Resíduos do
progresso
fundada em 1979, a Indústria Carboquímica Catarinense (ICC) foi símbolo de desenvolvimento em Imbituba. O encerramento das atividades, na década de 1990, afetou a economia local e deixou um legado de dúvidas sobre seu impacto na região
TEXTO | emerson gasperin
n
o Sul de Santa Catarina, nem tanto abaixo que pudesse ser confundido com gaúcho, nem tão acima para falar com sotaque manezinho, havia uma região onde a riqueza vinha do carvão.
O minério era extraído em Criciúma, Içara, Siderópolis, Urussanga e Lauro Müller, escoado pela estrada de ferro Dona Tereza Cristina e embarcado no Porto de Imbituba. A atividade fazia a fortuna de empresários e incrementava a economia local, mas causava um problema: o rejeito piritoso que, acumulado em depósitos a céu aberto, enfeava a paisagem e poluía o ambiente.
Não era pouca coisa. De cada quatro toneladas exploradas, três eram de pirita. Com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em 1946, foi construído o lavador de Capivari de Baixo para beneficiar o restante, que se destinava apenas ao transporte (para acender caldeiras de ferrovias e navegação). O carvão metalúrgico resultante do processo seguia para o terminal imbitubense rumo às fabricantes de aço do Sudeste. O carvão-vapor ficava para impulsionar a geração de energia pela recém-inaugurada usina termelétrica Jorge Lacerda. À pirita, nada.
E assim o problema continuava sem solução.
Então o governo federal resolveu usar o rejeito para transformá-lo em ácidos sulfúrico e fosfórico, matéria-prima para fertilizantes. Para isso, em 1979 abriu uma unidade da Indústria Carboquímica Catarinense (ICC) em Imbituba com a promessa de empregos à população e melhorias na infraestrutura da cidade. Tudo funcionou mais ou menos dentro do planejado até a segunda metade dos anos 1980, quando o setor entrou em declínio, provocando o fechamento da empresa na década seguinte.
Mas essa não é a história da ascensão e queda do complexo carbonífero catarinense.
É a história de como aquele problema levou ao surgimento da ICC e as consequências de sua atuação no município.
É também uma história que ainda não acabou.
Ela começa com um monte de cocô de pombo.
a
s aves entram pelos buracos dos vidros quebrados das janelas do segundo andar. Durante o voo, se aliviam quase sempre em uma das extremidades do salão abandonado, deixando um rastro de excremento. Os pombos nem imaginam o quanto o lugar em que defecam já assistiu a decisões importantes para o desenvolvimento de Imbituba.
– Era por ali que a diretoria se reunia – aponta Sérgio Florêncio, 47 anos, ex-funcionário da extinta ICC ao passar pelo prédio de dois pisos à direita da portaria que dá acesso à sede da companhia.
Aprovado em concurso em 1987, ele trabalhava na administração, no mesmo andar hoje frequentado somente pelas distraídas arrulhantes. Não fossem as fezes e poucos móveis de escritório, o espaço estaria vazio. Ao contrário do térreo, que parece um cenário pós-furacão: mesas e cadeiras reviradas, gavetas soltas no chão, arquivos derrubados e papéis espalhados, muitos dos quais com o timbre da cidade ou do Estado. São resquícios da prefeitura e algumas secretarias municipais, que no início dos anos 2000 se mudaram para parte das instalações esquecidas pela ICC.
– No final a gente praticamente só cumpria horário, porque não tinha mais pessoal.
Sérgio foi dos últimos a sair da empresa, em 1997. Diz que ganhava R$ 2,4 mil
(R$ 10 mil em valores atuais). Com ele foi embora Tadeu Brasiliense, do operacional. Contratado em 1984, sua função era acompanhar a pirita desde a chegada à transformação em ácido sulfúrico, pela qual estima que recebia um salário de “uns R$ 15 mil hoje”. As tubulações que integravam esse processo não existem mais. E o laboratório, outra dependência com heranças da passagem da prefeitura, guarda quinquilharias como sucata de informática e até uma árvore de Natal recortada em madeira.
Em 1993, a ICC ofereceu um plano de demissão incentivada (PDI) aos cerca de 300 empregados que restavam. Segundo Tadeu, ensaiou-se um movimento para que ninguém o assinasse, “só que quase todos aderiram porque era uma boa grana, dava para montar um negócio”. Nenhum dos dois topou. Até que a saída se tornou irreversível. O operador iniciou uma confecção, quebrou, voltou à profissão de eletrotécnico, trabalhou no porto e acabou de se aposentar, aos 59 anos. Formado em contabilidade, Sérgio concluiu o curso de direito e é escrivão da polícia.
– Todo imbitubense sonhava em trabalhar na ICC. A economia da cidade se baseava nela. Foi um baque quando fechou – lembra ele.
Quando abriu, também.
Todo imbitubense sonhava em trabalhar na ICC. A economia da cidade se baseava nela.
Foi um baque quando fechou
sérgio florêncio,
ex-funcionário da ICC
a
origem da ICC remonta aos estudos feitos na primeira metade da década de 1930 para a utilização da pirita do carvão catarinense, rica em enxofre.
À medida que o país se industrializava, crescia a demanda por esse elemento, do qual derivam matérias-primas como o ácido sulfúrico para fertilizantes, pigmentos, tintas, medicamentos, conservantes, explosivos, fibras e detergentes, entre outras aplicações. O Plano Nacional do Carvão, de 1953, já previa uma usina no Estado com essa finalidade.
Os projetos para implantá-la, no entanto, só começaram a ser realizados em meados dos anos 1960, com a alta do preço do enxofre. As oportunidades que se insinuavam com o aproveitamento da pirita motivaram a Siderúrgica de Santa Catarina (Sidesc), instituída em 1962, a mudar de ramo – para carboquímica – e de razão social, para ICC, em 1969. A nova empresa faria parte da Petrofértil, a subsidiária da Petrobras no segmento de fertilizantes, e teria duas unidades. A de beneficiamento foi subdividida em filiais em Criciúma e em Tubarão. A de produção seria em Imbituba, devido ao porto.
Saudada pela expectativa de fabricar 300 mil toneladas de ácido sulfúrico e 110 mil de ácido fosfórico anuais, a ICC se estabeleceu na cidade em abril de 1979 trazendo uma série de obras de urbanização e infraestrutura. Houve investimentos em saneamento básico, abastecimento de água, distribuição de energia elétrica, ampliação da rede de telefonia e em abertura e construção de estradas. No porto, foi construído o cais no 3, com 245 metros de extensão e 40 de largura, e uma vala em frente ao silo de carvão com capacidade para 6 mil toneladas.
Nem todas as novidades envolvendo a ICC foram bem recebidas pelos imbitubenses. Para que a empresa se instalasse em uma área de 107 mil metros quadrados junto ao porto, foi preciso desapropriar casas de 2 mil famílias que ali viviam da pesca e da produção de farinha de mandioca. A cidade acordava sob uma fuligem grossa de óxido de ferro, fruto da primeira etapa do beneficiamento da pirita. Em dias de vento nordeste, o pó vermelho espalhava-se pela região central e ressecava a vegetação. A companhia ainda lançava no ar um vapor que causava ardência nos olhos.
– Nos dias em que essa chuva ácida era muito forte, chegava a marcar os carros – afirma Sérgio Florêncio.
Outra surpresa desagradável nos primeiros meses de atividade foi a concessão para a gaúcha Adubos Trevo explorar a jazida de rocha fosfática em Anitápolis.
A ICC contava com essas reservas, localizadas a 80 quilômetros, para a produção de ácido fosfórico. Com a medida, teve que buscar o minério em Catalão (GO) e Araxá (MG), encarecendo o produto final. Todos os reveses eram tolerados em nome do progresso. Afinal, a ICC era o terceiro maior empregador de Imbituba. Seu contingente máximo foi de 927 funcionários, entre diretos e indiretos. Em 13 anos, consumiu mais de 2,3 milhões de toneladas de pirita. Em 1985 e 1988, respondeu por 15% da demanda nacional de ácido fosfórico.
a
í Fernando Collor se elegeu para a presidência da República em 1989 e a situação nunca mais foi a mesma para o carvão catarinense. O setor, que havia experimentado ciclos de prosperidade nos anos 1980 apesar da retirada de subsídios para a extração (1983) e para o frete (1988), não resistiu às políticas do atual senador pelo PMDB alagoano. Ele liberou a importação do insumo para as siderúrgicas nacionais – as maiores compradoras do produto do Estado – e iniciou o processo de privatização ou desativação de estatais consideradas “antieconômicas”. Com elevados custos de manutenção, a deficitária ICC estava na lista.
“Os resultados das políticas neoliberais para o setor carbonífero em Santa Catarina foram empresas fechadas, usinas abandonadas e mais de 10 mil desempregados”, escreve o doutor em Economia Alcides Goularti Filho, do grupo de Pesquisa Memória e Cultura do Carvão em Santa Catarina, no artigo acadêmico Formação, Expansão e Desmonte Parcial do Complexo Carbonífero Catarinense (Revista História e Perspectivas, Uberlândia, 2009). O que dependia da União, morreu. A CNS fechou as minas e o lavador, o porto parou de exportar o minério, a ferrovia e a termelétrica caíram nas mãos da iniciativa privada.
A ICC encerrou a produção em 1992 e, sem interessados em adquiri-la, entrou em processo de liquidação que se arrastou pelo final da década. O espólio coube a outra subsidiária da Petrobras, a Gaspetro, criada em 1998. Em 2000, o prefeito Osny Souza Filho (PMDB) assinou um contrato de comodato para o poder público municipal assumir o que sobrou da indústria. Ficou acordado que as benfeitorias efetuadas pelo município seriam reembolsadas – até R$ 1 milhão – pela Gaspetro ao final de 15 anos.
A prefeitura e algumas secretarias se transferiram para lá. Não foram sozinhas.
– A intenção era usar a área para gerar emprego e renda, então foram promovidas licitações de partes do imóvel a empresas – explica o procurador-geral de Imbituba Daniel Vinício Arantes Neto.
O contrato venceu em fevereiro do ano passado. Conforme o representante jurídico do município, o valor corrigido das reformas custeadas pelos cofres imbitubenses somaria R$ 3 milhões. A Gaspetro se negou a pagar. O município entrou com uma ação requerendo a retenção do imóvel até a estatal saldar a suposta dívida.
A decisão da Justiça manteve o imóvel sob a tutela da prefeitura até agosto de 2015. Desde então, a responsabilidade é da Gaspetro.
– O município ainda está brigando. O imbróglio é grande.
E não envolve apenas a prefeitura, da qual a nova sede, fora da ICC, ficou pronta em 2013. O Ministério Público Estadual protocolou ação civil pública exigindo que a área passe por uma recuperação ambiental e depois tenha alguma função econômica para o município. Ao ser desativada, a companhia deixou 4,3 milhões de toneladas de gesso e 1,4 milhão de toneladas de óxido de ferro. O projeto vendido à população previa que esses resíduos seriam reaproveitados por fabricantes de cimentos, tintas e vernizes. Acabaram em depósitos nas redondezas.
A intenção era usar a área para gerar emprego e
renda, então foram promovidas licitações
de partes do imóvel a empresas. o município ainda
está brigando para isso. o imbróglio é grande
daniel vinício arantes neto,
procurador-geral de Imbituba
m
esmo com a determinação legal para que a Gaspetro retire os tanques do terreno, suspeitos de estarem vazando produtos químicos no solo, todos ainda estão se deteriorando no pátio.
O procurador diz que há informações de que a Petrobras iria regularizar a área para instalar algumas empresas nela. Procurada pela reportagem, a estatal não quis se pronunciar.
– Dá um desgosto ver tudo isso largado – lamenta Hélio Soares Martins, encanador, caldeireiro e soldador da ICC de 1979 a 1993.
Titular do escaninho no 117 no prédio que abrigava os departamentos de mecânica, elétrica, instrumentação e tornearia, o aposentado recorda do “cheque Aficc”, um talão igual ao de um banco convencional, emitido pela associação dos funcionários da companhia (daí o nome).
– Era aceito em todo o Sul de Santa Catarina até Florianópolis. O desconto vinha na folha de pagamento.
Para Hélio, a ICC fechou de verdade em 1990, quando o governo federal selou o destino da empresa. Depois disso, garante, foi só esperar a companhia morrer. Atualmente, três empresas – de fertilizantes, de serviços portuários e transporte de produtos químicos e de guarda de carros apreendidos – ocupam o local. Ele pensava que, com o fim, a indústria viraria uma escola técnica. Não virou nada além de um problema que ninguém sabe como e quando será resolvido. Enquanto isso, os pombos podem evacuar à vontade.
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EXPORTAÇÃO NO PORTO DE IMBITUBA (em toneladas)
Movimentação de cargas no terminal
EVOLUÇÃO DO PIB PER CAPITA EM IMBITUBA (em R$)
O crescimento e o fim das atividades da ICC impactaram na economia da região
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