Fronteira

com uma economia que é um mosaico formado por imigrantes de diferente culturas, Santa Catarina se mantém como destino de estrangeiros que buscam espaço para empreender

imagens | marco favero

odou Kara, 26 anos, nasceu no Senegal. Não é refugiado de guerra nem fugitivo de catástrofe. Mas faz quatro anos que deixou Dacar, a capital do país localizado na África Ocidental, e mora no Brasil. Trabalhou em São Paulo e Rio Grande do Sul. No último verão, desembarcou em Florianópolis. Vendia artesanato nas areias da Barra da Lagoa quando sentiu uma diferença em relação aos outros lugares. Percebeu que ele e a Ilha tinham algo maior que podia os unir – além do jeito das pessoas que lembrava o povo do país de origem, o clima praiano e a musicalidade –, potencial para empreender.

– Eu sei fazer muitas coisas e considerei que Florianópolis, assim como Santa Catarina, era um bom lugar para isso – conta o senegalês, enquanto mostra vestidos, camisas, batas e calças cortadas e costuradas por ele.

Em seguida, abre um tecido em algodão tingido em colorido e diz com um bonito sorriso:

– Veio de lá. Já estou até importando do Senegal.

Modou saiu da terra natal movido pelo desejo de conhecer outros povos e interagir com culturas diferentes. Quando chegou ao Brasil, trabalhou como lavador de carro, galvanizador e instalador de cabo de fibra ótica nas cidades de São Paulo, Caxias do Sul e Porto Alegre.  Até se mudar para Florianópolis. Porém, entre a sensação de estar em um lugar propício para explorar os saberes trazidos do Senegal – onde cursou Tecnologias e Línguas – o que faz com que se expresse em oito idiomas – houve um período difícil. Passou até pela experiência de “dormidor de rua” nos bancos da Praça XV e sob marquises dos prédios.

– Na temporada, o trânsito fica muito pesado, os ônibus demoram e muitas vezes quando eu chegava não tinha mais vaga no albergue municipal – recorda.

Quando isso acontecia, o jeito era fazer da mochila um travesseiro, onde também guardava o dinheiro das vendas, documentos e objetos de uso pessoal. Foi assim até que certo dia uma pessoa que faz um trabalho social com moradores de rua se aproximou. Era um dia muito especial, cinco de maio, data do aniversário de Modou. Surpreso com a cultura, clareza de ideias e planos do jovem senegalês para o futuro, o homem convidou Modou para dormir na casa da família.

– Ainda estou lá. Ganhei uma máquina de costura e ele me ajuda com dinheiro para trazer tecidos de uns amigos que produzem no Senegal. Um investimento de cerca de R$ 15 mil, que espero compensar aos poucos.

Nenhum pedaço de tecido é jogado fora. Do que sobra faz turbantes, colares, brincos. Os preços das peças variam de R$ 20 (brincos) a R$ 130 (vestido feminino). Também faz roupa sob encomenda, sugere modelos e aceita moldes já desenhados.

A iniciativa acaba de render bons frutos: uma cliente ficou tão satisfeita que prometeu colocar algumas confecções criadas pelo artesão num ponto de venda.

– É bom, pois hoje vendo em pontos estratégicos como a Feira da Maricota (em frente ao Terminal Integrado do Centro) e eventos voltados a imigrantes. Mas eu pretendo ter a minha própria loja no Centro de Florianópolis.

Modou fala inglês, francês, espanhol, português, italiano, árabe, hebraico, wolof (senegalês). Também dá aulas de percussão em um espaço recém-criado no bairro do Rio Tavares, Sul da Ilha. Assim, diz, conseguirá dar conta das pessoas que dependem dele. No Senegal, explica, há uma tradição dos filhos adultos tornarem-se responsáveis pelas famílias.

– Moramos juntos, pais, filhos pequenos, filhos casados, primos, tios. Como se fosse uma comunidade, um único e grande grupo reunido.

Faz também um trabalho social que ele desenvolve. Modou frequentou uma instituição para crianças e adolescentes, uma espécie de reformatório na cidade de Touba. O lugar tem capacidade para cerca de 100 meninos e depois que eles saem assumem o compromisso de ajudar na manutenção. Por isso, além de enviar dinheiro para a família, Modou faz depósito mensal para auxiliar nas despesas.

Sobre dificuldades que encontra na condição de imigrante decidido a empreender, o rapaz conta que a burocracia ainda é entrave. Diz que muitos amigos, mesmo com potencial, encontram dificuldades por causa do idioma e que nem sempre ocorre a validação de cursos profissionais. Isso acaba fazendo com que muita gente que podia estar produzindo e gerando emprego, inclusive para os compatriotas, veja-se obrigada a se virar como ambulante.

– Estamos providenciando a documentação para me legalizar como microempreendedor e desenhando a logomarca – diz, estendendo a mão com um cartão de visita com e-mail, telefones e imagens de alguns produtos.

Para alguém que está começando, Modou não poupa o tamanho dos sonhos. No cantinho do cartão da Senegal Ilha Arte se vêem impressos os dizeres “importação e exportação”. Então está, Modou:

Yallah Nala Yallah defal Ndam.

Como se deseja boa sorte, em wolof, a língua senegalesa.

Fartura de  Sultão

— Você sabe o que é um sultão? Era um homem rico, que vivia em palácios luxuosos com muitas mulheres.

— Você é um sultão?

— Não. Ainda não tenho mulher, mas muito doce para vender e quem sabe um dia serei rico...

 

conversa em tom de brincadeira se dá numa mesa colocada à frente do número 231 da Rua João Pinto, no Centro de Florianópolis. Ali o jovem Hisham Yasin, 28 anos, montou a Sultão Doces Árabes. O rapaz veio da Síria e se mudou com a família de Damasco, a capital do país que há sete anos enfrenta uma guerra que assombra o mundo.

Antes do conflito a Síria contava com 23 milhões de habitantes. Mais da metade da população foi obrigada a deixar os lares. Dentro do país há 6,6 milhões de deslocados. Para a Agência da ONU para os Refugiados (Acnur), 4,7 milhões de pessoas estão em zonas de difícil acesso e cidades sitiadas. A guerra obrigou 4,9 milhões de pessoas a fugir do país, segundo dados do Acnur do mês de fevereiro deste ano.

– Não tinha mais como ficar lá.

Ou morre pelas bombas ou de pobreza, pois o alimento não chega ou está tão caro que ninguém consegue comprar – explica.

Hishan chegou ao Brasil há quase três anos. Inicialmente foi  para o Mato Grosso, onde recebeu amparo de amigos e preparou a vinda de familiares. Para conseguir o visto não foi tão difícil, pois a legislação brasileira recebe refugiados em caso de questões humanitárias como perseguições étnicas e conflitos armados. Ao mesmo tempo, a lei dos refugiados garante aos estrangeiros documentos como carteira de identidade, CPF e carteira de trabalho. A lei só não prevê ajuda financeira. Mas os sírios contam com parentes e amigos que já vivem por aqui.

Essa solidariedade está ajudando bastante. Há sete meses Hisham decidiu se mudar para Florianópolis, lugar em que existem muitos compatriotas. Agora mora com os pais, Sana Jalal e Sameer Alrefai, 25 anos, que em agosto vai oficialmente virar cunhado.

Sameer tem um papel importante na Sultão: é ele quem faz os produtos. De suas mãos saem doces com nozes, damasco, pistache, tâmaras, amêndoas. Também esfihas, kibes e outros salgados típicos. Sameer tem experiência no manejo das massas e receitas, pois em Damasco trabalhava em uma padaria. O ponto fica aberto das 9h às 21h. Em média vendem 500 unidades por semana.

A empresa está no terceiro mês de atividades. Para começar, os rapazes precisaram de ajuda dos amigos que vivem no Mato Grosso que assumiram o aluguel inicial (R$ 1,3 mil mensais) e a compra de equipamentos como forno, freezer, balcões. Os produtos para a fabricação dos doces e salgados são adquiridos de uma rede que entrega a cada 15 dias. Além do que é vendido no ponto, a Sultão Doces Árabes aceita encomendas para festas.

O próximo passo está mapeado:

– Vamos montar caixas com os produtos e colocar nos mercados da cidade – avisa Hisham.

 

Um passo à frente

história de Rachel Fils Aimé, 30 anos, passou por grandes mudanças nos últimos tempos. A estudante tímida que levava uma vida simples junto com a família em Porto Príncipe, capital do Haiti, precisou de coragem. Sete anos depois do terremoto que em 12 de janeiro de 2010 devastou a capital haitiana, ela percebeu que o desejo de melhorar a situação não se realizava.

A economia do país se mantinha estagnada, não havia empregos e Kraf Création, uma espécie de grife de calçados e roupas que administra com o namorado, não cobria as despesas com linhas e agulhas. O jeito foi deixar o país.

Mal chegou e começou a trabalhar como ambulante na praia. Mas a moça achou que podia fazer mais do que vender produtos feito por outras pessoas. Recomeçou o negócio que mantinha em Porto Príncipe. Desenhou e montou sandálias, bolsas, brincos, colares, roupas. Preços variam de R$ 20 a R$ 200. O cliente tem preferência e pode sugerir modelos, cores, matérias-primas a serem utilizadas.

Há sete meses, Rachel ocupa os dias estudando Gastronomia, no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC)  e aprendendo a falar português, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mas também faz novas peças, especialmente sandálias e bolsas, que parecem agradar mais. A haitiana tem conhecimentos em artesanato de couro e tecido, sabe costurar e lida bem com sistema de informática.

– Eu quero fazer estoque para vender no verão. Mas não gostaria de trabalhar como ambulante, e sim colocar à venda em bancas e lojas.

Rachel acredita que hoje o maior problema para o desenvolvimento da atividade num lugar estranho é a comunicação. Tanto que frequentemente ela diz:

– Nwen pa konprann. Kisa ou di ...  (Não estou entendendo... Como se diz?...).

Por isso, considera importante as aulas na UFSC, pois aos poucos vai conseguindo se fazer entender pelas pessoas. Recorda que, apesar de ser um país pobre, a educação no Haiti era boa. Pelo menos até o terremoto que, além de destruir escolas e universidades, matou muitos pesquisadores e professores. A catástrofe enfraqueceu o sistema educacional. Também vieram o irmão dela, de 27 anos, que mora em Porto Alegre, e cursa Mecânica; e o outro, de 20 anos, que faz Matemática, também no IFSC. A mãe, 68 anos, é viúva e ficou. Os filhos remetem dinheiro para ajudá-la.

Rachel estava na casa dos avós, num bairro a cerca de meia hora do Centro de Porto Príncipe, quando, às 4h20min, o terremoto revirou a cidade.

– A casa da minha mãe foi destruída. Todas as pessoas ficaram na rua, sem nada, andando de um lado para o outro. Muito triste e trágico para nós.

Rachel mora de aluguel em um kitnet próxima da UFSC, onde funciona o que chama de oficina. O lugar está cheio de caixas com produtos prontos e sacolas onde guarda o material para novas peças. Enquanto a Kraf Création aguarda o verão catarinense para aumentar as vendas, a haitiana enxerga cada pessoa com quem conversa como um cliente em potencial:

– Faço penteados afros com trança, lenço, turbante. Mas, caso você não goste, também posso fazer manicure – avisa.

Nem sempre se trata de gosto. É questão de estilo. Mas é preciso reconhecer que aos poucos a jovem tímida que seguiu assustada para uma viagem imigratória está achando seu espaço. E opções de línguas existem, pois ela aprende português e, fala inglês e francês. E sorri quando alguém arrisca o crioulo, dialeto haitiano, agradecendo pela entrevista:

– Mési, Rachel.

Terra fértil para empreender

diversificada economia catarinense – que assenta a produção na indústria, no comércio e na agricultura – permite ao Estado enfrentar melhor os períodos de crise. Para se ter uma ideia, neste começo de ano, enquanto a atividade econômica brasileira media apenas 0,29% segundo o IBC-BR, calculado pelo IBGE, em Santa Catarina, o índice crescia 2,71% no primeiro trimestre. Boa parte dessa multiplicidade é uma herança histórica de empreendedores que escolheram a região para montar negócios e prosperar.

As levas de estrangeiros que deixaram a Europa no século 19 ainda têm reflexo em empresas que seguem pujantes no Estado. É o caso dos irmãos Bruno e Hermann Hering, imigrantes alemães que fundaram a Companhia Hering em setembro de 1880, há 137 anos. A empresa hoje gera 4 mil empregos e é a maior franquia de moda do Brasil. Foi a primeira empresa têxtil a exportar, em 1964.

 Carl Göttlieb Döhler, que fundou a Döhler em dezembro de 1881, em Joinville, é outro imigrante alemão que deixou seu legado na indústria têxtil. Hoje, a empresa familiar está na quinta geração, tem 3 mil empregados diretos e produz até 1,4 mil toneladas de tecidos por ano.

Para sair do ramo têxtil, há a história de Augusto Emílio Klimmek, da Condor, que em 1902 chegou em São Francisco do Sul com o filho Alfredo. Subiu para São Bento do Sul, no Norte do Estado, e junto com o amigo Germano Tempel fundou a empresa Klimmek & Cia de escovas de dentes, escovas para unhas e pentes. Hoje, a marca está presente em todos os lares brasileiros e no exterior.

Em diversos segmentos, as histórias de imigrantes bem-sucedidos do passado em Santa Catarina são inúmeras. Mas o Estado que acolheu tantos viajantes no passado continua como porto seguro no presente. Este ano, a Junta Comercial de SC (Jucesc) registrou a abertura de 22 empresas de estrangeiros – portugueses, argentinos e alemães lideram a lista. Em 2016, foram cerca de 40 negócios abertos por pessoas de fora.

– Nosso perfil é de um Estado muito empreendedor e mais de 90% das empresas no Estado são pequenas e médias. Muitos começam como microempreendedores individuais, mas logo prosperam, expandem, geram emprego e renda – diz Julio Marcellino, presidente da Jucesc.

Na Grande Florianópolis, o Sebrae tem atendido uma média de três estrangeiros por semana que buscam o serviço com intenção de abrir uma empresa e formalizar um serviço. Haitianos e uruguaios lideram as buscas na região. Já na região de Itajaí, haitianos lideram os atendimentos, que chegam a 50 por mês.

– Eles buscam uma maneira de formalizar o negócio. É uma forma de gerar renda para si mesmo e as famílias, mas também de contribuir para o desenvolvimento da economia local – diz Soraya Tonelli, coordenadora regional do Sebrae/SC na Grande Florianópolis.

Onde buscar ajuda

Conselho Estadual das Populações Afrodescendentes de Santa Catarina CEPA/SC

cepa@sst.sc.gov.br

Coordenadoria Municipal de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial (Coppir)

coppir@gmail.com

Conselho Estadual das Populações Afrodescendentes de Santa Catarina CEPA/SC

cepa@sst.sc.gov.br

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