RITMO

DE CORTE

A velocidade das linhas de produção na indústria da carne é um dos principais fatores que levam ao adoecimento dos trabalhadores. Dos cinco acordos de ajuste firmados entre a Justiça e as empresas, quatro estão em Santa Catarina

TEXTO | jacson almeida e larissa linder

“Jurgis observava os homens no matadouro, maravilhado com a velocidade e o poder deles como se fossem máquinas incríveis. (...)

O ritmo que eles estabeleceram aqui era aquele que exigia cada faculdade de um homem - do instante em que o primeiro boi caía até o soar do apito do meio-dia, e novamente a partir das doze e meia até sabe-se lá que horas no final da tarde ou à noite, nunca havia um momento de repouso para um homem, para sua mão, seu olho ou seu cérebro. (… ) E se qualquer homem não pudesse acompanhar o ritmo, havia centenas lá fora implorando para tentar.”

 

Trecho adaptado do livro The Jungle, romance do jornalista
norte-americano Upton Sinclair e publicado em 1906.

 

O

acidente que fez Marcos perder parte do dedo seguiu o ritmo da indústria da carne. Em menos de cinco segundos, o indicador passou pela lâmina que separa a cabeça do corpo do frango. Quando a máquina parou, já tinha atravessado nervo e osso.

Há quatro anos, o operário trocou a escassez de emprego no interior da Bahia pela produção frenética dos frigoríficos catarinenses. Passou pela maioria dos setores: pendurou em média 18 aves por minuto, desossou uma coxa de frango a cada
15 segundos e separou centenas de partes miúdas em um dia. Tudo isso em um turno de trabalho de pelo menos nove horas e 48 minutos por um salário de
cerca de R$ 1 mil.

A diferença de tempo entre Jurgis, personagem criado pelo jornalista e escritor norte-americano Upton Sinclair com base nos imigrantes que ganhavam a vida em matadouros de Chicago, e Marcos é de um século. Nos Estados Unidos de 1906 e no Brasil de hoje, o ritmo imposto aos trabalhadores que abatem e processam bois, porcos e galinhas é intenso. Apesar das melhorias nos últimos anos, a velocidade das esteiras, o excesso de horas extras, os percursos de três horas para chegar à empresa e até mesmo casos de trabalho infantil ainda fazem parte desse universo e contribuem para inflar estatísticas de adoecimento e acidentes de trabalho.

Comparado aos trabalhadores em geral, um funcionário de frigorífico tem sete vezes mais chances de desenvolver transtornos dos nervos, o que inclui um vasto conjunto de doenças, como a paralisia facial. O número faz parte de uma tabela do INSS que cruza dados de doenças e atividades econômicas. Pela quantidade de movimentos por minuto, há uma tendência a lesões em ossos, músculos e ligamentos. A temperatura dos ambientes, em torno de 10ºC, é um agravante.

Esses trabalhadores também são quatro vezes mais propensos a sofrer de depressão. As mulheres têm 4,4 chances a mais de sofrer aborto. Nesses dois casos, entretanto, apesar dos números, a Previdência não reconhece a atividade laboral como causadora. Entre os médicos, há opiniões a favor e contrárias a essa posição do instituto.

Em 2015, a indústria da carne foi a terceira maior causadora de acidentes de trabalho no país, com 16,6 mil ocorrências, conforme o último anuário do INSS. Em Santa Catarina, o setor é vice-líder com 2.093 casos, perdendo somente para a fundição de ferro e aço (2.217), de acordo com números de 2014, os mais recentes disponíveis.

Segundo o procurador do Ministério Público do Trabalho em Santa Catarina (MPT) Sandro Sardá, coordenador nacional do Projeto de Adequação das Condições do Trabalho em Frigoríficos, o ritmo ainda é o principal problema. O médico do trabalho Roberto Ruiz explica que um trabalhador dessa indústria chega a fazer de 60 a 70 movimentos por minuto, dependendo do setor, enquanto o nível considerado adequado para os padrões de segurança seria de 33.

Ruiz integrou a comissão nacional que criou, no final de 2012, a norma regulamentadora no 36 (NR 36), considerada um marco no segmento.

A regra trouxe diversas obrigações às empresas, entre elas a de dar pausas aos funcionários ao longo do expediente. Ainda assim, os problemas persistem, como atesta a presidente da Associação Catarinense de Medicina do Trabalho, Denise F. Brzozowski, que atuou de 1994 a 2008 dentro de companhias frigoríficas.

– A NR 36 foi um avanço, mas sempre há dificuldade para cumprir a regulamentação. A definição de uma norma não quer dizer que haverá redução de adoecimento ou da exposição aos riscos. Há necessidade de muita vontade empresarial para aplicar a NR 36 em seu contexto total – afirma Brzozowski.

O cenário do setor, com alto número de adoecimentos e acidentes, levou a uma série de ações judiciais (muitas movidas pelo MPT) e a indenizações milionárias. No ano passado, as três empresas com mais processos na Justiça do Trabalho no Estado eram frigoríficos: BRF (1.072 processos), Aurora (1.058) e Seara-JBS (1.013). Ganham de outros grandes empregadores como estatais, bancos e a indústria metalmecânica.

Mais recentemente, porém, as companhias e o MPT começaram a resolver as questões por meio de acordos, todos envolvendo redução de ritmo. Dos cinco convênios assinados entre empresas e procuradores no país, quatro são no Estado.

O último foi aprovado pela Justiça na última semana. No documento, o MPT pede a redução do ritmo na unidade da Macedo em São José, comprada em 2014 pela JBS e considerada por Sardá uma das piores fábricas do país em condições de trabalho. De 2011 a 2015, 393 dos cerca de 1,2 mil funcionários obtiveram auxílio-doença. Isso leva em conta apenas quem ficou afastado por mais de 15 dias e entrou para as estatísticas do INSS. Há ainda um número significativo de pessoas que se reveza em atestados médicos de menos tempo.

Agora, essa unidade da JBS cumprirá um cronograma para reduzir a velocidade das máquinas. Os funcionários da pendura, que chegavam a colocar em média 18,8 frangos por minuto em ganchos, passaram a fixar 14. Até setembro do ano que vem, esse número precisa ficar em 11,3. Isso fará com que o trabalhador deixe de fazer 56 movimentos por minuto e passe a 34. O descumprimento das cláusulas implica em multa de R$ 50 mil por mês, limitada a R$ 1 milhão por ano. A gigante do setor também terá que pagar indenização de R$ 9 milhões, em parte destinada à criação de programas de reabilitação de empregados e ex-funcionários.

Procurada, a JBS disse por meio de nota que “reitera o seu compromisso com a segurança de seus colaboradores e informa que realiza, constantemente, investimentos e melhorias nos processos administrativos, estruturais e de produção, visando assegurar sempre as melhores condições de trabalho. Adicionalmente, a companhia esclarece que não comenta processos judiciais em andamento”.

Para chegar aos acordos e à NR 36, percorreu-se um longo caminho. Ao longo do trajeto veio à tona um dos casos mais emblemáticos do Estado, o de Valdirene da Silva, funcionária por 11 anos da Cargill, em Forquilhinha, no Sul catarinense, posteriormente comprada pela JBS. Depois de conviver com dores por causa de uma lesão por esforço repetitivo (LER), ela viu a doença evoluir até precisar de uma amputação no braço direito em 2014. Como fez um acordo com a empresa, não fala sobre o assunto.

– No instante que você está mutilando esses trabalhadores, é o Estado que
vai pagar. O cara que adoece vai para a Previdência. Essa mulher amputou o braço com 38 anos, na plenitude de sua vida laboral – diz o presidente do Sindicato
dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação de Criciúma e Região (Sintiacr), Célio Elias.

 

a

s horas extras agravam os problemas vividos por quem está no ramo. Para o procurador Sardá, embora as empresas estejam mais conscientes hoje, as jornadas acima do que prevê a legislação ainda ocorrem. Mesmo com risco à saúde, os trabalhadores ficam além do expediente regular para aumentar o salário. Isso fica claro em uma pesquisa respondida por quase mil trabalhadores do Paraná e de Santa Catarina, conduzida em 2015 por sindicatos regionais e médicos do trabalho. Quando questionados sobre a razão de fazerem horas extras, 47% afirmaram fazer por necessidade. Outros 28% disseram que eram obrigados pela chefia.

Um relatório da auditora fiscal do Ministério do Trabalho Lílian Rezende comprova que as horas extras podem acontecer por exigência das companhias, como revelou a pesquisa. Em 2014, fiscalizações feitas na unidade da JBS de São José mostraram que, somente nos meses de agosto e setembro daquele ano, foram constatados mais de 3,5 mil casos de jornada acima de 10 horas ao dia. Em geral, a empresa exigia expedientes de 14 horas de forma habitual, mas havia quem cumprisse até 18 horas. A fiscalização também encontrou funcionários que faziam um intervalo de apenas quatro horas entre o fim de um dia de trabalho e o começo de outro. A lei exige o mínimo de 11.

Por conta das irregularidades, a empresa acabou sendo alvo de uma ação civil pública movida pelo MPT. No ano passado, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) determinou que a JBS cumprisse a legislação trabalhista e arbitrou multa de
R$ 50 mil mensais por item descumprido.

Além das horas extras dentro da fábrica, há outras que têm sido alvo de sentenças da Justiça do Trabalho: as chamadas in itinere, o tempo de deslocamento da casa do funcionário até o trabalho. Sem conseguir contratar número suficiente de trabalhadores dentro dos municípios, as empresas têm ido em busca deles em cidades cada vez mais distantes, inclusive nos Estados vizinhos. Há quem vá, por exemplo, de Lages a Capinzal diariamente, uma distância de mais de 180 quilômetros. Em algumas situações relatadas nos processos o trabalhador chega a perder de cinco a seis horas diárias somente em deslocamentos. Considerando a jornada de 9h48min, seriam quase 15 ou 16 horas por dia empenhadas em um contrato de trabalho para ganhar em torno de R$ 1 mil.

Pela legislação trabalhista, quando não há linhas regulares de transporte até a fábrica, o empregador passa a ser responsável pelo trajeto. Neste caso, o tempo de deslocamento deve ser incorporado à jornada e, por consequência, pago como horas extras caso extrapole o expediente legal.

Alvo de diversos processos desse tipo, a BRF alega que existe um acordo coletivo com o sindicato para não considerar o tempo de deslocamento como à disposição da empresa,. Por isso, estaria dispensada de pagar esses valores. O TRT, contudo, tem confirmado as sentenças da Vara de Joaçaba, com o entendimento de que uma norma coletiva não pode afrontar direito previsto na legislação. Procurada para comentar essa e outras questões, a BRF informou que não tinha porta-voz disponível.

 

 

S

e dentro dos frigoríficos podem haver problemas, fora deles as condições tendem a ser piores. A cadeia produtiva da agroindústria é complexa e envolve uma série de etapas. Talvez você não saiba, mas o filé de frango que chega no supermercado depende dos apanhadores de aves, em muitos casos terceirizados. Funciona assim: um dia antes da apanha, os frigoríficos avisam às empresas terceirizadas a hora e o endereço do aviário em que será feito o trabalho – pode ser na mesma cidade ou em uma região mais distante. A empresa recruta uma equipe – que fica a postos para isso – e a leva até o local. A tarefa é recolher as aves vivas, colocá-las em caixas e transportá-las até os caminhões.

Seria fácil, se o volume não fosse gigantesco. Santa Catarina é o Estado que mais produz aves no país. Foram 864 milhões de abates em 2016, 2,36 milhões por dia. Cada aviário tem milhares de animais a serem retirados – ao menos 20 mil – e o trabalho envolve carregar caixas de até 30 quilos, várias horas por dia. A informalidade, recorrente no meio, dá margem a jornadas acima do limite legal e outras irregularidades.

– Era isso ou trabalhar em mina de carvão, que é pior – diz Tomás, de 22 anos, há oito na apanha, sempre na informalidade.

Experiente na atividade, hoje ele é encarregado pelo grupo de oito pessoas que apanha frangos no interior do Estado. O salário de R$ 2,2 mil, sem desconto já que não é registrado, sustenta a mulher e dois filhos – um terceiro está a caminho.

Em 2015, fiscais do Ministério do Trabalho encontraram 12 pessoas em situação análoga à escravidão em Forquilhinha. Recrutados no Paraná com uma promessa de bom salário e moradia, eles foram parar em uma mina abandonada. Para apanhar os frangos, percorriam extensas distâncias em veículos precários. A empresa terceirizada, que trabalhava para uma gigante do setor, foi multada.

Situações como essa têm ficado menos comuns. As condições melhoraram na última década, já que o nível de informalidade caiu, segundo a fiscal do trabalho Lilian Rezende. Ainda assim, em quase todas as fiscalizações há irregularidades, diz.

– O maior problema ainda é a jornada (de trabalho). Primeiro porque é variável. A CLT diz que o contrato não pode ser alterado de forma unilateral, mas os empregados são demandados diariamente a exercer uma jornada em horário diferente, com grandes excessos, sem horários adequados de intervalo, sem descanso de 11 horas entre uma jornada e outra. E o motivo é que as avícolas se negam a manter uma rotina organizada – destaca Lilian, responsável pela fiscalização em área rural.

P

ior que a informalidade, diz o procurador Sardá, é a situação de quem entra para o grupo dos que não conseguem voltar a trabalhar por conta de adoecimento, nem se aposentar. Foi nesse limbo que Júlia caiu. Filha de agricultores, ela tinha 19 anos em 1999 quando conseguiu o primeiro emprego, em um frigorífico. Aguentou até 2003. Naquele ano, as dores que sentia no pescoço, ombros e tórax se agravaram. Nem os médicos da empresa nem os da cidade diagnosticavam a doença. Com apoio da Associação dos Portadores de LER de Concórdia – criada por conta do número de adoecimentos no setor –, fez exames fora do município que revelaram a síndrome do desfiladeiro torácico. Grosso modo, é a compressão de nervos e vasos na região do tórax.

Diagnosticada e com dores crônicas, Júlia afastou-se pelo INSS e foi de perícia em perícia até que, em 2010, os médicos da Previdência lhe deram alta. Afirmaram que ela teria condições de voltar ao trabalho.

– Eu não tinha como voltar. Eu não consigo nem pentear o cabelo. Acordo e durmo com dor, vou a cada três meses ao pronto-socorro, e agora os médicos dizem que devo fazer uma cirurgia para tirar uma costela que vai aliviar a pressão e a dor – diz.

Sem poder trabalhar e sem conseguir aposentadoria, a operária vive com uma pensão de R$ 120 da ex-empregadora – direito obtido na Justiça – e o salário do marido. Segundo Sardá, é uma situação comum.

– Isso é pior que ser trabalhador informal. Qual é o país com uma visão de futuro que destrói a saúde das pessoas para cortar frango? O custo social disso é elevadíssimo – afirma.

A Aurora, com sede no Oeste do Estado, defende que o setor não pode ser taxado, de forma generalizante, como o que mais provoca adoecimento, e afirma que mesmo quem já pode se aposentar continua na empresa. “Temos aproximadamente 800 empregados com mais de 20 anos de empresa”, declarou em nota.

Para reduzir doenças ocupacionais, a médica do trabalho Denise Brzozowski explica que é necessário atuar em várias frentes. Ela também afirma que não se pode generalizar que somente o ambiente é a principal fonte de doenças. Porém, um local inadequado de trabalho causa adoecimento. O professor da UFSC e ergonomista Antonio Moro, que pesquisa o setor há uma década, defende jornadas limitadas a seis horas diárias.

Mas há quem advogue que para acabar com os tais custos sociais a saída é ampliar a automatização. Embora implique em perder empregos, é visto como algo “em parte positivo” por Júlia.

O auditor-fiscal do Trabalho Valter Paulo Fuck, que atua em Chapecó, é taxativo:

– Nós não queremos emprego de cortador de frango. Isso é coisa de país de terceiro mundo. É preferível um operador de máquina.

A BRF e a JBS não responderam às perguntas a respeito da automatização. A Aurora Alimentos informou que tem a intenção de aumentar os investimentos em equipamentos “na medida em que a mão de obra se torna escassa e dentro das nossas disponibilidades financeiras”. Um executivo do setor, que falou sob anonimato, disse que linhas de montagem que reduzam a dependência de mão de obra humana é a tendência natural, mas admitiu que ainda é mais barato contratar trabalhadores no Brasil do que investir em maquinário.

 

*os trabalhadores entrevistados para a matéria pediram para não ter os nomes divulgados. No lugar, receberam nomes fictícios.

 

A NR 36 foi um avanço, mas sempre há dificuldade
para cumprir a regulamentação.

 

denise brzozowski,

Presidente da Associação Catarinense
da Medicina do Trabalho

No instante que você está mutilando esses trabalhadores, é o Estado que vai pagar. O cara que adoece vai para a Previdência. Essa mulher amputou o braço com 38 anos, na plenitude de sua vida laboral

 

 

CÉLIO ELIAS,

Presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas
Indústrias da Alimentação de Criciúma e Região

O maior problema ainda é a jornada (de trabalho).
A CLT diz que o contrato não pode ser alterado de
forma unilateral, mas os empregados são demandados diariamente a exercer uma jornada em horário
diferente, com grandes excessos, sem horários adequados de intervalo, sem descanso de 11 horas
entre uma jornada e outra.

 

 

LILIAN REZENDE,

Fiscal do MInistério do Trabalho em Santa Catarina

É pior que ser trabalhador informal. Qual é o país com

uma visão de futuro que destrói a saúde das pessoas para cortar frango? O custo social disso é elevadíssimo.

 

 

SANDRO SARDÁ,

Procurador do MPT

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