MANCHAS

NA PISTA

vítima de uma colisão fatal, motociclista se torna alvo de dois assaltos em uma madrugada que expõe o avanço da criminalidade no túnel Antonieta de Barros, em Florianópolis

TEXTO | emerson gasperin E LEONARDO THOMÉ

Q

uando subiu na motocicleta CG Titan vermelha, André Pereira Chaves, 40 anos, não via a hora de chegar em casa. Tinha pressa em alimentar o cavalo, comprado recentemente e ainda com prestações a pagar. Antes de receber R$ 300 pelos três dias de trabalho em um rodeio, havia sido presenteado com um par de esporas, uma camisa e um chapéu. Despediu-se do amigo. Ligou a moto e deixou o Centro de Tradições Gaúchas (CTG) Os Praianos, no bairro Forquilhinhas, em São José. Eram quase 3h de segunda-feira, 8 de maio.

O destino é a Servidão Custódio, no Rio Tavares. A mulher Vanusa e o cavalo Tordilho estão a 27,5 quilômetros de distância. O trânsito da madrugada é tranquilo. Ao se aproximar do túnel Antonieta de Barros, André já superou mais da metade do caminho. Na primeira curva no interior da galeria que leva ao sul da Ilha, a moto começa a ziguezaguear. São 3h23min. O veículo parece não ter comando. Vai para lá, para cá e colide contra a mureta que separa a pista de rolamento da passarela do túnel. O capacete racha. A mochila voa. André fica inerte no chão. Um longo filete de sangue escorre.

Dois minutos depois, um homem se aproxima da vítima. Levanta o boné e coça a cabeça. Carros passam do seu lado. Com um isqueiro na mão, visivelmente na fissura da droga, ele cutuca André, que permanece estático e inconsciente. O morador de rua identificado como Bruno Alves Fernandes Ribeiro, 21 anos, então se agacha e começa a mexer nos bolsos do motociclista. Rouba a carteira, com documentos e R$ 300, e o celular. A ação dura pouco mais de um minuto. Em seguida, foge no sentido da Prainha, aos pés do Morro do Mocotó.

O socorro estava a caminho e o motociclista ainda respirava. A moto, que foi parar a cerca de 80 metros do corpo, no outro lado da pista, tem o farol quebrado. Um Fiat Uno branco de duas portas passa lentamente ao lado de André. Encosta junto à moto e um dos ocupantes desce. Rapidamente, o homem assume a moto avariada e deixa o local às 3h35min, sem capacete, no sentido bairro. A sequência de imagens, captadas pelas câmeras de monitoramento do túnel, é perversa.

– Foi um absurdo. Em vez de chamarem por socorro, ajudarem um ser humano, roubaram o homem enquanto ele agonizava. Estou bem indignada com isso. Ele tinha trabalhado o dia inteiro, ganhou seu dinheirinho e, além de se acidentar, foi roubado duas vezes – lamenta a delegada Ester Coelho, titular da 2a Delegacia de Polícia da Capital, no Saco dos Limões.

Na tarde de quarta-feira, Ester e a equipe pren­deram Bruno na região conhecida como “cracolândia”, na Prainha, após a saída do túnel rumo ao Centro. Em depoimento, o acusado diz que trocou o celular por crack e gastou os R$ 300 com a droga. Na prisão, estava com a carteira do motociclista e um cartão do Santander. O outro cartão, com a senha anotada na parte de trás, sumiu. Justamente o da conta em que o laçador mantinha uma poupança. A polícia afirma que saques bancários foram feitos por outro morador de rua. Identificado e com mandado de prisão aberto, buscas são feitas para localizá-lo.

No entanto, nem isso é garantia de permanência na cadeia. O homem que roubou a carteira foi solto horas depois. Já que o prazo do flagrante, de 48 horas, havia expirado 12 horas antes. Nascido em Florianópolis, Bruno já soma a sexta prisão em flagrante nos últimos três anos. Agora, Ester pretende fundamentar o inquérito policial para encaminhá-lo à Justiça com um pedido de prisão preventiva. Um suspeito de roubar a moto de André foi interrogado pela delegada. É morador do Ribeirão da Ilha, mas alega que estava dormindo. Como a imagem do rosto não é clara, a delegada busca mais elementos para pedir a prisão.

À

s 4h30min de segunda-feira, Vanusa Ilha Pinto, 42 anos, mulher de André, acordou sobressaltada. Estranhou a ausência do marido em casa. Ligou vários vezes para ele, mas o celular estava desligado. Procurou amigos, mas ninguém sabia do paradeiro do zagueiro amador que costumava jogar futebol três vezes por semana em campinhos no Rio Tavares.

Vanusa telefona para José Adílson, o Sabiá, com quem o marido trabalhara no rodeio. Ele conta que André havia partido de madrugada. A aflição só aumenta. Ela liga para todos os hospitais da região. Inclusive o Celso Ramos, centro da Capital, onde ele estava. Sem os documentos e a placa da moto, ninguém sabia quem era o gaúcho de Caçapava do Sul.

– Eu perguntava por André. Não por alguém sem identificação, nunca imaginei que algo assim iria acontecer – conta.

Mesmo com as imagens do marido acidentado sendo roubado circulando nos noticiários, Vanusa seguia sem informações. Na manhã de terça-feira, a Guarda Municipal encontrou uma moto abandonada no Estreito, região continental de Florianópolis. Desconfiados, puxaram o número do chassi e descobriram o nome e o telefone da mulher de André. Quando ela atendeu a ligação, contou à polícia que o marido estava desaparecido desde domingo.

– Foi então que descobri o que aconteceu. O que mais me chocou foi a brutalidade. Por mais que estivessem drogados, nenhum deles pensou em pedir socorro. Só em levar o que ele tinha. Foi muito horrível. Não consegui olhar a filmagem até o fim. Machucou demais – desabafa.

André sempre cultuou as tradições campeiras. O amigo Leandro Nunes, 42 anos, sócio de uma lavação no Rio Tavares que fica junto a um posto de combustível onde o gaúcho trabalhou durante três anos como frentista, o define como “laçador dos bons”. Em Florianópolis há seis anos, participava de rodeios no Rio Grande do Sul. Quando a premiação era boa, partia com Vanusa atrás do dinheiro das competições.

Depois de deixar o emprego no posto, começou a montar móveis em casa, onde tem uma pequena marcenaria. Empregado em uma loja no Centro, fazia estandes, cômodas, raques e o que a clientela quisesse. O sobrinho Ricardo Moura, 17 anos, diz que André estava feliz. O cavalo que comprara era um dos motivos dessa alegria:

– Ele dizia: “Estou realizado, moro na praia e ainda ando a cavalo por aí”.

Antes do acidente, André passou o domingo como gostava. De olho nas provas de tiro de laço do rodeio. Negociou e vendeu selas, estribos, freios, rédeas, cabrestos. Trabalhou na barraca de Sabiá, amigo de Caçapava do Sul e dono de uma selaria que veio expor e vender os produtos no rodeio. Quando ia embora, Sabiá o convidou para dormir na barraca. André recusou, argumentando que o cavalo Tordilho só tinha comido de manhã.

Amigos e familiares acreditam que André sofreu um mal súbito ou acidente vascular cerebral (AVC) antes de se chocar na parede do túnel. Mas o laudo cadavérico do Instituto Geral de Perícias (IGP) aponta que ele não teve infarto, parada cardíaca ou AVC. A causa da morte foi traumatismo torácico e hemorragia interna causada pelo choque.

– A lesão do choque foi mortal – resume Rodinei Tenório, diretor do Instituto Médico Legal (IML).

O laudo toxicológico só vai ficar pronto em dois meses. O Diretor do Instituto de Criminalística do IGP, Walmir Djalma Gomes Junior, avaliou as imagens das câmeras de segurança e acredita que ele dormiu no volante.

— Não é porque o cara está de moto que não vai dormir. Se está cansado, vai dando uma cochilada e, quando vê, se perde.

T

udo se encaminhava para mais uma jornada tranquila na central de monitoramento do túnel Antonieta de Barros, na alça de acesso da Via Expressa Sul ao bairro Saco dos Limões. Faltavam pouco menos de quatro horas para a operadora Miriam Teodoro, 46 anos, encerrar o expediente e nenhum evento – como se diz no jargão da área – havia sido registrado naquela madrugada. De repente, em uma das quatro telas que recebem as imagens captadas pelas câmeras de vigilância, algo chamou sua atenção: uma moto andando sem condutor, cambaleando até bater na mureta direita da galeria no sentido centro-bairro e cair.

Miriam então acionou outra câmera para tentar encontrar o motociclista. Avistou um vulto a cerca de 80 metros de distância do ponto em que a moto tinha parado, na pista junto à mureta oposta. Aproximou o foco e viu o homem imóvel no chão. Imediatamente, ela ligou o semáforo vermelho pelo computador à esquerda da bancada posicionada diante da parede com os monitores, interrompendo o tráfego na referida pista. Em seguida, telefonou para o posto da Polícia Militar Rodoviária (PMRv) do bairro Campeche, que responde pelas ocorrências no local.

– Aí chamei o Samu. Enquanto eu falava com o atendente, surgiu na tela um rapaz rondando o motociclista inconsciente. Depois, ele começou a fuçar os bolsos do cara para roubá-lo. É muito angustiante assistir àquilo e não poder fazer nada – diz.

Há 12 anos empregada na Iguatemi Consultoria e Serviços de Engenharia, empresa contratada pelo Departamento Estadual de Infraestrutura (Deinfra) para gerenciar o túnel, a ex-assistente administrativa de uma atacadista de alimentos já presenciou “de tudo” – de consumo de drogas a suicídio, de tentativa de homicídio a prostituição; além, lógico, de inúmeras colisões por imprudência ou embriaguez. Logo que começou na função, quando o monitoramento ainda era feito na torre da PM da cabeceira insular da ponte Colombo Salles, testemunhou um acidente com morte.

– Estava acontecendo na minha frente, ao vivo, não era filme! Fiquei chocada, chorei demais. Com o passar do tempo, a gente se conscientiza de que nosso papel é procurar assistência às pessoas.

Mas, por mais calejada que esteja, ela não deixa de se surpreender com cenas que, por dever de ofício, não pode desviar o olhar. Como a da prostituta que fazia programas em um nicho entre as duas galerias do túnel. Segundo a operadora, a mulher levava uma sombrinha para tapar a câmera e, assim, satisfazer os clientes com alguma discrição. Quando estava de bom humor, chegava a dar tchauzinho para as lentes.

– São pessoas que vivem na rua, o túnel é como se fosse a casa delas. Elas agem naturalmente, você é que é o invasor – reflete.

Casada, dois filhos (um de 25 e uma de 16), Miriam faz parte de uma das cinco duplas – quatro titulares, uma de prontidão caso alguém se ausente – que se revezam no monitoramento. Além do profissional que fica de olho nas imagens, um eletrotécnico completa cada par. Trabalham 12 horas, folgam 36. De acordo com uma de suas colegas, Karina Mendoza, que trocou o jornalismo pela Iguatemi, sempre houve gente morando – e usando drogas – no terreno da subestação de energia situada na Prainha, na extremidade da galeria no sentido bairro-centro.

– De tanto ver, a gente acaba reconhecendo alguns e percebendo: “Aquele ali era tão forte quando chegou e agora está tão magrinho”, “aquela moça, como se estragou”, “nunca mais vi aquele outro”, “este é novo, chegou ontem” – afirma a operadora de 50 anos, também há 12 na empresa.

O responsável técnico pelo Antonieta de Barros é o engenheiro José Roberto Rossi Filho, contratado três meses antes da inauguração, em agosto de 2002. Nestes quase 15 anos de atividade, a única vez que recorda de o túnel precisar ser fechado foi no blecaute que deixou toda a parte insular de Florianópolis às escuras durante 55 horas no final de outubro de 2003.

– Se houver algum problema nas subestações Coqueiros, Ilha-Centro ou Trindade, afeta o túnel. Mas tem que ser algo muito grande para faltar energia. A alternativa, que seria um gerador, não compensa. O investimento seria muito alto para pouco uso, sem falar no perigo: imagine um tanque de combustível para alimentar um gerador nas subestações, com esse pessoal morando lá – explica.

Rossi garante que a verificação de todos os dispositivos é diária. O que nem o mais automatizado sistema consegue coibir é a repetição das barbaridades que volta e meia alteram a rotina de Miriam e Karina.

O

soldado Jardel Amorim e o colega de turno faziam a ronda na madrugada de segunda-feira pelo centro de Florianópolis quando receberam o chamado no rádio. Às 3h37min, a viatura da PM chegou ao túnel. Dois motociclistas cuidavam de André quando os policiais se aproximaram. A dupla explicou aos dois que pararam para evitar que ele fosse atropelado ou que o corpo estirado pudesse provocar outro acidente.

Também comentaram que um homem retirara a moto do túnel, aparentemente com o mesmo intuito deles: proteger a vítima. Àquela altura, Amorim e o colega nem imaginavam que André tinha sido roubado duas vezes. Logo, a gravidade da situação ficou clara. André respirava com dificuldade e havia perdido muito sangue.

– Vimos que a situação era grave e pedimos prioridade para o Copom – relata Amorim, 32 anos.

Até a chegada do Samu, o motociclista permaneceu na mesma posição. A equipe da ambulância chegou poucos minutos depois, assim como a PMRv. Amorim avisou que não havia localizado documentos da vítima, nem da moto. Na mochila, além dos presentes que ganhara de Sabiá, André levava uma Bíblia.

O que aconteceu com o motociclista desfalecido da Titan vermelha, roubado duas vezes no interior da estrutura de responsabilidade do governo de Santa Catarina, não deveria surpreender o poder público. Menos de um ano e meio após a inauguração do túnel Antonieta de Barros, em 10 fevereiro de 2004, já havia registros que o local servia de refúgio para bandidos e tráfico de drogas. Na época, a PM fez um levantamento fotográfico da região e apontou os elevados de acesso ao túnel como um dos pontos de esconderijo dos criminosos.

A responsabilidade do deinfra é garantir o direito de ir e vir na rodovia. Mas o que o nós temos a ver com morador de rua e craqueiro? Absolutamente nada

 

wanderley agostini,

presidente do deinfra

Mais de 13 anos após a constatação, o presidente do Deinfra, Wanderley Teodoro Agostini, afirma que não há projetos para revitalização do túnel ou para afastar os moradores de rua da região e evitar que eles circulem pelas galerias – o que é proibido. Para ele, a responsabilidade é da prefeitura. Quando confrontado com o fato de que a jurisdição no túnel é do Deinfra, Agostini afirmou que o caso é de polícia.

– Nossa responsabilidade é garantir o direito de ir e vir dentro da rodovia. Nós temos a responsabilidade de conservar e manter o túnel. Mas a questão social, o que o Deinfra tem a ver com morador de rua e craqueiro? Absolutamente nada – afirma.

O cumprimento do que o dirigente alega ser a atribuição do órgão cabe à Iguatemi, que gerencia o túnel desde a inauguração. O contrato pelo serviço, firmado anteriormente via licitação e, hoje, por pregão considerando o menor preço, dura 24 meses, prorrogáveis por mais 12. O mais recente começou a vigorar em março, ao valor de R$ 7,2 milhões, informa o superintendente do Deinfra para a Grande Florianópolis, Cléo Reis Quaresma.

O uso e tráfico de drogas, os furtos e roubos, o vandalismo, as brigas e a ocupação irregular do espaço público dentro do túnel também acontecem nas redondezas. Os produtos dos delitos acabam convertidos em drogas nas bocas do Mocotó ou em outros morros do Maciço do Morro da Cruz.

A prefeitura mantém áreas de acolhimento e assistência social na região, junto ao complexo da Passarela Nego Quirido. Mas também reconhece a dificuldade em lidar com o problema. Promete, contudo, ações para reverter o quadro.

– Elaboramos um plano de ação com diversos órgãos e apresentaremos as ações na próxima quarta-feira. Inclusive, para tratar as pessoas viciadas em crack – promete a secretária municipal de Assistência Social, Katherine Schreiner.

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