ENTRE O PODER E A LEI

Admirado por uns, questionado por outros, conhecido por muitos: como pensa, trabalha e vive o advogado catarinense cláudio Gastão da Rosa filho, que fez – e ainda faz – fama e fortuna defendendo gente rica e poderosa

V

ai começar o julgamento da apelação criminal nº 0029644- 51.2015.8.24.0023 da comarca de Florianópolis. Trata-se do caso de um homem que, após denúncia anônima, foi preso em flagrante na casa em que morava de aluguel no Sul da ilha, em julho de 2015. No imóvel, os policiais encontraram 42 quilos de maconha fracionada e embalada, acondicionados em duas caixas de papelão, e uma estufa com 22 pés da planta medindo de oito a 80 centímetros cada. O acusado pegou sete anos, 11 meses e oito dias de reclusão em regime fechado por tráfico e cultivo da droga. Sua esperança de reverter a situação – ou pelo menos evitar que piore – atende pelo nome de Cláudio Gastão da Rosa Filho.

O advogado chega à sala onde ocorrerá a sessão no Tribunal de Justiça com a esposa, Cristiane; a bacharel em Direito que trabalha em seu escritório, Nadjara; e o pai do condenado. Os acompanhantes permanecem sentados enquanto Gastão – como é conhecido no meio jurídico – se prepara no pequeno púlpito branco em frente às mesas que formam um U ocupado por quatro desembargadores. Ele terá 15 minutos para convencer três deles com direito a voto (o relator, o revisor e o vogal) que seu cliente não merece a pena que lhe foi imposta, que dirá aumentá-la para 15 anos, como pleiteia o Ministério Público.

A protocolar beca preta cobre parte do figurino do advogado nesta manhã de temperatura amena de uma quinta-feira de setembro: terno azul-marinho, camisa azul clara, gravata estampada do mesmo tom, sapato preto e relógio Hublot. De dentro de uma pasta Louis Vuitton, Gastão tira o arrazoado de 73 páginas, uma caneta marca-texto amarela, um bloquinho auto-adesivo da mesma cor e um cronômetro digital e os coloca sobre a bancada. Deixa a pasta em uma prateleira abaixo, dá dois goles em um copo d’água, ajusta o microfone à sua altura, empertiga-se e liga o marcador de tempo.

Lê trechos sublinhados da peça que elaborou. Modula a voz, alternando períodos monocórdios com rompantes para enfatizar determinadas passagens. Com base em farta jurisprudência e nos depoimentos dos policiais participantes, indica o que entende como irregularidades cometidas desde a entrada no terreno até a busca domiciliar que resultou no flagrante. Mostra um laudo pericial que diagnostica o apelante como dependente de maconha. A quantidade apreendida seria, portanto, um estoque pessoal para o poupar de se submeter ao constrangimento e ao risco de ter que ir a uma boca de fumo com frequência.

Decorridos 12 minutos e 20 segundos de sua fala, o advogado toma mais um gole e salienta que seu cliente é primário, possui bons antecedentes e não se dedica a atividades criminosas nem integra organização dessa natureza. Enfim, pede a anulação, se não integral, parcial da ação penal. Ao terminar, Gastão se vira para o pai do homem, que havia assentido com a cabeça com tudo o que ouvira nos 14 minutos e 32 segundos anteriores. O senhor, amigo da família há muitos anos, retribui-lhe o olhar com uma expressão entre a aflição e a confiança.

O primeiro juiz da causa sou eu. Tenho que considerá-la defensável para aceitá-la. Com uma ressalva: há algumas que só pego se me convencer de que o cara é muito inocente, como as que lidam com criança. Isso me faz muito mal, cobra um custo emocional muito alto.

FOTOS FELIPE CARNEIRO

sei que se eu deixar o charuto no cinzeiro, você não vai roubá-lo. Mas não sei se nunca vai matar. Porque pode acontecer uma fatalidade, uma infelicidade do destino que faça com que uma pessoa boa e honesta manche a biografia com sangue.

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os 46 anos, dos quais 23 de carreira, o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho atingiu um estágio em que pode abraçar causas por amizade, longe dos holofotes da mídia e sem se preocupar com quanto receberá pelo serviço. A maior parcela de seu faturamento, em torno de algumas centenas de milhares de reais por mês, vem de duas fontes. Uma é composta por pessoas envolvidas em crimes dolosos contra a vida, propensas a pagar o que têm e o que não têm para que ele as defenda perante o tribunal do júri, a área que o levou a escolher o Direito.

— Sempre quis ser criminalista, jamais me interessei em fazer concurso público para ser juiz ou promotor — diz.

Mas o grosso do que ganha – até porque, garante, costuma defender muitas causas de graça –  vem do outro nicho, no qual acabou se especializando devido à demanda cada vez mais alta: empresários e políticos em encrencas financeiras com a Justiça. Sabem que, para dispor da expertise de Gastão, irão precisar daquele dinheiro reservado (também) para momentos difíceis, em que só uma fileira de zeros à direita resolve. Por mais diferentes que sejam os contextos, porém, tanto o suspeito de delitos financeiros quanto o de homicídio o procuram pelo seu retrospecto vitorioso. Acreditam que o advogado achará um jeito legal para absolvê-los, mesmo que a opinião pública já os tenha condenado de antemão.

— O primeiro juiz da causa sou eu. Tenho que considerá-la defensável para aceitá-la. Com uma ressalva: há algumas que só pego se me convencer de que o cara é muito inocente, como as que lidam com criança. Isso me faz muito mal, me cobra um custo emocional muito alto.

Ao fechar negócio, o acusado está contratando um profissional que não medirá esforços para conseguir a sentença mais favorável. Gastão vai revirar os autos de cabo a rabo atrás de detalhes, incongruências, tecnicidades que deixem margem a dúvidas no processo. Apesar do auxílio de Nadjara e de outra advogada, ele se envolve em todas as teses e pesquisas, além de fazer todas as sustentações orais. E nem poderia ser diferente: o que atrai a clientela é o Gastão Filho escrito na placa na entrada do escritório, no segundo andar de um prédio comercial na Avenida Rio Branco, no centro de Florianópolis.

Sua sala fica depois da biblioteca jurídica com uns 2 mil volumes, muitos comprados quando ele ainda estava na faculdade. Segundo ele, a coleção clássica de Nelson Hungria (1891-1969), “o príncipe dos penalistas brasileiros”, por exemplo, hoje vale uma fortuna. Os ambientes são revestidos de madeira escura, conferindo ao local um aspecto vetusto. Na parede do corredor, um quadro com um cavaleiro templário impõe respeito. À direita da mesa de Gastão, uma estátua de São Miguel Arcanjo, protetor e líder do exército de Deus contra as forças do mal, testemunha as conversas entre criminalista e cliente.

— Eu sei que se eu deixar o charuto no cinzeiro, você não vai roubá-lo. Mas não sei se nunca vai matar. Porque pode acontecer uma fatalidade, uma infelicidade do destino que faça com que uma pessoa boa e honesta manche a biografia com tintas de sangue. Tinha uma vizinha que nem pegava o elevador comigo, dizia que eu era defensor de bandido. Um dia, essa mulher bateu na minha porta porque o neto dela, bêbado e drogado, atropelou e matou um cara. Ninguém está livre da desgraça — reflete, envolto pela fumaça de um Cohiba.

O gosto pelas baforadas foi descoberto em 2000, em Miami. Lá, Gastão conheceu um advogado paulista, Aldo Raia, “riquíssimo, dono de um apartamentaço em Bal Harbour, um bairro chiquérrimo”. O camarada, conta, disse-lhe que advogado tinha que fumar charuto e o convidou para degustar um. Então ele começou, “mais para relaxar”. Em poucos anos, Gastão adquiriria muito mais prazeres, hábitos e bens em comum com os colegas bem-sucedidos do que o simples ato de apreciar um legítimo habano.

Teve um que apareceu no meu escritório dizendo que havia matado um cara. Eu quis saber onde estava o corpo. ‘No porta-mala do meu carro, aqui na sua garagem.’ Botei ele para correr!

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avô paterno de Gastão, Altair, era representante comercial de laboratórios farmacêuticos na capital catarinense. Com a mulher, Anita, criou quatro filhos em um lar de classe média. A imagem que o neto guardou dele é a de um homem sem tanto estudo, mas sempre com um livro na mão. O moleque brincava de abrir o dicionário, escolher uma palavra e lhe perguntar o significado; era difícil Altair não saber. Já o pai, de quem Gastão herdou o nome e o ofício, pode dar uma condição melhor à prole. A família morava no bairro Coqueiros e tinha uma casa na praia da Daniela para curtir os verões.

— Ele ia comigo aos presídios quando criança. Na época não havia oratório, era possível falar com o preso cara a cara. Também o levava aos tribunais e apresentava aos juízes e promotores como meu filho. E sempre lhe dizia: nunca se ofende um colega ou se chama um juiz de mentiroso. Diga que “faltou com a verdade”, é mais elegante – recorda o advogado de 72 anos, no sobrado que abriga sua banca, em uma ruazinha nas cercanias do Instituto Estadual de Educação, na região central de Florianópolis.

Com a separação dos pais, o então adolescente Gastão foi morar com os avós. No vestibular, não deu outra: optou por Direito (como fizeram, em sequência, os seus irmãos Michelle, Mônica e Bruno). Passou na Univali, em Itajaí, e se mudou para Balneário Camboriú, onde arrumou emprego como gerente da boate Baturité. Para a bilheteria, trouxe o amigo com quem dividia apartamento e futuro prefeito eleito da cidade, Fabrício Oliveira. O expediente começava por volta das 22h e varava a madrugada. Gastão ganhava pouco, o suficiente para pagar os estudos. Saiu um ano antes de se formar por achar que advocacia e boemia não combinavam.

Com o diploma na mão, fez o caminho natural e voltou para trabalhar sob os auspícios paternos. Seis meses bastaram para os dois perceberem que tinham estratégias e pensamentos muito diferentes quanto ao exercício da profissão. Um orientava o cliente de uma maneira; outro recomendava direção oposta. Diante do conflito que ensaiava tomar proporções irreversíveis, Gastão seguiu trilha própria em 1994. Conforme ambos, vêm daí o rumor de que eles cortaram relações, o que refutam com veemência. Embora não se vejam com assiduidade, asseguram que se falam ao telefone com certa constância. O filho admira o “coração espetacular” do pai; o pai, a dedicação e a obstinação por justiça do filho.

No início da carreira solo, um dos casos que marcou Gastão foi o de um jovem professor que fazia bico como segurança em uma casa noturna e teve que expulsar um frequentador inconveniente. Este reagiu e, após troca de socos e pontapés, caiu de mau jeito e morreu. Para atiçar ainda mais a exploração do caso pela imprensa, a esposa da vítima estava grávida. O agressor foi preso, o advogado recorreu e o soltou. Cinco anos depois, no dia do julgamento, adentraram no plenário a viúva e “um garoto loirinho lindo, parecia capa de revista”.

— O juiz fez questão de parar o júri e chamar a atenção para a mulher e a criança. O réu acabou condenado por homicídio triplamente qualificado: motivo fútil, surpresa (como, se havia sido uma briga?) e meio cruel. Ora, ele agiu em legítima defesa, não queria matar! Sofri demais, trabalhei muito e não ganhei nem um real. Credito a decisão ao juiz, que influenciou os jurados — lamenta-se Gastão, até hoje inconformado com o veredito, sobretudo porque reviu o processo e considera que teve uma atuação impecável.

O desfecho só não o fez desiludir-se com a Justiça porque, desde aquele tempo, ao término de um julgamento ele tira a beca e mergulha no próximo caso. No entanto, intuiu que não adianta um advogado dominar somente o Direito Penal. Em 2002, concluiu mestrado em crime passional e tribunal do júri na Universidade Federal do Paraná (UFPR). E agregou conhecimentos de psicologia, filosofia, medicina legal e outras ciências na bagagem intelectual. Afinal, “a causa mais importante é sempre aquela que está por vir”.

Pelos meus clientes, eu vou até as portas do inferno. mas não entro

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em Gastão é capaz de apontar o divisor de águas, o turning point, o caso que o transformou em um dos advogados mais bem-remunerados de Santa Catarina. De acordo com o dono da construtora Águas dos Ingleses, Luiz Fernando Scarambone, foi por volta de 2006 que o status profissional, social e financeiro de seu amigo desde a época da Univali ganhou um belo impulso.

— Estávamos à beira da piscina do Beach Village, em Jurerê Internacional. Toca o celular dele. Era uma mulher condenada por latrocínio (homicídio com objetivo de roubo ou roubo seguido de morte). Gastão tinha receio de cobrar valores altos, era advogado de R$ 10 mil, R$ 20 mil por caso. Eu disse para ele pedir US$ 200 mil dólares. Ele pediu 150. A cliente pagou sem chiar. A partir dali, Gastão virou o advogado de gente rica e poderosa.

E polêmica. No ano seguinte, Gastão atendeu o assaltante de bancos e carros fortes Papagaio, famoso pelas fugas sensacionais. Em um dos assaltos, um vigilante foi baleado e morreu. O ladrão levou um tiro e foi preso. O operação médica para salvá-lo durou 15 horas. Do cirurgião, ninguém falou nada. O advogado, contudo, sofreria a mesma saraivada de críticas e olhares atravessados que o pai, defensor do traficante Neném da Costeira. Do episódio, restou a lição: muitas vezes, as pessoas confundem o criminalista com o criminoso. Problema delas. Porque as portas do escritório de Gastão continuariam abertas para essa clientela.

— Como dizia o doutor Márcio Thomaz Bastos, com quem estagiei durante a pós-graduação, eu defendo meus clientes da culpa legal. Julgamentos morais eu deixo para a majestosa vingança de Deus — recita, atribuindo ao ex-ministro da Justiça do governo Lula e dos mais caros advogados do país, falecido em 2014, a frase que na verdade é do americano Edward Bennett Williams (1920-1988), que defendia de presidentes a mafiosos.

Depois de Papagaio, Gastão foi procurado por um parceiro do assaltante, a quem obteve uma série de absolvições em Florianópolis, Blumenau e Içara. Aí seu nome começou a correr nesse meio; e ele, a vivenciar histórias surreais. Como quando outro “inocente” chegou a sua sala dizendo que iria fazer um assalto e mostrou um pacote de supermercado com cerca de R$ 50 mil em dinheiro. O advogado perguntou o que aquilo significava. “É que, se prenderem a gente, o senhor vai lá e libera, esse é o pagamento”. Gastão agradeceu, mas alegou que não podia aceitar senão estaria fazendo parte da quadrilha. “Se vocês forem presos, me chamem. Antes, não tem como”, completou. E pediu para ele fazer o favor de não lhe contar mais nada.

— Teve outro que apareceu dizendo que havia matado um cara. Eu quis saber onde estava o corpo. “No porta-mala do meu carro, aqui em sua garagem.” Botei o cara para correr!

Com os figurões em geral que se tornaram seus clientes, ocorreu dinâmica similar: limpou a barra de um, dois, três e se estabeleceu como um dos prediletos desse seleto público. A lista inclui políticos (Romildo Titon, Volnei Morastoni, Dado Cherem, Joceli de Souza), empresários (Francisco Ramos, da trading agrícola Agrenco; Rogério Cizeski, da Construtora Criciúma) e altos funcionários públicos (Cláudio Monteiro, ex-titular da Diretoria Estadual de Investigações Criminais; coronel Paulo Conceição Caminha, ex-comandante da Polícia Militar no Estado). Dessa relação vem aquela que considera sua maior vitória: ter livrado o ex-governador Leonel Pavan das acusações de corrupção apontadas pela Operação Transparência.

— A denúncia contra ele foi rejeitada em primeiro grau.

Quanto custam seus serviços, Gastão não revela nem sob tortura. Seguramente, não são os valores praticados pela tabela da OAB. No mercado, especula-se que uma caso grande não renda menos do que algumas centenas de milhares de reais a ele. Ele explica que estipula seu preço conforme a complexidade do caso. Na primeira vez que cobrou mais um R$ 1 milhão por uma ação, há dez anos, sentiu-se igual aos medalhões do Direito que via cobrarem honorários astronômicos.

— Cheguei lá, pensei — confessa.

O que ganha, o criminalista jura que investe em salas comerciais (“andares inteiros”) para, na hipótese de um dia vir a faltar, “garantir a sobrevivência digna” de sua família. Ainda sobra um monte “para proporcionar uma vida boa” a si, à esposa Cristiane e aos filhos Maria Vitória, Maria Clara e Claudinho. Os Rosa moram em um apartamento de 400 metros quadrados na Beira-Mar Norte avaliado em R$ 6 milhões, têm outro na Praia Brava e uma casa em Orlando, na Flórida. No dia a dia, Gastão se locomove em uma Land Rover e a mulher, em uma Range Rover. Completam a frota uma Ferrari California, um helicóptero Robinson R44 e um avião Sêneca 5.

A despeito do patrimônio, é um homem de hábitos espartanos. Não bebe, mantém os 86 quilos distribuídos em 1,80 de altura malhando diariamente na academia do prédio, dorme por volta das 20h e às 3h30 já está acordado. Um de seus autores prediletos é Josemaría Escrivá de Balaguer, do qual recomenda o livro Caminho, “com 999 frases com preceitos para seguir na vida”. No âmbito profissional, entretanto, costuma proferir uma espécie de mantra profano perto da obra do fundador da instituição católica Opus Dei: “Pelos meus clientes eu vou até as portas do inferno. Mas não entro”. Tal empenho, gaba-se, lhe garante um cartel de nove vitórias em cada dez casos.

Na sessão de apelação do filho de seu amigo condenado por tráfico e cultivo de maconha, os desembargadores não engoliram seus argumentos pela anulação do processo. Mas também não aceitaram dobrar a pena, como queria o Ministério Público. Pelo contrário, a reduziram em cinco meses. Para recorrer da decisão no Supremo Tribunal Federal, em Brasília, Gastão pediu ao cliente R$ 1,6 mil, dinheiro para as passagens aéreas e alimentação. Independentemente do desfecho, ele nunca perde.

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