SUSTINHO SEM GRAÇA

explicação parece NÃO TER sentido.

— O sustinho que ela sofria que era o engraçado.

Resposta é de um homem, adulto, com bom nível educacional, que jogava água no rosto da enteada de três anos para acordá-la. A prova do crime considerado tortura foi construída por ele mesmo, ao filmar no celular a reação de pavor que provocava na criança. As gravações foram mostradas para os colegas de trabalho.

São pelo menos sete vídeos em que o “sustinho” foi aplicado.  A menina ficava sob seus cuidados quando a mãe saía para fazer o curso de pós-graduação, em uma cidade do Litoral Norte do Estado. Período de profundo sofrimento para a criança, que acordava chorando e demonstrava medo ao perceber a presença do padrasto.

Além dessa prática, ele aplicava castigos em situações consideradas normais para a idade, como fazer xixi ou cocô na calça. Quando isso ocorria, a criança era colocada para “dormir em pé” ou com o rosto encostado na parede.

A violência foi revelada na brincadeira do amigo oculto na empresa onde o  homem trabalhava. Na hora da revelação, alguém disse que ele “maltratava criancinhas”. Dias depois, uma pessoa procurou a mãe da criança para mostrar os vídeos. Grávida de sete meses, ela não hesitou: procurou a polícia para denunciar e não mais voltou ao convívio com o agressor.

Na delegacia, confidenciou que estava desconfiada de alguma coisa: a filha pedia que o “tio” não desse mais banho ou trocasse as roupas dela. Nos autos, destaca-se o relatório psicológico feito pela profissional que atendeu a menina:

“Trata-se de uma criança de apenas três anos, mas com boa fluência verbal. Notou-se que utilizava a palavra ‘castigo’ para se referir a algumas condutas do padrasto, como quando fazia xixi na calça: nariz na parede, dormir em pé’. Cabe ressaltar que um dado significativo foi a manifestação sintomática e regressiva da enurese (xixi na calça) após os atendimentos da criança com este conteúdo, demonstrando grande sofrimento emocional”.

Para evitar a revimitização (repetição do ato violento que passou) e pela pouca idade da criança, a Justiça se valeu do relato de testemunhas, inclusive dos que assistiram aos vídeos, para indiciar o réu.

O homem não negou que jogasse a água, mas disse que era uma “brincadeira”. Admitiu que aplicava castigos, mas com o argumento de serem “educativos”.

Atualmente, mãe e filha moram em outro Estado.

O réu foi condenado a pena de quatro anos pelo crime de tortura – submeter alguém, sob sua guarda, com poder de autoridade, ao emprego de violência ou grave ameaça, intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

LEMBRANÇA AMARGA

quela primavera não estava tão bonita. Quase não deu para o menino de cinco anos brincar ao ar livre. Os dias quentes do verão também chegaram tristonhos. No alternar das estações, a paisagem mudava de cor, ele trocava de espaços. Era colocado para dormir no banheiro, em cima de um colchão sem travesseiro. No mesmo lugar onde também devia comer. Às vezes, um cardápio que gostava, mas indigesto. Pedaço de pizza polvilhado com cinzas. O gosto era ruim, mas era pior ser queimado com ponta de cigarro. Outras vezes, também difícil de engolir, molhado com o próprio xixi. Nada gostoso, mas machucava mais ser espetado com a ponta do garfo, como às vezes ocorria.

Uma situação degradante para o menino que morava com a mãe e o companheiro dela no Sul do Estado. O convívio, que durou menos de um ano, terminou com o homem preso após flagrante da Lei Maria da Penha. Para a criança, um tempo inacabável, marcado pela tensão e medo constantes. Rotina que se perpetuava, principalmente quando a mãe estava trabalhando e ele era entregue aos cuidados do “Feio”, como se refere ao agressor nos autos do processo.

Período marcado por puxões fortes de orelha, tapas no rosto e socos em diversas partes do corpo. Espancamentos comprovados em laudo pericial: “Bosso (calombo) na região frontal próxima à raiz do nariz: equimose arroxeada (hematoma) na pálpebra superior esquerda; escoriação na região malar (mandíbula) esquerda; cicatrizes diversas na face e no tórax”.

O silêncio dessa violência só foi rompido depois que os avós organizaram uma festinha de aniversário para o neto que há tempos não viam. Na ocasião, mãe e filho chegaram com os rostos machucados. Desconfiados, os familiares ouviram respostas contraditórias sobre os motivos dos ferimentos. Já naquela noite e por imposição de uma tia, o menino não voltou mais para casa. Dias depois, aparentando estar mais seguro, contava à família, ao conselho tutelar e a uma psicóloga da Polícia Civil detalhes a respeito do que passava.

Anexado aos autos, o relatório de atendimento psicológico à criança informa que depois de detalhar as agressões, o menino verbalizou:

— Não quero mais falar disso.

Mas projetou expectativas para o que vivenciaria nos próximos dias.

— Agora vou morar sempre com a minha tia-madrinha. Lá tenho o meu quartinho, a minha caminha. Não durmo mais no banheiro. Banheiro é só pra fazer xixi e tomar banho.

Disse também que a mãe presenciava, mas que quando tentava ajudá-lo era impedida pelo namorado. Por essa suposta omissão, a mulher seria inicialmente responsabilizada. Mais tarde, em  juízo contaria sobre as intimidações recebidas do companheiro, que, diferentemente da época de namoro, se mostrava cada dia mais agressivo e autoritário. Relatou ser espancada por motivo fútil, impedida de visitar os familiares e de contar o que ocorria dentro de casa. Vivia sob constante ameaça, inclusive da morte do filho, dos parentes e dela própria. Negou que soubesse das humilhações passadas pelo menino, como dormir no banheiro e receber alimentos sujos.

Pelo depoimento, o menino não contava a ela o que acontecia quando estava ausente. Certa vez, ao saber que o companheiro tinha batido na criança, a mãe exigiu que isso não mais ocorresse e tomou um soco na boca.

O agressor recebeu pena de cinco anos. A mulher foi condenada em primeira instância, mas a defesa recorreu. Por falta de provas foi absolvida pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

FIOS QUE QUEIMAM

ma convivência marcada por episódios de intensa violência. Essa era a rotina de uma família formada por uma mãe, os filhos (meninos com 12, 10 e cinco anos) e o companheiro dela. Viviam no Norte do Estado e era difícil um dia sem que os garotos recebessem tapas, socos, chutes. As agressões partiam principalmente do homem e quando estava alcoolizado.

Um dos métodos utilizados era suspender as crianças pelos cabelos e, em seguida, bater a cabeça delas na parede. Também recebiam chicotadas com fio de luz. E um castigo que remonta à época em que as crianças não tinham direitos assegurados por lei: eram obrigadas a permanecerem ajoelhadas sobre grãos de milho. Até sangrar.

— Ele só dizia que a gente incomodava muito — tenta explicar uma das crianças nos autos do processo.

A brutalidade tomou proporções cruéis. Uma vez o agressor derramou acetona nos pés dos meninos. Em seguida, jogou um fósforo aceso no líquido inflamável. A dor do fogo queimando foi tanta que um deles desmaiou. A mãe presenciou e lavou os ferimentos em casa.

Lesões como essas são perceptíveis nos laudos periciais e fotografias que fazem parte do processo judicial. Os médicos fazem um alerta: algumas das marcas não eram tão atuais, consequência de reiterados e constantes espancamentos aos quais eram submetidos nos últimos tempos. O casal vivia junto há cerca de um ano, período em que também a mãe se tornou mais agressiva. Antes ela também batia, mas conforme os meninos só quando eles “aprontavam”.

A infância transcorria em uma espécie de cárcere. Longe da escola (mudavam muito de cidade), as crianças não recebiam parentes ou amigos e  eram impedidas de brincar no quintal. A televisão, que tanto gostavam, ficava trancada em um quarto ao qual não tinham acesso.

O homem dizia que trabalhava, mas o lugar era incerto, e pouco dinheiro trazia. A mulher ficava em casa e saía com o companheiro para beber. A comida era pouca. Uma vez o menino de 12 anos apanhou por ter comido metade de um tomate.

Os maus-tratos só pararam quando um vizinho, assustado com os gritos das crianças que pediam socorro, chamou a Polícia Militar. Quando os policiais chegaram, encontraram a casa revirada em sinal de briga. Um dos meninos tinha ferimento no pescoço. Minutos antes, o homem havia encostado uma faca e ameaçava degolar um a um. Em outro, o ferimento vinha da véspera, quando foi surrado com um pau com pregos na ponta.

O casal foi preso em flagrante, familiares acionados e as crianças encaminhadas para atendimento médico e psicossocial. Relataram com detalhes o tormento que vivenciaram. Como a vez em que todos apanharam porque cada um pegou um copo para beber suco, em vez de usar a mesma vasilha para não sujar louça.

Falaram sobre outro castigo que causava muito desconforto: quando nas madrugadas o agressor chegava embriagado e batia com fio de luz, jogando-lhes água ainda que estivessem deitados na cama.

Por se omitir diante das agressões e tampouco tomar providências no sentido de denunciar o agressor ou encaminhar os menores para atendimento médico, a mãe foi denunciada pelo Ministério Público de Santa Catarina. “Se tivesse levado ao conhecimento das autoridades, o sofrimento físico e psicológico das crianças seria menor”, entendeu a Justiça.

Para os magistrados, a narrativa da criança de cinco anos, que, mesmo em separado da fala dos irmãos, apresentou os mesmos detalhes, ajudou a comprovar a veracidade dos fatos. Os depoimentos judiciais dos três meninos foram corroborados por laudos periciais, imagens, testemunhos de vizinho e dos policiais.

Para a Justiça, a mãe biológica era detentora da guarda das crianças e tinha o dever de protegê-las. Considerada omissa, foi condenada a três anos e 10 meses de prisão. O companheiro cumpre pena de cinco anos por prática de tortura. As crianças estão sob os cuidados de uma tia da família.

PRIMEIRAS E ÚLTIMAS PALAVRAS

ma súplica de quem mal sabia falar:

– Vó, não quero ir porque ele bate – disse a menina de dois anos, antes de entrelaçar os braços no pescoço da mulher, diante do padrasto que a levaria para casa.

Dias depois, sentada à frente de um policial para prestar depoimento sobre a morte da neta, vítima de maus-tratos, a avó admitiu um comportamento comum a muitos adultos. Aquele de não dar atenção para as crianças, achando que é fantasia quando elas falam de violência.

O crime ocorreu dentro da residência onde a menina vivia com a mãe e o namorado, no Vale do Itajaí, em 2015. “Agindo com ânimo de torturar a criança em razão de ela ter chorado durante a madrugada e, com isso, dificultando seu sono, o réu foi até o seu quarto e aplicou-lhe vários socos contra o abdômen e a cabeça”, descrevem os autos do processo.

Espancado de forma brutal, o bebê morreria 13 dias depois daquela madrugada, vítima de lesões corporais que caracterizaram politraumatismo e disfunção de vários órgãos. Ao chegar ao hospital, antes de o quadro se agravar, a criança novamente usou a voz para dizer o que acontecia. Desta vez, para a médica que inicialmente a atendeu:

— A menina chegou a me dizer que foi o “tio” que fez isso com ela — em alusão ao namorado da mãe.

Essa situação veio à tona depois que, na manhã seguinte à agressão derradeira, e ao ser deixada na creche pelo próprio padrasto, as educadoras perceberam que a menina não estava bem. Por isso, o encaminhamento ao hospital.

A partir dali começava a investigação que resultaria na condenação do padrasto e da mãe.

— Naquela madrugada, eu ouvi a aflição da criança, que dava gritos de desespero — contou uma vizinha à polícia.

Disse ainda que no dia da agressão ambos os acusados gritavam e que pareciam estar bêbados. A moradora, então, fez uma revelação: a mãe também maltratava a filha. Além de observar que ela não cuidava bem da alimentação da criança, a presenciou dando bebida alcoólica para a pequena. Tinha o hábito de bater, gritar constantemente com a menina e sabia que o companheiro a agredia, sem nada fazer para protegê-la.

A médica também testemunhou a falta de reação da mãe diante de um quadro tão assustador. Nem quando informada sobre a possibilidade de a menina ter sofrido violência doméstica. Limitava-se a dizer que a criança havia caído da cama.

A médica explicou ainda que os hematomas encontrados na criança não tinham as mesmas cores e apareceram em momentos diferentes, decorrência de uma sequência de agressões. As lesões não eram compatíveis com os relatos de queda.

Da mesma forma, a conselheira tutelar envolvida no caso declarou que a postura da mãe não era condizente com quem teve o filho espancado e na iminência de perder a vida. A mulher não demonstrava preocupação, não parecia carinhosa ou zelosa como outras que defendem os filhos, ainda mais em situação de extrema gravidade.

Em seu relato, a mãe disse que no dia dos fatos tinha ouvido a menina chorar à noite, mas que antes de sair para trabalhar trocou as fraldas e não percebeu nenhuma lesão.

A Justiça entendeu que a autoria do crime era inquestionável. A mãe foi considerada omissa por não impedir que o bebê fosse brutalmente espancada. O homem foi condenado a 14 anos, cinco meses e 28 dias de reclusão, no regime inicial fechado.

A mãe recebeu uma pena menor, de um ano, nove meses e seis dias de detenção em regime inicial semiaberto.

VIOLÊNCIA ENRAIZADA

PENAS a ameaça já seria assustadora para uma criança de cinco anos:

— A morte vem te pegar. E vem de roxo.

A menina que apanhava do companheiro da mãe consegue se soltar e, em desabalada corrida, dispara e agarra-se às pernas do conselheiro tutelar em mais uma visita para verificar denúncia de violência.

Essa realidade mais tarde seria comprovada por exame de corpo de delito, boletins de ocorrência, relatórios. A menina morava com a mãe e o irmão menor em uma cidade do Sul do Estado. Também vivia com o padrasto, por quem demonstrava carinho e chamava de pai. Mesmo quando falava dos castigos severos que ele aplicava.

Em princípio, porque ela, com diagnóstico de hiperatividade, “merecia um corretivo”. O clima era hostil. Conforme informações de vizinhos, o homem, usuário de drogas, agredia também a companheira e os próprios pais, que moravam próximo.

Para a menina, o emprego dessa violência ocorria de forma contínua. Quando o padrasto parava de bater, a mãe continuava.

A fim de ter resguardada a integridade psicológica, a vítima não foi ouvida em juízo. Mas, na Delegacia de Polícia, a menina confirmou as agressões. Comentou sobre socos, banho gelado à noite, ser deixada sozinha na rua. Sem conseguir entender os motivos da brutalidade:

— Eu não respondo e nem sou malcriada.

Disse ainda que quando foi no conselho tutelar foi orientada pela mãe a não contar que era surrada. Ainda que levasse chineladas e cintadas e fosse trancada dentro do quarto. Sem saber, a criança experimentava uma violência enraizada. A mãe argumentou que as agressões eram feitas em razão do seu sofrimento, pois cada vez que olhava para a filha lembrava da violência sexual que sofreu por parte do pai. Conforme o relato dela, por mais que tentasse esquecer, não conseguia “fechar a ferida”.

Os agressores foram condenados a três anos de prisão em regime fechado pela prática de tortura. Em dezembro do ano passado, apelaram para alterar a pena para o semiaberto.

O pedido foi negado de forma unânime. A Segunda Câmara do Tribunal de Justiça argumentou sobre o período de dor enfrentado pela menina. Além das sequelas físicas e psíquicas em razão das agressões e dos castigos, ela foi retirada do convívio familiar, separada do irmão mais novo e encaminhada para uma nova família. Mudanças que sempre causam efeitos na vida de uma criança. Por melhores que pareçam ser.