de reprodutores, por exemplo. O produtor acredita que seria melhor se Paraná e Rio Grande do Sul também tirassem a vacina. Apesar das limitações, ele hoje está tranquilo. Dos tempos que enfrentou a doença, quando o rebanho tinha 30 cabeças de gado e a produção de leite ficou comprometida, até agora, a situação melhorou: o rebanho passou para 130 animais e o medo do vírus ficou para trás.
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