VIDA
AMBULANTE
Quem são os vendedores informais que chegam no Verão a Florianópolis e o que dizem as autoridades que já apreenderam pelo menos R$ 31 milhões em mercadorias ilegais em 2016
TEXTO | LEONARDO THOMÉ
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exta-feira, 13 de janeiro. É noite e um ônibus vindo de São Paulo estaciona no Terminal Rita Maria, em Florianópolis. Carregados de mochilas e sacolas, Bass e Massul, dois jovens senegaleses, desembarcam na capital catarinense depois de 11 horas de viagem. Na porta da rodoviária, um grupo de hippies vende artesanato. A dupla se aproxima e pede informações.
Bass e Massul querem saber como chegar a Canasvieiras. Vieram de São Paulo porque ouviram falar que o balneário no norte da Ilha é um bom lugar para ganhar dinheiro. Na bagagem, trazem eletrônicos, tênis e roupas para vender. Em um português carregado de sotaque, perguntam sobre preços e pedem indicação de um lugar para ficar. Os hippies desaconselham: o aluguel na região nesta época do ano está a preços impraticáveis para quem tem orçamento curto.
Ângela Dabri, 58 anos, ouve a conversa. Ela é coordenadora de um espaço que acolhe imigrantes de diferentes nacionalidades na região central da cidade. A noite vai alta e a catarinense oferece a casa para Bass e Massul dormirem lá. Nesta semana, eles dividem o teto com um peruano, uma baiana, um gaúcho e outro senegalês que se juntou aos conterrâneos nos últimos dias.
Destino de milhares de imigrantes durante as quatro estações do ano, é no verão que Florianópolis revela a faceta mais atrativa para quem quer ganhar algum dinheiro, aproveitar o fluxo de turistas e, de quebra, a beleza das praias.
É difícil afirmar o número preciso de estrangeiros que vive na cidade, mas é certo que essa chegada se intensifica nos meses de calor. Segundo dados da Polícia Federal na Capital, em 2016 foram atendidos 1.404 pedidos de residência – uma queda de 20% em comparação com o ano anterior.
Apesar da retração – e pela falta de oportunidades formais –, muitos recorrem ao comércio informal para sobreviver. Na metade do ano passado, a prefeitura estimava que 400 pessoas trabalhavam nessas condições no Centro. No começo de janeiro, Nelson Mattos, titular da Secretaria Executiva de Serviços Públicos (Sesp), afirmou crer que o número aumentou, especialmente em relação aos estrangeiros, que agora atuam com maior presença nas praias.
Esse crescimento não passa despercebido para os empresários do comércio formal na cidade. Entidades de classe da Capital reclamaram do avanço da informalidade à prefeitura e ao Ministério Público de Santa Catarina (MPSC). Wilson Vergílio Real Rabelo, ex-titular da Secretaria de Serviços Públicos na administração de Cesar Souza Junior (PSD), afirma que os imigrantes são a parte mais vulnerável do que ele chama de “cadeia criminosa”.
Ele estava à frente da pasta quando começou a se fechar o cerco contra os ambulantes na cidade. Rabelo acredita que exista uma cadeia de comando que alicia os imigrantes e os coloca para trabalhar em diferentes cidades do país. Desde o ano passado, autoridades tentam comprovar essa versão, sem ainda ter encontrado quem seriam os fornecedores das mercadorias ou o local onde elas estariam armazenadas.
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ass e Massul dividem o mesmo quarto. Vivem em meio a bolsas e mochilas que trouxeram com roupas e eletrônicos comprados no centro de São Paulo para serem revendidos nas praias da Ilha. Bass tem 19 anos. No Senegal, deixou a filha de três anos, a mulher, pai, mãe e irmãos. É por eles que se submete a longas jornadas de trabalho que começam antes das 8h e se estendem até depois das 22h.
Há dois anos morando na maior cidade do Brasil, chegou a trabalhar com carteira assinada em uma padaria por mais de um ano. Demitido, começou a se virar na informalidade. Encontrou uma concorrência que fala diversos idiomas e muitas vezes joga sujo em busca da clientela. Todo dia é uma luta para não ser roubado ou cair nas mãos do “rapa”, os fiscais da prefeitura administrada por João Dória (PSDB).
— Em São Paulo é tudo muito difícil, tem muitos fazendo a mesma coisa que a gente. Precisamos nos cuidar com os fiscais, a polícia e os outros vendedores. É difícil — diz Bass.
Massul tem 36 anos e fala menos que o compatriota, já que não tira os fones do ouvido. A trilha sonora é mbalakh, ritmo popular no Senegal que mistura jazz, soul e blues. A filha de quatro anos, que ficou no Senegal, está na foto de perfil do seu WhatsApp. O restante da família também está do outro lado do oceano Atlântico. Parte do dinheiro do trabalho nas ruas é enviada para casa. O restante, explica, é usado para comprar novas mercadorias, comer, se deslocar e pagar os aluguéis das quitinetes em que vive, seja em São Paulo ou Florianópolis.
— O valor que ganhamos depende muito. Às vezes dá para vender bem, mas em outras o movimento é fraco — observa, um dia depois de faturar cerca de R$ 300 em Bombinhas, no Litoral Norte.
Em Florianópolis, a jornada começa cedo. Para uns, já de manhã, caminhando pelos
2,2 mil metros de extensão da orla de Canasvieiras. No vaivém, são oferecidos de paus de selfie a capinhas de celular à prova d’água – R$ 30 cada ou R$ 50 se o cliente levar os dois de uma vez. Os brasileiros, de diversos Estados, estão em maior número do que os imigrantes na areia. Orla disputadíssima. Em 30 minutos, a partir de uma linha reta, a reportagem fotografou mais de 30 diferentes comerciantes.
Após o meio-dia, os vendedores começam a se instalar nas calçadas, tudo para garantir um bom lugar para o anoitecer, quando os turistas tomam as ruas de Canasvieiras e de outros balneários do norte da Ilha. Entre os vendedores estrangeiros, o produto com mais saída neste verão, seja na areia das praias ou nas ruas dos centrinhos, são as caixas de som MP3, uma coqueluche entre argentinos e brasileiros que veraneiam na cidade. Custam, em média, R$ 130.
A clientela de fé é argentina. Quem não compra, olha e experimenta. Os brasileiros também adquirem seus itens, mas pechincham o preço.
Toalhas no chão com vestidos, roupas e calçados estendidos. Tábuas de madeira carregadas de óculos. Varais com bolsas. Expositores cheio de carregadores de celular. A maneira de expor os produtos, trazidos em mochilas ou sacolas, demarca os espaços usados por cada grupo de ambulantes, em recuos, cantos ou margens de calçadas.
— Os argentinos são os que mais compram, eles gostam da variedade e dos preços. Os brasileiros compram, e pedem para baixar o preço. Sempre dá para diminuir. Mesmo assim, não é fácil vender. Tem dias que não vendemos nada. Já em outros dá para tirar de R$ 200 a R$ 250 — conta o senegalês Abdal, 23 anos, morador de São Paulo. Até março, pretende ficar em Florianópolis, num movimento semelhante ao de conterrâneos que moram em outros Estados e procuram a capital de Santa Catarina para trabalhar na alta temporada.
A haitiana Ciliana Luis, 41 anos, chegou a trabalhar de maneira formal. Ficou desempregada e em 19 de janeiro estreava como ambulante em Canasvieiras. No meio da tarde, não tinha vendido nenhuma das peças de roupas que estavam expostas na calçada. Esperava que após o anoitecer as coisas melhorassem.
— O movimento só começa a ficar melhor à noite. Cheguei cedo aqui para pegar um lugar. Preciso vender — repetia Ciliana, que mora no Morro do 25, na área central da cidade, e vai de ônibus para Canasvieiras e volta, já de madrugada, de van.
Há um ano e seis meses em Florianópolis,
Ciliana é uma das 2.549 pessoas do Haiti que foram atendidas pela Polícia Federal na Capital. O número é mais de três vezes superior ao de 2015, quando 742 haitianos deram entrada em documentos na cidade.
Como trabalham até depois das duas da madrugada, quando já não há mais ônibus circulando, os imigrantes costumam retornar para casa em vans que fazem o transporte também de turistas. Para ir de Canasvieiras até outro bairro do norte da Ilha, por exemplo, cada um desembolsa uma média de R$ 10. Para o Centro, a passagem sai por R$ 20.
— Eu sempre vou embora de van — diz Mussa, cujo ponto de vendas fica a poucos metros da praia em Canasvieiras.
A
prefeitura classifica o trabalho dos ambulantes de ilegal. Baseia-se em artigos de leis e na propagandeada retomada do espaço público. O comércio formal, que promoveu inclusive um protesto contra os ambulantes no centro da cidade em dezembro, alega “concorrência desleal”, o que causaria prejuízos e demissões ao setor. Já a Pastoral do Migrante, vinculada à Arquidiocese de Florianópolis, trabalha na tentativa de inserir os imigrantes, em especial os senegaleses, no mercado de trabalho.
— Estamos buscando condições de disponibilizar trabalhos formais para os imigrantes. Dos grupos que trabalham como ambulantes, há diversidade de nacionalidades, mas os senegaleses são maioria. Os haitianos, como estão aqui há mais tempo, já estão mais consolidados em empregos formais — explica a antropóloga
Tamajara Silva, uma das integrantes da Pastoral do Migrante.
Os próprios imigrantes reconhecem a irregularidade da atuação. Prefeririam, garante o senegalês Kadri, 40 anos, trabalhar com carteira assinada. Mussa, 30 anos, trabalhou formalmente em seus primeiros dois anos e meio no Brasil, quando morou em Porto Alegre e Caxias do Sul (RS). Há quase seis meses em Florianópolis, sem emprego, buscou nas ruas e na comunidade de senegaleses da Capital uma maneira de ter dinheiro, “para poder comer”. A família ficou toda no Senegal.
— Mesmo em trabalhos com carteira assinada, é difícil para a gente se manter aqui e ainda enviar dinheiro para a família. Eu tenho filho. Não consigo mandar dinheiro para ele ganhando R$ 1,2 mil com carteira. Aqui na rua, em um dia bom, dá para tirar até uns R$ 700. Claro que também há os dias em que não vendemos nada, mesmo assim é melhor do que muito emprego aí — considera Mussa.
"Mesmo em trabalhos com carteira assinada, é difícil para a gente se manter aqui e ainda enviar dinheiro para a família. Eu tenho filho. Não consigo mandar dinheiro para ele ganhando R$ 1,2 mil com carteira. Aqui na rua, em um dia bom, dá para tirar até uns R$ 700"
mussa
Vendedor senegalês
C
om a deflagração da Operação Floripa Legal, a Sesp, a Guarda Municipal e as polícias trabalham para desmantelar o que seriam os grandes fornecedores de mercadorias para os ambulantes. Desde 2016, as autoridades reforçam a hipótese de que há grandes – um ou dois – distribuidores de mercadorias na Região Metropolitana de Florianópolis. Um dos indicativos da tese seria que os vendedores, após terem as mercadorias apreendidas, retornam com a mesma quantidade de produtos no dia seguinte ao flagrante.
Em 2015 e 2016, ocorreram apreensões de mercadorias de origem duvidosa em casas localizadas no Morro da Caixa e da Mariquinha. Em uma delas, em agosto de 2016, a Polícia Militar (PM) e agentes da Guarda estouraram uma quitinete em que viviam senegaleses no Morro da Caixa. Os produtos apreendidos encheram duas vans. A reportagem conversou com a proprietária que alugava o imóvel. Ela garantiu que o aluguel foi firmado diretamente com os imigrantes.
No dia em que deflagrou a operação para combater o comércio informal, o prefeito Gean Loureiro (PMDB) falou da suspeita de que um grande galpão, talvez localizado em Palhoça, serviria de central de distribuição dos produtos. Policiais corroboram a tese. Com o passar das semanas, como nenhum suposto fornecedor foi preso os policiais evitam dar detalhes das investigações. Justificam o silêncio para, segundo eles, não atrapalhar a investigação.
Nas conversas com os ambulantes, em especial os senegaleses, todos garantem trazer os produtos de São Paulo, onde muitos dos que trabalham em Florianópolis no verão moram a maior parte do ano. Roupas, explica Kadri, vêm da região do Brás, no centro da metrópole. Já eletrônicos e demais bugigangas vêm da Rua 25 de Março, também no centro paulistano, diz ele. Os dois endereços estão entre os maiores centros de compras populares do Brasil.
Secretário atual da Sesp, Nelson Mattos, avalia que em alguns casos os imigrantes até tragam as mercadorias que vão vender, mas entende que isso não acontece em todas as situações.
O senegalês Mussa conta que os imigrantes fazem “rodízio” para trazer os produtos. Outro ponto que fiscais da Sesp levantam, o de que os ambulantes possuem “olheiros”, que avisariam a fiscalização, é desmentido pelos imigrantes.
— Sempre que a mercadoria está acabando, um de nós (grupo de senegaleses) vai a São Paulo e traz compras da 25 de Março e do Brás. Vamos de ônibus de linha, com passagens que custam mais ou menos R$ 120 — afirma Mussa.
Outros senegaleses disseram à reportagem que viajam em ônibus fretados, excursões de pessoas que vão exclusivamente “investir” em compras no comércio popular de São Paulo.
Analista tributário e chefe do setor de repressão da inspetoria da Receita Federal da Grande Florianópolis, Ricardo Martins diz que a maioria dos produtos vendidos nas ruas vêm de São Paulo, que ele chama de “grande Paraguai dos dias de hoje”. A logística típica dos ambulantes é o uso de ônibus, de linha ou fretados para excursões, desde São Paulo até Florianópolis. O mais comum é que os próprios vendedores que atuam nas ruas comprem os produtos e os transportem.
— Na maior parte dos casos, a pessoa que vende é a mesma que traz os produtos. Esses vendedores pequenos são os que mais trazem. Também há casos de intermediários, em menor número. Normalmente pessoas com mais experiência na atividade, que perceberam a chance e começam a trazer mercadorias e revendê-las para os pequenos vendedores — expõe Ricardo.
Com uma média de cinco operações por mês em 2016, a inspetoria da Receita Federal na Região Metropolitana apreendeu cerca de R$ 31 milhões em mercadorias de origem duvidosa em 2016 na região da Grande Florianópolis e do Litoral Norte do Estado.
A maior parte das apreensões foi na região do entorno da Capital, em casos caracterizados como descaminho – quando os produtos vêm de fora do país, mas a importação não é proibida -, exemplos de interceptação de roupas e eletrônicos. O descaminho, tipificação mais comum em relação aos ambulantes, significa o não pagamento de tributos de entrada do produto no país.
— Quase sempre as apreensões entram por descaminho. Quando há indícios de pirataria, colocamos no produto a inscrição ‘indício de falsificação’, para que os produtos sejam destruídos e não voltem às ruas. O caso mais comum de contrabando que temos, disparado, são as apreensões de cigarros. Sobre a origem das apreensões, boa parte desses R$ 31 milhões de produtos apreendidos em 2016 são as mesmas mercadorias que estão nas ruas com os ambulantes — avalia Ricardo.
O delegado Verdi Furlanetto, da Polícia Civil, explica que a existência de um galpão que funcionaria como central de distribuição dos produtos ainda está sendo verificada. Outra linha apurada pela equipe do delegado responsável pela investigação é a logística e sistemática de trabalho dos ambulantes. Ele afirma que em breve a “investigação colherá frutos”.
— É cedo para falar, porque tem que fazer o levantamento, repassar as informações para o juiz e então solicitar o mandado de busca e apreensão. Um delegado da Capital me disse que daria encaminhamento à questão, que faria o documento ao juiz. Vamos ver — explica Furlanetto, para dizer que se passar algumas informações pode “pôr tudo a perder”.
Ildo Rosa, delegado aposentado da Polícia Federal, afirma que hoje em dia o contrabando perdeu espaço o comércio de produtos “contrafaciados”, que são falsos. Ele explica que isso ocorre bastante em São Paulo, com coreanos que dominam o setor.
— Sobre a forma como as mercadorias chegam, acredito que, em muitos casos, as mercadorias são despachadas de lá e retiradas aqui nos ônibus por eles.
Enquanto as autoridades investigam, Mussa, Abdal, Bass, Massul e Kadri mantêm a jornada. Afinal, é preciso comer, morar, viver e, ainda, mandar algum dinheiro para casa.
—Viemos para o Brasil para trabalhar de carteira assinada, mas está difícil. Ninguém gosta do trabalho dos ambulantes, nem no Senegal. Mas não podemos ficar parados — admite Mussa.
Com uma média de cinco operações por mês em 2016, a inspetoria da Receita Federal na Região Metropolitana apreendeu cerca de R$ 31 milhões em mercadorias de origem duvidosa em 2016 na região da Grande Florianópolis e do Litoral Norte do Estado.
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